quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Por que a Rússia realmente interrompeu seu fornecimento de S-400 para a China

Primeiro-ministro Narendra Modi, presidente da China Xi Jinping, presidente russo Vladimir Putin na Cúpula do G20, 2016.

Por Probal Dasgupta, The Print, 12 de novembro de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 15 de dezembro de 2020.

A Rússia quer ter um papel maior no sul da Ásia agora. Mesmo que atrapalhe o relacionamento com a China.

Enquanto a disputa Índia-China grassava no Himalaia ao longo deste ano, ambos os lados correram para estocar sistemas de mísseis e aeronaves. Mas, embora a Rússia tenha confirmado que estava a caminho de entregar cinco esquadrões de sistemas de defesa aérea S-400 Triumpf à Índia, não fez a mesma promessa à China. Moscou decidiu suspender o fornecimento dos S-400 para a China.

O S-400 é um moderno sistema de defesa antimísseis superfície-ar capaz de interceptar e destruir mísseis e aeronaves inimigas com um alcance de até 400km.

Em 2018, apesar da ameaça de sanções dos EUA, a Índia escolheu corretamente o S-400 da Rússia em vez dos mísseis americanos Patriot Advanced Capability (PAC-3) e THAAD (Terminal High Altitude Area Defense). Seguiu-se uma explosão previsivelmente ultrajante do presidente Donald Trump contra a decisão da Índia. Este ano, porém, sob uma série de negócios de armas, foi enterrada uma notícia que levantou algumas sobrancelhas. Os S-400 prometidos pela Rússia à China não chegaram. Correram boatos de que a Covid-19 pode ter sido o motivo do atraso. Mas parece que Moscou tomou uma posição deliberada.

Em fevereiro de 2020, Valery Mitko, um dos principais cientistas árticos da Rússia, foi preso sob a acusação de, alegadamente, passar segredos sobre tecnologia de detecção de submarinos para a China. Mais tarde, em junho, após investigações, um tribunal da Rússia estendeu sua prisão domiciliar. Cientistas russos têm estado sob uma nuvem por causa de ligações com a China nos últimos dois anos e o incidente de Mitko agravou uma crescente suspeita que paira sobre uma colaboração de conveniência entre a China e a Rússia. Um mês após a decisão do tribunal sobre Mitko, a Rússia optou por suspender o fornecimento de mísseis à China.

Manifestação anti-chinesa na Índia.

Rivalidade China-Rússia

Na Ásia, a China se encontra em uma vizinhança hostil de estados litorâneos no Mar da China Meridional, piorada com a entrada dos Estados Unidos no Indo-Pacífico com seus aliados. A conversa sobre o renascimento do Quad envolvendo os EUA, Japão, Índia e Austrália é um exemplo. Dado seu status de isolado, um relacionamento estável com a Rússia assumiu uma importância crítica para a China. Uma China desconfiada, entretanto, sente que sua dependência da tecnologia de armas russa a torna vulnerável. O que pode ter levado à espionagem na Rússia e provavelmente no caso Mitko. Moscou, por outro lado, precisa de investimentos chineses para desenvolver portos e infraestrutura na região ártica, mas teme que Pequim possa reduzir sua influência na indústria de defesa e na Ásia Central.

No início da década de 1990, o colapso da União Soviética coincidiu com a ascensão da China. À medida que os EUA consolidavam seu status de única superpotência, Pequim e Moscou se uniram para desafiar a hegemonia americana. Os interesses russos, porém, estavam restritos à Ásia Central e ao Oriente Médio - visto que a natureza da postura militar na região se adequava ao manual russo tipicamente intrusivo. Seus interesses no Leste Asiático, dominado pela China, permaneceram principalmente marginais. No entanto, a deterioração das relações na vizinhança em torno do Mar da China Meridional e do Sul da Ásia pode fazer com que uma indústria de armamentos russa interessada entre na ponta dos pés. Enquanto uma rivalidade oculta limita sua colaboração com a China, a Rússia discretamente aumenta suas apostas de negociação no Leste Asiático.

Oficiais chineses e indianos na fronteira.

Em vez de seu alcance político-militar arquetípico que poderia perturbar a China, a Rússia usou uma rota de comércio de poder suave para fortalecer seu relacionamento com o Japão e a Coréia do Sul. Em 2017, o Japão e a Coréia do Sul representaram 7 por cento das exportações russas (contra 11 por cento para a China).

De acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Stockholm International Peace Research InstituteSIPRI), a Rússia aumentou substancialmente seu fornecimento de armas para o Sudeste Asiático nesta década. O ex-PM Dmitry Medvedev usou plataformas multilaterais como a ASEAN para se reunir com líderes do Laos, Tailândia e Camboja no ano passado. O presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, chamou Vladimir Putin de “meu herói favorito”. E para regimes autoritários como o Camboja, a Rússia é uma presença menos exigente do que o Ocidente.

O único intermediário agora

Uma China ambiciosa, sob o comando de Xi Jinping, afirmou-se em regiões fora da Ásia Oriental. Qualquer impulso para a Ásia Central e Oriente Médio preocupa a Rússia, que gostaria de manter um cartão do Leste Asiático mais forte. Isso explica as relações da Rússia com países do Leste Asiático, onde a China tem novos inimigos. Isso também explica por que a Rússia provavelmente manterá a Índia do seu lado. Na frente dos EUA, o novo governo de Joe Biden poderia reabrir divergências anteriores com a Rússia, incluindo na Ucrânia e Bielo-Rússia. O silêncio de Moscou sobre a vitória de Biden nas eleições é um indicador, assim como o silêncio de Pequim indica a expectativa de uma linha americana firme e obstinada.

Tropas russas durante os exercícios militares Vostok-2018 (Leste-2018) no campo de treinamento de Tsugol, não muito longe das fronteiras com a China e a Mongólia na Sibéria, em 13 de setembro de 2018.

A Rússia e a China evoluíram muito em sua relação histórica e, hoje, compartilham o que Parag Khanna chama de “um eixo de conveniência ao invés de uma aliança real”. Cinquenta anos atrás, patrulhas chinesas engajaram um posto avançado soviético em uma ilha ao largo do rio Ussuri. Os soviéticos retaliaram, obliterando uma brigada militar chinesa inteira. Os beneficiários, então, foram os americanos, que acreditavam que o inimigo de um inimigo era seu amigo, e ficaram do lado dos chineses. Meio século depois, enquanto os russos suspeitam que uma China agora poderosa possa enganá-los novamente, estes precisam deles contra a América e seus aliados. Vasily Kashin, do Instituto de Estudos do Extremo Oriente da Academia Russa de Ciências, afirma: "A China não pode se dar ao luxo de alienar um vizinho que é um importante poder militar e de recursos por si só".

Anunciar-se como um mediador ativo entre a Índia e a China não é exatamente o estilo da Rússia, mas ela nunca se esquivou de hospedar cúpulas de paz (Tashkent em 1965 foi um exemplo). Em setembro deste ano, os chanceleres da Índia e da China se reuniram em Moscou e concordaram que os comandantes militares dos dois países precisavam dar continuidade ao diálogo. A Rússia sabe que pode reivindicar maior relevância na região por ser a intermediária, já que é a única potência aceitável para os dois vizinhos em guerra. Em uma região fragmentada e turbulenta da Ásia, uma mão sagaz russa deve desempenhar um papel fundamental.

Probal Dasgupta é um ex-oficial do Exército e autor do livro Watershed 1967: India’s Forgotten Victory over China (Divisor de Águas 1967: a vitória esquecida da Índia sobre a China).

Bibliografia recomendada:


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