domingo, 16 de maio de 2021

Mate o Exército Homotético: a visão do General Guy Hubin do futuro campo de batalha


Por Michael Surkhin, War on the Rocks, 4 de fevereiro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 13 de maio de 2021.

Ninguém quer aparecer na próxima guerra preparado para a guerra errada. O erro pode ser catastrófico. As Grandes Potências marcharam com confiança para a batalha em 1914, preparadas para as guerras anteriores, resultando em terríveis baixas em troca de resultados insignificantes. Nesse caso, o erro foi universal, não dando a nenhum dos beligerantes uma vantagem estratégica. Em 1940, a França foi à guerra depois de fazer apostas erradas sobre como seria o futuro. A Alemanha, ao contrário, havia apostado corretamente, dando-lhes uma vantagem estratégica que resultou em uma das maiores reviravoltas militares da história. Eles haviam compreendido melhor do que seus oponentes as implicações das novas tecnologias, adaptando a forma como se organizavam e lutavam para fazer o melhor uso delas.

As forças armadas de hoje, esperando serem a Alemanha nesse cenário, têm lutado desde pelo menos a Operação Tempestade do Deserto em 1991 para acompanhar a rápida evolução da tecnologia que muitos acreditam ter precipitado uma "revolução nos assuntos militares", mesmo que o próprio termo tenha saído de moda. Na década de 1990, o foco estava na guerra em rede e nas munições descartáveis guiadas com precisão, "domínio da informação" e na aceleração do ciclo "Observe, oriente, decida, aja". A chamada foi feita para "quebrar a falange", que rendeu o sistema de brigadas de hoje. Então veio a “transformação”.

A lista se expandiu e, em 2018, o Chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA, General Mark A. Milley, escreveu no Panfleto 525-3-1 do Comando de Treinamento e Doutrina (Training and Doctrine Commanddo Exército dos EUA, The U.S. Army in Multi-Domain Operations 2028 (O Exército dos EUA em Operações Multi-Domínio 2028), que “Tecnologias emergentes” estão “impulsionando uma mudança fundamental no caráter da guerra”. Eles têm "o potencial de revolucionar os campos de batalha mais radicalmente do que a integração de metralhadoras, tanques e aviação, que deu início à era da guerra de armas combinadas". Por Milley e pelo Comando de Treinamento e Doutrina, o Exército dos EUA teria que iniciar uma revisão profunda de suas "técnicas de combate" e em como construiu "as forças de combate de que precisamos no futuro".

Há muito a ser dito a favor e contra as “operações multi-domínio” e aquela publicação específica do Comando de Treinamento e Doutrina. Aqui, no entanto, quero apresentar uma perspectiva distintamente diferente sobre o futuro campo de batalha que vem de forma suficientemente apropriada do exército que conhece melhor a dor de apostar errado, o Exército Francês. Na década de 1990, Guy Hubin, então coronel e agora general aposentado, esboçou uma visão provocativa do futuro da guerra. A visão de Hubin oferece várias vantagens em relação àquela do Comando de Treinamento e Doutrina. Um é metodológico: Hubin usa uma abordagem intelectual, informada pelos escritos do Marechal Ferdinand Foch e do General André Beaufre, que se traduz em uma interpretação mais coerente intelectualmente dos desenvolvimentos recentes e visão do que fazer com eles. Hubin vai além das operações multi-domínio em seu apelo para reestruturar como as forças do exército devem operar e serem organizadas; ele oferece uma abordagem francesa mais clara e distinta do comando de missão ou “comando por intenção”; e ele defende a não-linearidade radical que contrasta fortemente com a visão linear aparentemente anacrônica do Comando de Treinamento e Doutrina do campo de batalha, que apresenta uma frente clara e zonas distintas demarcadas por sua distância da frente. Finalmente, Hubin, apoiado nos ombros de Beaufre, está em melhor posição para lidar conceitualmente com um desafio-chave: a integração das alavancas militares e não-militares do poder, da violência armada e da guerra política e de informação, que requer a clara subordinação do militares aos fins políticos ditados por civis. As operações de múltiplos domínios, em contraste, identificam o acoplamento dos adversários de formas políticas e outras formas de ação não-militar com operações militares como uma ameaça particular, mas oferece, na melhor das hipóteses, uma ideia confusa de como lidar com ela.


No Exército Francês, Hubin passou a maior parte de sua carreira militar com unidades aerotransportadas e de forças especiais, mas tem experiência nas unidades blindadas da França e passou dois anos no centro de blindados do Exército dos EUA em Fort Knox, onde foi capaz de observar experimentos com novas tecnologias . Esses e desenvolvimentos tecnológicos paralelos na França, entre eles o desenvolvimento no final dos anos 1980 e no início dos anos 1990 do tanque de batalha principal da França, o Leclerc, com seus sistemas de rede avançados e capacidade de atirar em movimento, o estimularam a refletir sobre o significado das novas tecnologias para táticas. O resultado inclui dois livros, Perspectives tactiques (Perspectivas Táticas) - publicado pela primeira vez em 2000, mas agora em sua terceira edição - e La Guerre: Une vision française (A Guerra: Uma visão francesa), publicado em 2012. Perspectives Tactiques, por um tempo pelo menos, era leitura obrigatória no equivalente do Exército Francês ao Command and General Staff College, o Cours Supérieur d'État-Major, conhecido desde 2018 como a École de Guerre-Terre.


O livro é o principal ponto de referência da comunidade de segurança nacional francesa para discussões sobre guerras futuras e, em particular, guerras em rede. Ele informou o esforço do Exército Francês para integrar novas tecnologias e repensar a estrutura da unidade e táticas agora associadas ao seu programa de modernização SCORPION, que se tornou um importante bloco de construção do esforço militar francês para implementar operações multi-domínio. Não se pode creditar a Hubin a adesão do Exército Francês à guerra colaborativa, por exemplo, que é uma capacidade que o programa SCORPION está trazendo para um número maior de tipos de veículos e sistemas de armas, mas pode-se argumentar que Hubin informa como o Exército Francês pensa sobre a guerra colaborativa e o seu significado para a guerra moderna. Da mesma forma, o programa SCORPION envolve repensar como as unidades se organizam, se sustentam e lutam. A conversa no Exército Francês sobre como fazer tudo isso não terminou com Hubin, mas sem dúvida começou com ele.

De pé sobre os ombros de Foch e Beaufre

Antes de mergulhar nos argumentos de Hubin, deve-se reservar um momento para notar algo do qual o próprio Hubin e seus leitores militares franceses podem nem estar cientes porque faz parte do discurso militar francês: a influência dos Princípios da Guerra do Marechal Ferdinand Foch (1903), tanto direta quanto interpretada e complementada pelas obras de meados do século do General André Beaufre. Foch e Beaufre fornecem a Hubin uma estrutura intelectual básica, bem como um vocabulário de trabalho crítico imediatamente compreendido pelos oficiais franceses. Esta estrutura ajuda a tornar as ideias de Hubin mais coerentes do que o panfleto do Comando de Treinamento e Doutrina. Também fornece a Hubin um meio de pensar e escrever sobre os efeitos da tecnologia sem se deter na tecnologia em si. Isso é importante: Hubin não é um tecnólogo per se, e essa falta de especificidade em relação à tecnologia sobre a qual ele escreve ajuda a manter seus argumentos atualizados, mesmo que a própria tecnologia evolua rapidamente.

Foch articulou uma série de “princípios da guerra” que permanecem consagrados na cultura militar francesa. A doutrina francesa atual distingue três: economia de força, concentração de esforços e liberdade de ação. Foch também identificou como princípios "segurança", surpresa estratégica, ataque decisivo e disciplina intelectual, que se refere a comandantes subordinados tendo os recursos intelectuais a serem confiados para compreender e executar os comandos de seus superiores como acharem adequado, sem seguir as etapas prescritas servilmente ou pensando que sabem melhor.


Hubin está interessado nas ramificações das tecnologias emergentes na aplicação dos princípios da guerra (por exemplo, suas implicações para a economia de força, concentração de esforços, etc). A partir daí, ele expande seus argumentos para a organização da força e o comando e controle. Os exércitos terão que se organizar de uma maneira radicalmente diferente. Os comandantes terão que comandar de forma diferente. Como veremos, uma percepção fundamental para Hubin é a ideia de que as novas tecnologias tornarão a concentração de esforços quase impossível, na medida em que concentração de esforços é sinônimo de concentração física de meios militares. O que mais importará no campo de batalha moderno é a economia de força precisa, flexível e dinâmica, que requer novas maneiras de organizar as forças e novas maneiras de comandá-las.

Viradores de Jogo

Diagrama de um GTIA operando segundo o programa Scorpion.

Hubin identifica em Perspectivas Táticas três novas capacidades específicas que novas tecnologias citadas que ele acredita estarem mudando profundamente a guerra: a capacidade de saber precisamente e em tempo real onde estão todas as nossas próprias forças, a capacidade de atirar sem parar e os disparos indiretos de precisão.

Saber onde todos estão dá uma capacidade sem precedentes para ajustar a economia de meios. Também facilita a dispersão: há menos necessidade de agrupar para facilitar a comunicação ou evitar incidentes de fogo amigo. Enquanto isso, não ter que parar para atirar, segundo Hubin, significa, obviamente, que se pode continuar em movimento, o que é um imperativo crescente na era dos fogos precisos. Também mina a linearidade que historicamente caracterizou a batalha: parar para mirar e atirar como atacante ou defensor significa assumir uma posição fixa em relação ao adversário, e uma manobra típica é fazer com que algumas tropas fixem o inimigo enquanto outras tentam dar a volta pelo flanco ou atrás dele. Agora existe uma frente, um flanco e uma retaguarda. Existe um eixo de movimento. Polaridade. Se alguém puder continuar em movimento, haverá muito menos necessidade de assumir uma posição fixa em relação ao adversário e, portanto, muito menos linearidade ou polaridade. Isso também significa, aponta Hubin, que os dois lados têm maior probabilidade de se misturar. (Hubin usa a palavra imbricação, que, em inglês, é principalmente reservada à geologia para descrever depósitos ou rochas sobrepostos.)

Enquanto isso, os fogos indiretos de precisão têm várias implicações. Eles encorajam e facilitam a dispersão, porque é possível atingir qualquer alvo dentro do alcance, independentemente de onde se esteja, e porque a concentração se tornou cada vez mais perigosa. Além disso, como acontece com a capacidade de atirar em movimento, os disparos de precisão minam a linearidade, com implicações importantes sobre como as forças são organizadas no espaço geográfico e como se movem. Até recentemente, explica Hubin, a abordagem consistia em algumas tropas avançarem para enfrentar e destruir o inimigo, enquanto outras ficavam na retaguarda para apoiar as tropas avançadas. “Na guerra como no amor”, escreve Hubin, citando Napoleão, “é preciso chegar perto”. Isso reforça a polaridade evidente nas táticas e manobras, pois há uma frente, uma retaguarda e um eixo de movimento. Os comandantes organizaram seus subordinados de acordo, com os corpos em movimento acompanhados por unidades de flanco-guarda, vanguardas e retaguardas. Os fogos indiretos de precisão, no entanto, invertem a relação. O trabalho das forças de combate agora é encontrar o inimigo e, idealmente, concentrar as forças inimigas para que possam ser destruídas por fogo indireto, que, de agora em diante, fará a matança. Isso implica em um grau mais fraco de polaridade, especialmente se presumirmos a imbricação.

Comboio do G5 Sahel protegido por um helicóptero no Mali.

Outra ramificação dos fogos indiretos de precisão tem a ver com a logística: a imprecisão intrínseca dos fogos indiretos no passado - especialmente contra alvos móveis - significa que alcançar os efeitos desejados geralmente requer grandes quantidades de munição. Isso, por sua vez, exigiu um enorme cordão umbilical logístico que limita a manobra e reforça a polaridade em relação à existência de uma frente, uma retaguarda e um eixo de movimento. As unidades rompem esse cordão por sua conta e risco. A palavra francesa para esse cordão é noria, que se refere à cadeia de caminhões ou outros veículos que vão e vêm para manter as unidades abastecidas. Contra a noria, Hubin contrasta a ideia de "pulsação". A logística “pulsará” o material necessário conforme necessário, quando e onde for necessário. A pulsação implica em descontinuidade, o que normalmente significaria a morte do sistema noria e, em última instância, da manobra no solo, mas agora o que se quer é se livrar da linearidade e libertar a manobra.

Essas novas capacidades, combinadas com o perigo crescente para qualquer concentração de forças, mesmo na escala da companhia, tendem a diminuir o tamanho das unidades de manobra. Unidades menores em escalões mais baixos se tornarão mais importantes do que unidades maiores e mais altas. Pelotões com duas ou três patrulhas terão o papel que os batalhões já tiveram. À medida que os peões ficam menores, Hubin argumenta que, em algum momento, a integração de armas combinadas - que, no Exército Francês, atualmente ocorre em nível de companhia com o Subgrupo Tático de Armas Combinadas - também precisa parar. A integração abaixo do Subgrupo Tático de Armas Combinadas terá que dar lugar à cooperação. Elementos diferentes atuarão para atingir o mesmo objetivo, mas não necessariamente dentro da mesma unidade. Isso se compara com a abordagem do Comando de Treinamento e Doutrina para operações de múltiplos domínios, que parece se prender à brigada como o peão de manobra essencial à la Douglas Macgregor enquanto se acumula na lista de capacidades orgânicas da brigada.

A Morte da Homotetia

Patrulha francesa e malinense em frente às muralhas da Universidade de Sankore, em Timbuctu, 2013.

Os exércitos que terão o melhor desempenho no futuro, argumenta Hubin, são aqueles que abraçam a morte do que ele chama de homotetia. Homotetia é um termo que Hubin toma emprestado da geometria que se refere à dilatação de uma forma no espaço em relação a um ponto fixo. As formas (imagine triângulos ou retângulos) são congruentes, com uma sendo uma versão ampliada da outra. Eles também têm uma relação física particular entre si no espaço, visto que um é uma dilatação ou projeção do outro em relação a um único ponto específico. Em termos geométricos, as duas formas são homotéticas em relação a esse ponto. Hubin usa homotetia para descrever a estrutura de diferentes unidades de força terrestre em diferentes escalões (ou seja, divisão, brigada, companhia, etc.), sua relação umas com as outras no espaço e também sua relação com um ponto fixo. Cada escalão é uma dilatação da mesma forma, e cada um é homotético em relação a um ponto fixo, ou seja, um único ponto de comando e controle no qual todas as linhas convergem em última instância, e também um espaço fixo dentro do qual as unidades operam. Homotetia denota fixidez ou rigidez de forma (embora não de escala), de estrutura de comando e controle e da área física de operação.

A visão de Hubin não é diferente da insistência do Comando de Treinamento e Doutrina de que haja "relações de comando flexíveis" que "permitem a rápida realocação de capacidades e formações de múltiplos domínios em componentes funcionais e escalões para alcançar a convergência." O Comando de Treinamento e Doutrina quer “permitir a criação de proporções de força favoráveis por meio de organizações de tarefa rápida [economia de meios] e reorganização de fogos de reforço e capacidades entre os escalões”. Naturalmente, as operações multi-domínio requerem um fluxo de informações mais horizontal e linhas de comunicação mais flexíveis. Hubin, porém, quer ir mais longe. Hubin quer quebrar a rigidez tanto das formas das unidades de exército quanto de sua relação física umas com as outras, mais especificamente sua relação homotética em relação a um ponto fixo e, da mesma forma, a área fixa dentro da qual cada escalão opera. Os exércitos precisarão ser capazes de ajustar quem está subordinado a quem, criar ou suprimir níveis de responsabilidade e adaptar permanentemente o tamanho e o espaço de manobra de um determinado escalão. As “formas retilíneas” das brigadas e batalhões são “inerentemente restritivas” e não são mais necessárias, então é melhor que os exércitos estejam dispostos a recuar. Tudo deve ser fluido. A única estrutura predefinida que permanecerá, ele escreve, é o pelotão, a peça de artilharia e o "grupo de engenharia". Às vezes, vários deles serão agrupados. Da mesma forma, a subordinação terá que ser flexível. Um verá uma unidade blindada engajar-se sob as ordens de um comandante, mas então passará para o comando de outro seis horas depois e terminar sob as ordens de um terceiro no dia seguinte.

Soldados nigerinos em treinamento de combate urbano sob supervisão francesa, 2016.

Um dos problemas que Hubin vê com o sistema homotético é que, em um grau considerável, os comandantes nos níveis de divisão, regimento e companhia são responsáveis pelas mesmas tarefas de "concepção", "conduta" e "execução". Isso já se tornou problemático. Os comandantes de divisão têm pouco a ver com a condução das operações, e os comandantes de companhia estão ocupados demais para fazer qualquer coisa além da execução e, na maioria das vezes, precisam confiar no instinto. O mais interessante é o destino do capitão, o qual Hubin alinha com o nível de “grupo”, ou seja, o grupo tático de armas combinadas de nível de batalhão. “O grupo concebe com pressa e só pode conduzir”, escreve Hubin, “o que significa organizar, coordenar e articular os meios no espaço e no tempo e monitorar a coerência da ação”. Mas agora que a guerra está se tornando mais descentralizada e o combate é cada vez mais assunto de pequenos escalões, o sistema está perdendo toda a sua coerência. É preciso haver uma nova divisão de trabalho, que não tenha nada a ver com a hierarquia legada do sistema homotético, ou seja, divisões/brigadas, regimentos e companhias, e seja construída inteiramente em torno das funções de concepção, conduta e execução.

Hubin propõe três níveis de “organização tática”, que ele apresenta no capítulo 10 de Perspectivas, mas é relatado de forma mais sucinta em um e-mail de esclarecimento ao autor. Um está encarregado da “concepção de manobra”, que, explicou, “é dizer imaginar, criar e definir o que chamamos de ideia de manobra”. Outro nível está encarregado da execução, “isto é, encarregado da luta com seus equipamentos”. “Neste nível”, explica Hubin, “encontraremos patrulhas de blindados, infantaria, grupo de engenheiros, equipes de observação de artilharia, etc.” Entre esses dois níveis, Hubin continua:

Proponho criar um sistema original para controlar zonas de manobra para ter certeza de que os diferentes peões táticos que lutam em sua zona trabalhem em direção ao objetivo definido pelo nível de concepção, isto é, organizar os diferentes movimentos em sua área, para permitir uma circulação efetiva de informação, para organizar o que chamo de encontro logístico e, principalmente, para zelar pela segurança dos peões táticos. A novidade é que este nível não está vinculado a uma estrutura tática (pelotão, companhia, batalhão), mas sim a um trecho de terreno no qual a manobra está evoluindo. De certa forma, a organização tática terrestre se aproximará da organização do controle aéreo.

Hubin imagina pequenas unidades movendo-se pelo campo de batalha passando pelo controle de diferentes comandantes, cada um responsável por zonas específicas e responsáveis por coordenar atividades e também fornecer reabastecimento, em conformidade com o objetivo determinado pelo “escalão de concepção”. As unidades em seu espaço se associarão temporariamente e com flexibilidade.

Implícita aqui está a ideia de abandonar as correlações tradicionais entre a posição de um comandante e o grau de autoridade e responsabilidade. “É preciso quebrar a relação existente”, escreve ele, “entre a importância do nível de responsabilidade e o volume dos subordinados”. Hubin argumenta que tal transformação radical é necessária para derivar das novas tecnologias todos os seus benefícios. O Comando de Treinamento e Doutrina, em comparação, chega perto dessa ideia, argumentando a favor da concessão de autoridade de "escalão apropriado mais baixo" para acessar apoio de toda a gama de "domínios", como inteligência de ativos de vigilância nacional e, certamente, disparos de conjuntos recursos aos quais normalmente apenas escalões mais altos podem ter acesso imediato. Como vimos, no entanto, o Comando de Treinamento e Doutrina parece estar pensando em brigadas, enquanto Hubin está pensando em companhias e abaixo. Mais precisamente, Hubin está argumentando para não pensar mais em termos de escalões.

O princípio da surpresa no campo de batalha do futuro


Por muito tempo, explica Hubin, a manobra consistia em esconder a maior parte de sua força (o gros, o grosso), sua localização e suas intenções. Para onde estava indo? Grande parte da manobra consistia em esconder isso pelo maior tempo possível, de modo a se beneficiar de alguma medida de surpresa. Enquanto isso, os comandantes adversários precisam deduzir as respostas e, em última instância, apostar. No futuro, de acordo com Hubin, isso será mais difícil de fazer por causa de todos os sensores. O desafio será menos obter informações do que processá-las.

Isso não significa, porém, que a surpresa será impossível. Hubin usa a analogia dos jogadores de xadrez: ambos podem ver exatamente onde estão todas as peças, mas ainda é possível surpreender o oponente. As surpresas são intelectuais. “A surpresa se dá por quem tem a melhor visão da situação, quem capta mais cedo e com mais clareza o que está acontecendo, e quem sabe coordenar a ação aparentemente incoerente de suas peças de modo que o adversário fique comido pela dúvida e não saiba o que fazer.” Em todo caso, hoje em dia, mesmo a ideia de ter um gros é questionável na medida em que implica concentração. A manobra, de fato, terá "objetivos invertidos". Hubin explica que "o objetivo da manobra" será "manter a diluição de suas forças enquanto obtém a concentração daquelas do inimigo, a fim de dar melhores resultados aos fogos indiretos solo-solo e aos fogos ar-solo".

Arte de Comando em evolução


A visão de Hubin do futuro campo de batalha tem implicações para a evolução do estilo de comando. Por causa da impossibilidade de saber como o inimigo vai reagir ao que alguém faz, ele explica, o Exército Francês sempre ensinou o imperativo de confiar no próprio instinto. Decida, e decida rápido. Claro, ele observa, isso é um pouco como jogar roleta russa. O acerto pode determinar se alguém será ou não um herói nacional ou uma desgraça. Isso vai mudar: a quantidade de dados e o poder de computação atual e futuro tornam cada vez mais possível rodar modelos e simulações e rapidamente chegar a algo próximo a respostas objetivas. Dito isso, Hubin não se afasta muito de Foch e da ênfase do Exército Francês na iniciativa e no espírito ofensivo. Segundo Hubin, a iniciativa vai contar mais do que nunca. É preciso seguir em frente, o que significa que é preciso ter a iniciativa. Caso contrário, o comandante está terminado. Parte disso envolve "resolução", o que Hubin pensa ser necessário para arriscar a mistura de suas forças. Você quer estar dentro das formações do inimigo, não o contrário.

Hubin está atualizando os argumentos de Foch sobre disciplina intelectual, que Foch achava que os comandantes subordinados precisavam para se adaptar e improvisar enquanto ainda cumprem a intenção de seu comandante. Além disso, isso acompanha a ênfase do Exército Francês no "comando por intenção", às vezes referido pelo Exército dos EUA como "comando de missão" ou pelos franceses como "subsidiariedade". O panfleto de operações multi-domínio do Comando de Treinamento e Doutrina clama estranhamente por uma "sinergia baseada na intenção", que se resume a comandantes de unidade tomando a iniciativa de realizarem sinergias multi-domínio. Hubin, de acordo com a doutrina francesa, está empurrando o mandato de iniciativa para oficiais subalternos e suboficiais em um contexto no qual ele não espera que as estruturas de unidade sejam relevantes. Os comandantes subalternos de Hubin precisam ser capazes de caminharem corajosamente entre as hostes do inimigo e colocar sua confiança em outros que eles provavelmente não conhecerão. Ele admite que isso representa um grande desafio para a coesão da unidade. Historicamente, as unidades de combate preservaram a coesão por meio da proximidade (de preferência, permanecendo à vista de todos) e laços de familiaridade e confiança. Lutamos ombro a ombro com aqueles que conhecemos e com quem treinamos. As unidades também têm se empenhado em manter linhas de comunicação e suporte. Enquanto isso, eles fariam todo o possível para quebrar a coesão das forças opostas, o que Hubin observa ser um objetivo muito melhor do que tentar destruí-las materialmente.

Voltando aos Princípios da Guerra


Hubin insiste em uma reavaliação da economia de força e sua importância em relação à concentração de esforços. Como ele argumenta particularmente em seu segundo livro, La Guerre, a economia de forças muitas vezes é vista como algo que se faz simplesmente para permitir a concentração de esforços em outro lugar. Freqüentemente, é visto como o oposto da concentração de esforço. Pelo contrário, escreve ele em La Guerre, “a concentração dos esforços consiste em privilegiar o essencial em detrimento do secundário, enquanto a economia das próprias forças consiste em adequar otimamente os próprios meios à luz da situação e dos objetivos, tanto no princípio quanto nos campos secundários.” No futuro campo de batalha, a concentração de esforços perderá importância e se tornará quase impossível na medida em que é sinônimo de concentração física de recursos. A economia de forças assumirá uma nova importância e também será conduzida de forma diferente. Quanto mais unidades "puderem se ajustar de maneira rápida, frequente e fugaz, melhores serão suas chances de sucesso".

Essa percepção também tem o efeito de inverter outros princípios Fochianos, como a segurança, que, historicamente, foi pensada em termos de vanguardas e outras forças de proteção destinadas para 1) evitar surpresas e 2) preservar a liberdade de ação pelo maior tempo possível, ou seja, mantendo a liberdade de decidir quando, onde e como engajar a força principal. Agora, segurança significa não parar e até mesmo se misturar com o inimigo (imbricação). Além disso, na ausência de polaridade, de frente e de retaguarda, a segurança passa a estar na iniciativa e em ter o melhor entendimento da situação. “É compreensão, inteligência e conhecimento, muito mais do que poder, a origem da liberdade de ação.”

Toda guerra é assimétrica


Os argumentos de Hubin sobre economia de forças o levam a uma ideia poderosa, que, como veremos, dá a ele uma vantagem em relação às operações de múltiplos domínios: a estratégia no tipo de guerra convencional que Hubin imagina é semelhante à estratégia necessária para travar operações de guerra assimétrica, particularmente como Beaufre descreveu. Beaufre havia escrito que, na guerra assimétrica, o insurgente precisa entender que uma “decisão” não pode ser buscada na batalha - onde qualquer concentração de meios é o suicídio - mas sim por meio de uma “manobra externa”. Isso significa, por exemplo, formar a opinião pública no exterior ou, em geral, usar quaisquer alavancas de poder que alguém possa ter à disposição, exceto a força militar, para limitar a liberdade de ação do adversário e obter uma vantagem. Não se deve focar na luta tática - onde o objetivo é simplesmente aguentar - mas sim focar no nível estratégico. Isso significa, para o comandante assimétrico, "nenhuma manobra axial, nenhuma flecha no mapa e nenhuma massa para dissimular, mas, pelo contrário, uma manobra isotrópica relativa a toda a zona de ação." Mais importante, também significa que toda a campanha militar está subordinada a manobras não-militares, como guerra de informação, guerra psicológica e toda a panóplia de coisas que se faz para restringir a liberdade de ação dos adversários. Correspondentemente, é aqui que o contra-insurgente, aquele que busca derrotar uma campanha assimétrica, também precisa se concentrar.

Hubin está argumentando que a descrição acima de uma estratégia assimétrica correta corresponde à sua descrição de como as futuras batalhas convencionais serão travadas. Isso implica que, em vez de buscar decisões no campo de batalha, os futuros comandantes terão que se concentrar no nível estratégico, onde o combate pode, na melhor das hipóteses, complementar o exercício de uma ampla gama de atividades não-combatentes e não-militares. Hubin agora está de volta a um terreno familiar com respeito às visões militares francesas em duas coisas: a estrita subordinação da força militar às prioridades civis e agendas políticas ditadas por civis, e a visão, enraizada na doutrina de contra-insurgência colonial francesa e argumentada vigorosamente por Beaufre no que diz respeito ao conflito de grande potência, que o combate seja considerado apenas uma parte de uma "abordagem global" ou "estratégia total". Raramente se pode abrir caminho atirar para a vitória simplesmente atirando na maioria dos conflitos modernos, especialmente caso se deseje evitar a Terceira Guerra Mundial ou o Armagedom nuclear.

O salto da Legião Estrangeira em Timbuctu


Os americanos dirão que também acreditam nessas coisas. Eles também leram Clausewitz. Ainda assim, a literatura sobre operações multi-domínio (para não mencionar o histórico dos militares americanos em conflitos recentes) trai uma tendência das forças armadas americanas voltarem a pensar nas “manobras” de não-combate, que fazem parte da guerra total ou híbrida que os pensadores de operações multi-domínio identificam com os russos e chineses, como secundária à atividade militar e, em última instância, subordinada a ela. De acordo com o principal estudioso de estratégia militar da França, Hervé Coutau-Bégarie, líderes militares americanos, são culpados de um "culto à força decisiva", o qual resulta em "uma reticência, senão uma incapacidade, para compreender a subserviência das operações para fins políticos.” Na verdade, o Comando de Treinamento e Doutrina 525-3-1 identifica como um grande desafio a ameaça representada pela guerra política e de informação russa e, por exemplo, a ambição da Rússia de usar a guerra de informação para minar a solidariedade política entre os aliados da OTAN, mas sugere que o Exército pode lidar com o problema de alguma forma por meio de fogos e ações políticas próprias empreendidas por forças de operações especiais, como se os Boinas Verdes ou oficiais de operações psicológicas do Exército pudessem de alguma forma moldar a opinião pública europeia na forma como operariam na província de Anbar, no Iraque. Não há sugestão de que talvez o Exército precise se subordinar a uma estratégia determinada e administrada por civis, na qual sua própria contribuição na forma de forças terrestres e fogos associados sejam apenas um meio entre muitos para um amplo fim político. Também há surpreendentemente pouca atenção na literatura de operações múlti-domínio aos limites da guerra com grandes potências que as armas nucleares implicam. Para Beaufre, essa era a questão: não se pode lutar contra os soviéticos diretamente por causa do risco de uma guerra nuclear, então toda estratégia deve ser “indireta” ou “total” no sentido de relegar a ação militar a um papel limitado.

Lições para aprender

General Bernard Barrera e guarda-costas no Mali, 2013.

Hubin errou algumas coisas. Ele estava excessivamente otimista com relação à taxa na qual a tecnologia iria evoluir e mudar a guerra e, em particular, ele superestimou o grau de visibilidade que os comandantes teriam, especialmente das localizações e movimentos das forças “vermelhas”. Assim, o General Bernard Barrera, o comandante inicial da intervenção francesa no Mali em 2013, poderia lamentar a “névoa da guerra” em suas memórias da campanha, apesar da tecnologia avançada à sua disposição. No entanto, Hubin acredita que os eventos na Líbia, Nagorno-Karabakh, Síria e Ucrânia em grande parte validaram seus argumentos sobre os efeitos das novas tecnologias. A verdadeira questão, pergunta Hubin, é se os exércitos farão ou não o que ele acredita ser necessário, que é abandonar as estruturas de força homotéticas herdadas de séculos de prática. A isso se deve acrescentar a questão de se o estabelecimento de defesa americano pode aprender, finalmente, a pensar mais assimetricamente com respeito ao papel adequado e limitado da força em relação aos meios não-militares de impor sua vontade aos adversários.

Michael Shurkin é cientista política sênior da RAND Corporation, organização sem fins lucrativos e apartidária.

Bibliografia recomendada:

Opération Serval: Notes de guerre, Mali 2013.
General Barrera.

Leitura recomendada:


quinta-feira, 13 de maio de 2021

A contra-espionagem militar francesa questiona a instrumentalização de certas ONGs


Por Laurent Lagneau, Zone Militaire Opex360, 13 de maio de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 13 de maio de 2021.

Há dois anos, o Bahri Yanbu, cargueiro de bandeira saudita, era esperado no porto de Le Havre para, segundo se dizia na época, carregar uma carga de equipamentos militares com destino à Arábia Saudita. O local de investigação "Disclose" evocou oito caminhões equipados com sistema de artilharia (Camions équipés d’un système d’artillerieCAESAr), o que contesta uma fonte do governo francês, garantindo que nenhuma entrega desse tipo de material encomendado por Riad estava em andamento.

De qualquer forma, a chegada de Bahri Yanbu em Le Havre gerou protestos de pelo menos nove organizações não-governamentais (ONGs), contra qualquer entrega de armas à Arábia Saudita por causa de sua intervenção militar contra as milícias houthis (apoiadas pelo Irã) no Iêmen.

Rebeldes houthis.

O argumento apresentado por essas ONGs era que o CAESAr poderia ser usado pelas forças sauditas contra as populações civis. Nas ondas do RMC, a ministra das Forças Armadas, Florence Parly, confirmou que o Bahri Yanbu levaria em conta um embarque de armas, "a pedido de um contrato comercial", sem especificar sua natureza. “Que seja do conhecimento do governo francês, não temos evidências de que as vítimas no Iêmen sejam resultado do uso de armas francesas”, ela insistiu.

Entre as ONGs que se opõem a esse carregamento de armas a bordo do cargueiro saudita, algumas deram mais voz do que outras. Assim, a Human Rights Watch denunciou a "teimosia" da França em continuar suas entregas de armas à Arábia Saudita, "apesar do risco inegável e conhecido para as autoridades francesas" de seu possível uso "contra civis". Por seu lado, o Observatório de Armamentos apelou ao estabelecimento de uma "comissão parlamentar permanente para controlar a venda de armas [...] como no Reino Unido".

Também habituada a denunciar as vendas de armas francesas ao Egito (sem se preocupar com as entregas feitas a este país por terceiros...), a Anistia Internacional apelou à suspensão do carregamento do Yanbu Bahri “para estabelecer sobretudo se tratam-se dos canhões CAESAr”. E para garantir que "tal transferência seria de fato contrária às regras do Tratado de Comércio de Armas que a França assinou e ratificou".

CAESAr disparando.

Mas foi a ONG ACAT (Action des chrétiens pour l’abolition de la tortureAção Cristã pela Abolição da Tortura) que agiu judicialmente para impedir a saída do cargueiro saudita de Le Havre. Por fim, este último deixará a França sem a sua carga, tendo os estivadores recusado carregá-la a bordo.

Este caso não é um caso isolado. Regularmente, as ONGs fazem campanha contra certas vendas de armas francesas, que obedecem a considerações estratégicas. O pedido recente do Egito de mais 30 Rafales não foi esquecido... enquanto a compra de caças russos Su-35 pelo Cairo não teve a mesma desaprovação. Além disso, a entrega de 36 Rafales para a Índia também está na mira de algumas ONGs. Um deles - Sherpa - apresentou queixa contra X em abril passado para bloquear este contrato. E isso é baseado em alegações de corrupção apresentadas pelo site Mediapart. Alegações refutadas pela Dassault Aviation.

Além disso, os parlamentares estão fazendo perguntas. "Você notou uma intensificação da guerra de reputação e das operações de interferência realizadas por certas ONGs? "Perguntou o deputado Jean-Louis Thiérot ao General Éric Bucquet. o chefe da Direção de Inteligência e Segurança da Defesa (DRSD - serviço de contra-informação e contra-interferência do Ministério das Forças Armadas), durante recente audiência na Assembleia Nacional.

Quanto às atividades de certas ONGs contra a exportação de equipamentos militares franceses, o General Bucquet acredita que não são desprovidas de segundas intenções.

“Acho que quando uma ONG bloqueia um porto francês para impedir a exportação de armas, há um interesse econômico por trás disso, a dificuldade é prová-lo”, disse o chefe do DRSD aos parlamentares. E para concluir: “Se os militantes agem com toda inocência, com ingenuidade, o financiamento, eles, às vezes vem de poderes que trabalham contra os interesses da França."

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COMENTÁRIO: A guerra que não deveria ter ocorrido


Por Neri Zilber, New Lines Magazine, 13 de maio de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 13 de maio de 2021.

Israel e o Hamas chegaram a um acordo pragmático durante anos. Como isso foi derrubado?

Israel e Gaza estão em guerra novamente. Isso pode não ser nada novo, mas realmente não era para acontecer desta vez.

Após semanas de tensões, dias de confrontos e uma manhã particularmente violenta, a situação no terreno na Cidade Velha de Jerusalém na tarde de segunda-feira estava relativamente calma.

A fumaça sobe de uma torre destruída por ataques aéreos israelenses em meio a uma explosão de violência israelense-palestina na cidade de Gaza, 12 de maio de 2021. (Ahmed Zakot)

As forças de segurança israelenses foram desdobradas em massa após os confrontos anteriores com fiéis palestinos perto da Mesquita de Al-Aqsa, o terceiro local mais sagrado do Islã, e antes de uma marcha planejada de ultranacionalistas judeus pelos bairros muçulmanos para marcar o aniversário da captura da cidade na guerra de 1967.

A polícia de choque israelense que comandava as estreitas cercas de paralelepípedos da Cidade Velha parecia entediada, assim como os jovens palestinos que andavam por perto. Quando as autoridades israelenses decidiram mudar a rota da marcha provocativa, no pressuposto correto de que isso apenas inflamaria a situação, os comerciantes locais se alegraram: eles poderiam permanecer abertos, vendendo doces e bebidas aos devotos que observavam o jejum do Ramadã.

Isso ocorreu depois que grupos judeus foram proibidos de subirem ao complexo da Mesquita de Al-Aqsa, local do Segundo Templo Judeu, e depois que a Suprema Corte adiou a decisão sobre o despejo de várias famílias palestinas de suas casas em um bairro próximo em favor de colonos judeus.

Ao todo, parecia que após semanas de negligência maligna, se não intromissão ativa, o governo israelense havia recuado do limite.

Foguetes disparados pelo Hamas, Cidade de Gaza, 12 de maio de 2021.

O que poucos no estabelecimento de segurança nacional de Israel previram foi que o Hamas entraria ativamente na briga. O grupo militante, que controla Gaza, disparou uma enxurrada de foguetes contra Jerusalém pela primeira vez em sete anos.

No momento em que este artigo foi escrito, mais de 80 palestinos em Gaza foram supostamente mortos e quase 500 feridos, com os militares israelenses dizendo que pelo menos metade dos mortos eram terroristas; seis civis israelenses e um soldado foram mortos, com dezenas de outros civis feridos.

Recentemente, no último fim de semana, os militares israelenses avaliaram que o Hamas não estava procurando por uma grande escalada em Gaza.

Recentemente, no último fim de semana, os militares israelenses avaliaram que o Hamas não estava procurando por uma grande escalada em Gaza. O movimento islâmico em 2007 assumiu o controle do território costeiro em um violento golpe contra seus rivais seculares na Autoridade Palestina. Israel respondeu bloqueando o território (junto com o Egito) no pressuposto de que o governo do grupo entraria em colapso se fosse isolado.

Patrulha da polícia israelense na mesquita de Al-Aqsa.

Isso decididamente não aconteceu. O povo de Gaza sofreu muito sob o jugo do bloqueio, mas o Hamas manteve seu governo por meio de um regime de “aço e fogo”, como disse um oficial palestino: o uso da força e da intimidação. Mas uma solução para sua crise macroeconômica precisava ser encontrada. “O soberano perde”, o xeique Hassan Youssef, líder do Hamas na Cisjordânia, certa vez admitiu para mim, referindo-se ao fardo da governança.

Em uma tentativa de resistir ao bloqueio e garantir algum alívio humanitário e financeiro, o Hamas lançou várias rodadas escalatórias. “Negociações por meio de tiros de foguetes”, foi denominado, o uso calibrado da força para garantir concessões de Israel - e funcionou.

Em troca da suspensão do lançamento de foguetes ou, no jargão israelense, "silêncio", os dois inimigos jurados começaram a negociar indiretamente por meio dos auspícios egípcios, qataris e das Nações Unidas. Autoridades israelenses acabaram deixando tudo claro: o domínio continuado do Hamas sobre Gaza era muito mais preferível do que uma campanha terrestre sangrenta e prolongada através dos cercados estreitos e bunkers do território para deter os foguetes.

Benjamin Netanyahu.

Sob o governo do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, o regime do Hamas em Gaza recebeu pagamentos mensais em dinheiro do Qatar (enviado através do território israelense), melhorias na infraestrutura (planos para novas linhas de eletricidade e gasodutos de gás natural), milhares de autorizações para os habitantes de Gaza trabalharem novamente em Israel, e até mesmo uma travessia comercial independente com o Egito.

Sempre que Israel se desviou dos entendimentos alcançados ou demorou a implementá-los, o Hamas enviou um lembrete, geralmente na forma de foguetes. E depois de cada escalada, por mais severa que fosse, as negociações de cessar-fogo afirmaram tanto o “silêncio” quanto as medidas de flexibilização para Gaza.

O que levou os militares israelenses a avaliarem que, mesmo em meio às semanas de agitação, o Hamas não colocaria em risco esses ganhos e que as "regras do jogo" estabelecidas, como as autoridades de defesa chamam oficiosamente, seriam observadas.

Esta suposição explodiu sobre Jerusalém com o lançamento de foguetes na segunda-feira, o que previsivelmente atraiu uma resposta israelense severa: ataques aéreos imediatos em Gaza visando o Hamas e outras facções militantes, que continuaram em paralelo com os disparos de foguetes palestinos.

O Iron Dome em ação.

Portanto, a pergunta precisa ser feita: se não estava buscando alívio econômico ou outras formas de alívio como de costume, o que o Hamas está procurando alcançar politicamente ao romper com hábitos anteriores?

A estratégia de extrair concessões de Israel por meio do uso calibrado da força realmente começou pra valer depois de 2017, quando a autoridade do Hamas, Yahya Sinwar, se tornou o líder político do grupo em Gaza. Autoridades de segurança israelenses falam dele em termos reverentes, como um adversário implacável e astuto devido ao seu pragmatismo gelado e conhecimento da política israelense.

“Ele ficou na prisão israelense [por mais de duas décadas] e aprendeu sobre nós e nossa língua”, disse-me um alto oficial da defesa israelense no ano passado, reconhecendo que Sinwar tinha uma estratégia coerente que ainda estava sendo testada. Foi sob a supervisão de Sinwar que o Hamas teve sucesso em mudar drasticamente a política israelense em relação ao grupo - jogando com os temores israelenses de ocupação indefinida e estratégia de saída incerta após uma ofensiva terrestre em Gaza. Mas talvez simplesmente não fosse o suficiente.

Yahya Sinwar.

Sinwar quase perdeu seu posto nas eleições internas do Hamas em março passado, um claro sinal de descontentamento com ele dentro do movimento. O considerado homem forte de Gaza precisava de um segundo turno com um rival da velha guarda - visto como mais tradicional e linha-dura - para prevalecer. A título indicativo, na semana passada foi o sombrio comandante militar do Hamas, Mohammed Deif - não Sinwar - que lançou os ultimatos a Israel sobre Jerusalém.

“Este é nosso aviso final: se a agressão contra nosso povo em [Jerusalém] não parar imediatamente, não ficaremos de braços cruzados e a ocupação pagará um alto preço”, declarou Deif em um raro comunicado público.

Nos últimos dias, foi Ismail Haniyeh, líder político geral do Hamas que já foi visto como ofuscado por Sinwar, que fez pronunciamentos públicos sobre Jerusalém.

“Quando Jerusalém ligou, Gaza atendeu”, disse Haniyeh na terça-feira ao reafirmar que a nova política do Hamas agora ligaria inextricavelmente os dois.

Jerusalém, com certeza, sempre esteve no centro da identidade palestina. Mas, nas últimas semanas, o status da cidade contestada assumiu uma urgência ainda maior.

A bandeira do al-Fatah.

As eleições legislativas palestinas (realizadas pela última vez há 15 anos) foram canceladas abruptamente pelo presidente palestino Mahmoud Abbas no final de abril. O pretexto era Israel não permitir a votação em Jerusalém Oriental, com Abbas chamando a cidade de “linha vermelha” - embora seu verdadeiro motivo fosse provavelmente o medo de uma péssima exibição da sua facção Fatah.

O Hamas, por sua vez, seguiu o exemplo, responsabilizando Israel também e competindo com o Fatah por quem melhor poderia defender os interesses palestinos na cidade sagrada. Não é por acaso que, ao lutar contra Israel, o Hamas chamou sua recente escalada de "Operação Espada de Jerusalém".

“Tudo o que vimos em Jerusalém desde então [as eleições foram canceladas] apenas confirma a decisão [de cancelar as eleições]”, uma autoridade palestina me disse recentemente. "Estávamos certos."

Autoridades da inteligência israelense alegam que o Hamas ajudou a escalar ainda mais a agitação de Jerusalém em uma tentativa de desestabilizar não apenas o controle de Israel sobre a cidade, mas também a Autoridade Palestina de Abbas na Cisjordânia adjacente - um objetivo de longo prazo do grupo. Com a rota política bloqueada para eles através das urnas, o Hamas pode ter tomado uma decisão estratégica de tentar um golpe, constrangendo a Autoridade Palestina a entrar na briga e arruinando seu relacionamento com Israel (até agora se absteve de fazê-lo).

Mais preocupante do ponto de vista de Israel é o impacto que a escalada teve na política interna israelense e na sociedade.


Nas últimas noites, tumultos violentos ocorreram em cidades mistas de árabes e judeus dentro de Israel. Segundo relatos, gangues itinerantes de jovens árabes-israelenses queimaram sinagogas, atacaram transeuntes judeus e ergueram bandeiras palestinas em alguns locais em meio a confrontos intercomunais que o comissário da polícia de Israel considerou os piores em décadas. Vigilantes judeus ultranacionalistas responderam atacando empresas e motoristas árabes, com autoridades israelenses considerando o envio de militares para ajudar a polícia a reprimir a crescente anarquia.

A política israelense já estava no fio da navalha após quatro eleições inconclusivas em dois anos.

A política israelense já estava no fio da navalha após quatro eleições inconclusivas em dois anos. Na esteira da pesquisa de março mais recente, Netanyahu não conseguiu formar uma coalizão governamental; essa tarefa agora foi para um grupo heterogêneo de partidos - de esquerda, centro e direita - cujo único objetivo comum é derrubar o primeiro-ministro.


Os últimos combates Hamas-Israel combinados com a violência comunal árabe-israelense podem ter enterrado essas esperanças. A facção islâmica árabe-israelense suspendeu temporariamente as negociações da coalizão na segunda-feira em meio à crise de segurança, e os líderes da oposição se manifestaram em apoio ao governo. É uma questão em aberto se as partes díspares desta coalizão incipiente podem ficar juntas em meio à emergência de segurança e tensões crescentes.

Quando esta última rodada de violência terminar - e certamente terminará, seja em dois dias, duas semanas ou dois meses - nada terá mudado, exceto o número de mortos em ambos os lados. A necessidade de todos na Terra Santa viverem juntos em paz só terá se tornado mais aguda.


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LIVRO: Edelweiss, o 4º Regimento de Caçadores, dos Alpes ao Saara


Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 13 de maio de 2021.

O livro Edelweiss, le 4e Régiment de chasseurs, des Alpes au Sahara (“Edelweiss, o 4º Regimento de Caçadores, dos Alpes ao Saara”) foi apresentado no sábado, 8 de maio de 2021, no centro cultural de Gap, no departamento dos Altos Alpes (Hautes-Alpes). Um público de leitores veio conhecer o Coronel Nicolas de Chilly, comandante do regimento, e o Capitão Éloi Panel, coautor do livro, para um sessão de autógrafos.

O 4º regimento de caçadores (4e Régiment de Chasseurs, 4e RCh) é uma unidade de cavalaria blindada do exército francês. O antigo regimento de cavalaria traça linhagem desde o Ancien Régime, e é hoje o único regimento de cavalaria blindada da 27ª Brigada de Infantaria de Montanha (27e Brigade d'Infanterie de Montagne, 27e BIM). Está estabelecido em Gap, nos Hautes-Alpes, desde 1983 no quartel General Guillaume.

O Coronel Nicolas de Chilly, comandante do 4e RCh (à esquerda) e o Capitão Éloi Panel, o autor, em contato com o público durante o lançamento nas livrarias, 8 de maio de 2021.

Um livro para descobrir o 4º Regimento de Caçadores: Quando chegou à testa do 4º RCh há quase dois anos, o Coronel Nicolas de Chilly percebeu que havia um vazio e que faltava um objeto para contar o que era o 4º Regimento de Caçadores de Gap. Esta convicção só foi reforçada quando o comandante do corpo recebeu com grande emoção as muitas homenagens dos cidadãos haut-alpins, quando quatro soldados do regimento perderam a vida no Mali em 2019.

A aposta valeu e vindicou os autores porque o público correu para a sessão de autógrafos do livro para a maior satisfação do patrono dos caçadores blindados. "Recebemos muitos testemunhos calorosos e amigáveis", comentou o Coronel de Chilly após três horas e meia de assinaturas. Ele acrescentou, feliz que se tratou de "um grande sucesso com um público muito eclético", com franceses e estrangeiros vindo muito além do departamento halt-alpin, "tínhamos leitores de Lyon na ocasião”.



Parece que a escolha de uma retrospectiva contemporânea dos últimos 15 anos de envolvimento do 4º RCh, contada em imagens e pontuada por testemunhos autênticos, tem conquistado o público.

“Acho que há uma curiosidade real em conhecer melhor os soldados do Regimento no dia-a-dia e em suas muitas missões”, explicou o comandante do regimento. “Temos muitos rostos que às vezes sofrem ou sorriem neste livro, mas isso atesta o que vivemos no dia-a-dia.”

Mais de cinquenta exemplares do livro foram vendidos em uma tarde. Um sucesso que sugere uma provável reimpressão do livro.

O edelvais: a flor que resiste a todas as tempestades

Com o nome de uma flor que se tornou um símbolo de força e característico das tropas alpinas europeias e também um pedacinho dos Hautes Alpes levados por soldados quando se alistam e servem no exterior, este livro já faz grande sucesso antes mesmo de chegar às livrarias. Com 1.500 exemplares editados, 2/3 já foram pré-encomendados na internet, o que muito provavelmente implica uma reedição. Uma reedição, cujos benefícios financeiros reverterão diretamente para a associação "Entraide Montagne" (Ajuda Mútua de Montanha) que presta assistência moral, material e jurídica em caso de sinistro relacionado com o exercício da profissão.

O livro é em capa-dura com fotografias de altíssima qualidade, contando 192 páginas.

“Temos muitos rostos que às vezes sofrem ou sorriem neste livro, mas isso atesta o que vivemos no dia-a-dia.”
- Coronel Nicolas de Chilly.

Dos Alpes ao Saara

A história moderna do 4e RCh vai das duas guerras mundiais à Indochina e Argélia. Tornou-se o 27º Regimento de Reconhecimento da Brigada Alpina em 1963, ao regressar do Norte de África, quando se juntou à guarnição de La Valbonne (Quartier Maréchal des Logis de Langlade). Em 1983, o 4º Regimento de Caçadores mudou-se para Gap em um novo quartel que recebeu o nome de “Quartier Général Guillaume”. Na época, era equipado com cinquenta carros blindados AML-60 (morteiro) e AML-90 (canhão).

Entrega da fourragère da Croix de Guerre 1914-1918 a um jovem caçador do 4e RCh.

O regimento participa das seguintes operações em várias operações recentes do exército francês. Foi destacado no Kosovo com a Operação Trident, no BIMECA de 8 de outubro de 2001 a fevereiro de 2002, depois na BATFRA de 10 de outubro de 2005 a fevereiro de 2006. Também participou na Operação Épervier (Chade), desdobrada de fevereiro de 1999 a junho de 1999, então de junho de 2000 a outubro de 2000, de fevereiro de 2003 a junho de 2003, de outubro de 2005 a fevereiro de 2006, de junho de 2008 a outubro de 2008 e finalmente de junho de 2012 a outubro de 2012. Ele também participa da Operação Pamir, no Afeganistão, com os seguintes desdobramentos:
  • BATFRA - N2 de maio de 2002 a agosto de 2002;
  • BATFRA - N8 de maio de 2004 a agosto de 2004;
  • BATFRA - N17 de outubro de 2007 a janeiro de 2008.
Grupo Tático Interarmas de Kapisa (Groupement tactique interarmes de Kapisa):
  • TF-Black Rock de dezembro de 2009 a junho de 2010
De 14 a 23 de março de 2009, o regimento participou da Batalha do Alasai, na região de Kapisa.
  • TF-Allobroges de junho de 2010 a dezembro de 2010
  • BG-TIGER de novembro de 2011 a maio de 2012.
Soldados do 4º RCh no Vale do Alasai, no Afeganistão, em 20 de abril de 2009. Em primeiro plano há um AMX-10 RC, em segundo viaturas VAB e um VBL.

O regimento foi enviado duas vezes para a Operação Licorne (Costa do Marfim), com o contingente Licorne de 8 de março de 2005 a junho de 2005 e depois Licorne de 27 de outubro de 2011 a abril de 2012. O 4e fez parte do 15º mandato das forças francesas desdobradas na Croácia e Bósnia (IFOR/SFOR), de outubro de 2001 a fevereiro de 2002.

Os caçadores também lutaram na República Centro-Africana (Operação Sangaris) de 2014 e 2015. De 4 a 6 de agosto de 2014, o 4e RCh participou da Batalha de Batangafo onde se destacou durante três dias de confronto com uma incursão de 700km. O regimento foi envolvido com a Operação Barkhane (Mali e Níger) em 2014, 2016, 2017 e 2019. De 7 a 19 de junho de 2019, ele participou da operação de grande escala Aconite no Mali.

Em 25 de novembro de 2019, ao sul de In Delimane (nordeste do Mali), durante uma operação noturna antiterrorismo, dois helicópteros colidiram durante uma operação do Grupamento de Comandos de Montanha (Groupement de commandos de montagne). Todas as tripulações morreram durante o acidente. Seis membros dos GCM são identificados entre as vítimas, incluindo quatro do 4º RCh.

Carros AMX-10 RC em manobras em Gap.

O único regimento de cavalaria blindado da 27ª Brigada de Infantaria de Montanha, o 4º Regimento de Chasseurs é a única unidade de cavalaria de montanha do Exército francês. Essa dupla especificidade o predispõe a lutar com seus equipamentos principais em condições climáticas adversas e em terrenos íngremes.

Atua fornecendo informações com movimentos rápidos e combatendo com fogos poderosos.

Tiro de AMX-10 RC em montanhas de inverno.

Capaz de usar canhões de 105mm e 20mm, bem como mísseis de médio alcance (missiles moyenne portée, MMP), o regimento é capaz de neutralizar todos os tipos de ameaças encontradas em operações externas.

O 4e RCh fornece o grupo de transporte e de apoio blindado de montanha ao Grupamento de Comandos de Montanha. O lema do regimento é "Toujours prêt, toujours volontaire" ("Sempre pronto, sempre voluntario").

Toujours prêt, toujours volontaire.

Bibliografia recomendada:

TANKS:
100 years of evolution.
Richard Ogorkiewiez.

Leitura recomendada:


GALERIA: Mulas ou Blindados?12 de abril de 2021.


O Estilo de Guerra Francês, 12 de janeiro de 2020.


FOTO: Comandos camuflados no inverno21 de setembro de 2020.