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sábado, 10 de julho de 2021

O PM provisório do Haiti confirma pedido de tropas dos EUA para o país


Por Joshua Goodman, Astrid Suárez, Evens Sanon e Dánica Coto, Associated Press, 10 de julho de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 10 de julho de 2021.

PORT-AU-PRINCE, Haiti (AP) - O governo interino do Haiti disse na sexta-feira que pediu aos EUA que enviassem tropas para proteger a infraestrutura principal, enquanto tenta estabilizar o país e preparar o caminho para as eleições após o assassinato do presidente Jovenel Moïse.

“Definitivamente precisamos de ajuda e pedimos ajuda aos nossos parceiros internacionais”, disse o primeiro-ministro interino Claude Joseph à Associated Press em uma entrevista, recusando-se a fornecer mais detalhes. “Acreditamos que nossos parceiros podem ajudar a polícia nacional a resolver a situação.”

Joseph disse que ficou consternado com os oponentes que tentaram se aproveitar do assassinato de Moïse para tomar o poder político - uma referência indireta a um grupo de legisladores que declararam sua lealdade e reconheceram Joseph Lambert, chefe do desmantelado Senado do Haiti, como presidente provisório e Ariel Henry, a quem Moïse designou como primeiro-ministro um dia antes de ser morto, como primeiro-ministro.

“Não estou interessado em uma luta pelo poder”, disse Joseph na breve entrevista por telefone, sem mencionar o nome de Lambert. “Só há uma maneira das pessoas se tornarem presidentes no Haiti. E isso é por meio de eleições.”

ARQUIVO - Nesta foto de arquivo de 7 de fevereiro de 2020, o presidente haitiano Jovenel Moïse chega para uma entrevista em sua casa em Pétion-Ville, um subúrbio de Port-au-Prince, Haiti. Moïse foi assassinado em um ataque a sua residência privada na manhã de quarta-feira, 7 de julho de 2021, e a primeira-dama Martine Moïse foi baleada no ataque noturno e hospitalizada, de acordo com um comunicado do primeiro-ministro interino do país. (Foto AP / Dieu Nalio Chery, Arquivo)

Joseph falou poucas horas depois que o chefe da polícia da Colômbia disse que os colombianos implicados no assassinato de Moïse foram recrutados por quatro empresas e viajaram para o país caribenho em dois grupos via República Dominicana. Enquanto isso, os EUA disseram que enviariam altos funcionários do FBI e da Segurança Interna para ajudar na investigação.

O chefe da Polícia Nacional do Haiti, Léon Charles, disse que 17 suspeitos foram detidos no assassinato descarado de Moïse, que surpreendeu uma nação que já sofrendo com a pobreza, da violência generalizada e da instabilidade política.

À medida que a investigação avançava, o assassinato assumia o ar de uma complicada conspiração internacional. Além dos colombianos, entre os detidos pela polícia estavam dois haitianos americanos, descritos como tradutores dos agressores. Alguns dos suspeitos foram presos em uma operação na embaixada de Taiwan, onde eles teriam buscado refúgio.

Em entrevista coletiva na capital da Colômbia, Bogotá, o General Jorge Luis Vargas Valencia disse que quatro empresas estiveram envolvidas no “recrutamento e reunião dessas pessoas” implicadas no assassinato, embora não tenha identificado as empresas porque seus nomes ainda estavam sendo verificados.

O Comandante das Forças Armadas da Colômbia, General Luis Fernando Navarro, ao centro, o Diretor da Polícia Nacional, General Jorge Luis Vargas, à direita, e o Comandante do Exército, General Eduardo Zapateriro, dão entrevista coletiva sobre a suposta participação de ex-militares colombianos no assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse , em Bogotá, Colômbia, sexta-feira, 9 de julho de 2021. (Foto AP / Ivan Valencia)

Dois dos suspeitos viajaram para o Haiti via Panamá e República Dominicana, disse Vargas, enquanto um segundo grupo de 11 pessoas chegou ao Haiti em 4 de julho vindo da República Dominicana.

Em Washington, a secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, disse que altos funcionários do FBI e do Departamento de Segurança Interna serão enviados ao Haiti "assim que possível para avaliar a situação e como podemos ajudar".


“Os Estados Unidos continuam engajados e em estreitas consultas com nossos parceiros haitianos e internacionais para apoiar o povo haitiano após o assassinato do presidente”, disse Psaki.

Após a solicitação do Haiti por tropas americanas, um alto funcionário do governo reiterou os comentários anteriores de Psaki de que o governo está enviando funcionários para avaliar como isso pode ser mais útil, mas acrescentou que não há planos para fornecer assistência militar no momento.

Os EUA enviaram tropas ao Haiti após o último assassinato presidencial no país, o assassinato do presidente Vilbrun Guillaume Sam em 1915 nas mãos de uma multidão enfurecida que havia invadido a embaixada francesa onde ele se refugiou.

No Haiti, o chefe da Polícia Nacional, Léon Charles, disse que outros oito suspeitos ainda estavam foragidos e sendo procurados.

Suspeitos do assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, são jogados no chão após serem detidos, na Direção-Geral da Polícia em Port-au-Prince, Haiti, quinta-feira, 8 de julho de 2021. Um juiz haitiano envolvido na investigação do assassinato disse que o presidente Moïse foi baleado uma dúzia de vezes e seu escritório e quarto foram saqueados. (Foto AP / Jean Marc Hervé Abélard)

O juiz investigativo Clément Noël disse ao jornal francês Le Nouvelliste que os haitianos-americanos presos, James Solages e Joseph Vincent, disseram que os agressores planejavam inicialmente prender Moïse, não matá-lo. Noël disse que Solages e Vincent estavam atuando como tradutores para os agressores.

O mesmo jornal citou o promotor de Port-au-Prince Bed-Ford Claude dizendo que ordenou que uma unidade de investigação da Força Policial Nacional interrogasse todos os agentes de segurança próximos a Moïse. Entre eles estão o coordenador de segurança de Moïse, Jean Laguel Civil, e Dimitri Hérard, chefe da Unidade de Segurança Geral do Palácio Nacional.

“Se você é o responsável pela segurança do presidente, por onde você esteve? O que você fez para evitar esse destino para o presidente?” Claude disse.

O ataque, ocorrido na casa de Moïse antes do amanhecer de quarta-feira, também feriu gravemente sua esposa, que foi levada de avião para tratamento em Miami.

Soldados chegam para troca da guarda na fronteira com o Haiti em Jimani, na República Dominicana, sexta-feira, 9 de julho de 2021. O presidente dominicano Luís Abinader ordenou o fechamento da fronteira na quarta-feira depois que o governo do Haiti informou que pistoleiros assassinaram o presidente haitiano Jovenel Moïse. (Foto AP / Matias Delacroix)

Joseph assumiu a liderança com o apoio da polícia e dos militares e declarou um "estado de sítio" de duas semanas. Port-au-Prince já está em estado de alerta em meio ao crescente poder das gangues que deslocaram mais de 14.700 pessoas só no mês passado enquanto incendiavam e saqueavam casas em uma luta por território.

O assassinato paralisou a normalmente movimentada capital, mas Joseph exortou o público a voltar ao trabalho.

Vargas prometeu a cooperação total da Colômbia, e as autoridades identificaram 13 dos 15 colombianos implicados no ataque como militares aposentados, 11 capturados e dois mortos. Eles variam em patente de tenente-coronel a soldado.

O comandante das Forças Armadas da Colômbia, General Luis Fernando Navarro, disse que eles deixaram a instituição entre 2018 e 2020.

“No mundo do crime existe o conceito de homicídio de aluguel e foi o que aconteceu: eles contrataram alguns membros da reserva (do exército) para esse fim e têm que responder criminalmente pelos atos que cometeram”, disse o general reformado do Exército Colombiano Jaime Ruiz Barrera.

Altos militares das forças de segurança da Colômbia viajarão ao Haiti para ajudar na investigação.

Soldados colombianos treinados pelos americanos são fortemente recrutados por empresas de segurança privada em zonas de conflito global por causa de sua experiência em uma guerra de décadas contra rebeldes esquerdistas e poderosos cartéis de drogas.

Dois suspeitos do assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, são transferidos para serem exibidos à imprensa na Direção Geral da Polícia em Port-au-Prince, Haiti, quinta-feira, 8 de julho de 2021. Moïse foi assassinado em um ataque a sua residência privada na quarta-feira. (Foto AP / Joseph Odelyn)

A esposa de um ex-soldado colombiano sob custódia disse que ele foi recrutado por uma empresa de segurança para viajar à República Dominicana no mês passado.

A mulher, que se identificou apenas como “Yuli”, disse à Rádio W da Colômbia que seu marido, Francisco Uribe, foi contratado por US$ 2.700 por mês por uma empresa chamada CTU para viajar à República Dominicana, onde foi informado que forneceria proteção a algumas famílias poderosas. Ela diz que falou com ele pela última vez às 22h, quarta-feira - quase um dia após o assassinato de Moïse - e disse que estava de guarda em uma casa onde ele e outros estavam hospedados.

“No dia seguinte, ele me escreveu uma mensagem que parecia uma despedida”, disse a mulher. “Eles estavam correndo, eles foram atacados. ... Esse foi o último contato que tive.”

A mulher disse que sabia pouco sobre as atividades do marido e nem sabia que ele havia viajado para o Haiti.

Suspeitos do assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, são exibidos à mídia na Direção Geral da Polícia em Port-au-Prince, Haiti, quinta-feira, 8 de julho de 2021. Moïse foi assassinado em um ataque a sua residência privada na manhã de quarta-feira. (Foto AP / Joseph Odelyn)

Uribe está sendo investigado por seu suposto papel em execuções extrajudiciais cometidas pelo Exército Colombiano treinado pelos EUA há mais de uma década. Os registros do tribunal colombiano mostram que ele e outro soldado foram acusados de matar um civil em 2008, que mais tarde eles tentaram apresentar como um criminoso morto em combate.

A CTU em questão pode ser a CTU Security em Miami-Dade. A empresa possui dois endereços listados em seu website. Um era um armazém fechado sem nenhuma placa indicando a quem pertencia. O outro é um escritório simples com o nome de uma empresa diferente, onde a recepcionista diz que o proprietário da CTU vem uma vez por semana para coletar a refeição e realizar reuniões ocasionais.

Solages, 35, descreveu-se como um "agente diplomático certificado", um defensor das crianças e político em ascensão em um site agora removido para uma instituição de caridade que ele começou em 2019 no sul da Flórida para ajudar um residente de sua cidade natal, Jacmel, na costa sul do Haiti.

Solages também disse que trabalhou como guarda-costas na Embaixada do Canadá no Haiti, e em sua página do Facebook, que também foi retirada após a notícia de sua prisão, ele exibiu fotos de veículos militares blindados e uma foto de si mesmo em frente a uma bandeira americana.

A polícia revistou o distrito de Morne Calvaire de Pétion-Ville em busca de suspeitos que permanecem foragidos pelo assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse em Port-au-Prince, Haiti, sexta-feira, 9 de julho de 2021. Moïse foi assassinado em 7 de julho após homens armados serem atacados sua residência privada e feriu gravemente sua esposa, a primeira-dama Martine Moïse. (Foto AP / Joseph Odelyn)

O Departamento de Relações Exteriores do Canadá divulgou um comunicado que não se referia a Solages pelo nome, mas disse que um dos homens detidos por seu suposto papel no assassinato havia sido "temporariamente empregado como guarda-costas de reserva" em sua embaixada por um contratante privado.

Chamadas para a caridade e associados de Solages ficaram sem resposta. No entanto, um parente no sul da Flórida disse que Solages não tem nenhum treinamento militar e não acredita que ele esteja envolvido no assassinato.

“Sinto que meu filho matou meu irmão porque amo meu presidente e amo James Solages”, disse Schubert Dorisme, cuja esposa é tia de Solages, ao WPLG em Miami.

A polícia guarda suspeitos do assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moise, detidos na Direção Geral da Polícia em Port-au-Prince, Haiti, quinta-feira, 8 de julho de 2021. Moïse foi assassinado em um ataque a sua residência privada na manhã de quarta-feira. (Foto AP / Jean Marc Hervé Abélard)

A embaixada de Taiwan em Port-au-Prince disse que a polícia prendeu 11 pessoas que tentaram invadir o complexo na manhã de quinta-feira. Não deu detalhes de suas identidades ou uma razão para a invasão, mas em um comunicado referiu-se aos homens como “mercenários” e condenou veementemente o “assassinato cruel e bárbaro” de Moïse.

“Quanto aos suspeitos estarem envolvidos no assassinato do presidente do Haiti, isso precisará ser investigado pela polícia haitiana”, disse o porta-voz das Relações Exteriores, Joanne Ou, à Associated Press em Taipei.

A polícia foi alertada pela segurança da embaixada enquanto diplomatas taiwaneses trabalhavam em casa. O Haiti é um dos poucos países com relações diplomáticas com Taiwan.

Suárez reportou de Bucaramanga, Colômbia. Goodman reportou de Miami. O cinegrafista da AP Pierre-Richard Luxama em Port-au-Prince e Johnson Lai em Taipei, Taiwan, contribuíram.


Bibliografia recomendada:

Violência e Pacificação no Caribe.
Coronel Fernando Velôzo Gomes Pedrosa.

A república negra:
Histórias de um repórter sobre as tropas brasileiras no Haiti.
Luis Kawaguti.

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terça-feira, 25 de maio de 2021

O ex-líder golpista do Mali assume o poder após a prisão do presidente

O vice-presidente interino, Coronel Assimi Goita, liderou um golpe no Mali em agosto. (Arquivo: Malik Konate / AFP)

Da Al-Jazeera, 25 de maio de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 25 de maio de 2021.

O vice-presidente interino de Mali, Coronel Assimi Goita, disse que tomou o poder depois que o presidente de transição e o primeiro-ministro não o consultaram sobre a formação de um novo governo.

“Este tipo de passo atesta o desejo claro do presidente de transição e do primeiro-ministro de tentar violar o estatuto de transição”, disse ele na terça-feira (25/05), descrevendo as ações da dupla como uma “intenção demonstrável de sabotar a transição”.

As eleições serão realizadas no próximo ano conforme planejado, disse ele.


O presidente Bah Ndaw e o primeiro-ministro Moctar Ouane foram presos e levados para uma base militar fora da capital na segunda-feira, o que gerou rápida condenação de potências internacionais, algumas das quais o chamaram de “tentativa de golpe”.

Os dois homens eram responsáveis por um governo de transição criado após um golpe militar em agosto que derrubou o presidente Ibrahim Boubacar Keita. Eles foram encarregados de supervisionar o retorno às eleições democráticas.

Goita, que liderou o golpe de agosto, orquestrou as prisões depois que dois outros líderes do golpe foram retirados de seus cargos no governo em uma remodelação do gabinete na segunda-feira.

Em uma declaração lida por um assessor na televisão nacional, Goita disse que as eleições no próximo ano para restaurar um governo eleito aconteceriam conforme planejado.

“O vice-presidente de transição se viu obrigado a agir para preservar a carta de transição e defender a república”, disse o comunicado.

O mundo reage

Há preocupações de que a situação possa piorar a instabilidade no país da África Ocidental, onde grupos armados ligados à al-Qaeda e ao ISIL (ISIS) controlam grandes áreas do norte e do centro e realizam ataques frequentes contra o exército e civis.

As Nações Unidas, a União Europeia e os países regionais condenaram as ações dos militares e exigiram a libertação imediata dos líderes detidos.

A França condenou o ato “violento” de Goita “com a maior firmeza”.

“Exigimos a libertação” dos dois líderes, disse o ministro das Relações Exteriores, Jean-Yves Le Drian.

“A segurança deles deve ser garantida, assim como a retomada imediata do processo de transição acordado”, acrescentou Le Drian.

O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, tuitou um apelo à calma e pediu a “libertação incondicional” dos líderes.

O chefe da União Africana, Felix Tshisekedi, que também é o presidente da República Democrática do Congo, fez eco ao apelo, dizendo que “condenou veementemente qualquer ação que vise desestabilizar o Mali”.

Uma delegação da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Communauté économique des États de l'Afrique de l'Ouest, CEDEAO) deverá visitar o Mali na terça-feira.

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terça-feira, 18 de maio de 2021

A União Africana é conciliadora com a Junta militar do Chade, mas estabelece suas condições

General Mahamat Idriss Déby, presidente do Conselho Militar de Transição e filho do falecido presidente chadiano Idriss Déby Itno durante o funeral de seu pai em 23 de abril de 2021 (Christophe Petit Tesson / AFP)

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 18 de maio de 2021.

Cinco dias após a publicação do seu relatório sobre o Chade, o Conselho de Paz e Segurança (Conseil de paix et sécurité, CPS) da União Africana ainda não comunicou os detalhes das suas decisões.

Não haverá sanções contra a junta militar chadiana, mas um desejo afirmado de apoiar o processo de transição. Depois de procrastinar por quatro semanas, o Conselho de Paz e Segurança da União Africana se dividiu na sexta-feira, 14 de maio, em uma posição bastante conciliatória para o novo poder.

A missão de averiguação da União Africana, entretanto, recomendou em seu relatório exercer "pressão" para que cheguemos, como no Mali, a uma transição liderada por um presidente civil e um vice-presidente do exército. Mas esta recomendação já não aparece no texto aprovado pelo CPS na sexta-feira. Os numerosos apoiantes de Mahamat Idriss Déby, à frente do Conselho Militar de Transição (Conseil militaire de transitionCMT) e do país hoje, destacaram a necessidade de “preservar a estabilidade do Chade e de toda a região”, segundo as fontes na sede da organização africana.

Mas isso não significa dar um cheque em branco no chefe de Estado. O CPS quer que haja "uma divisão equilibrada de poder" entre os militares, que têm o quase monopólio, e o governo civil. Outra condição que deve fazer o negócio da oposição e da sociedade civil desta vez: os membros do Conselho Militar de Transição não poderão concorrer nas próximas eleições.


A missão da União Africana afirma no relatório apresentado ao Conselho de Paz e Segurança que o chefe da junta militar no poder, General Mahamat Idriss Déby, assegurou-lhes que “os 15 membros do Conselho Militar de Transição [...] não se apresentarão na próxima eleição, ao final da transição de 18 meses”. O CPS endossou essa promessa e decidiu estendê-la a todos os membros do governo de transição enquanto a carta de transição é omissa sobre o assunto.

A União Africana irá, portanto, nomear rapidamente um enviado especial que será responsável em particular por "ajudar o Chade a restaurar a ordem constitucional". Isso requer a organização de um diálogo nacional inclusivo, que deve levar a uma carta de transição "emendada", à reconciliação nacional e a uma nova Constituição para o país. Com o objetivo de organizar “eleições livres, justas e confiáveis” após um período único de 18 meses.

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domingo, 2 de maio de 2021

A junta do Chade nomeia governo de transição

A foto do folheto do Palácio Presidencial do Chade, tirada em 27 de abril de 2021, mostra o General Mahamat Idriss Déby, líder do TMC do Chade. (Brahim Adji / AFP)

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 2 de maio de 2021.

A junta militar que assumiu o poder no Chade no mês passado após o choque da morte do líder veterano Idriss Déby Itno nomeou um governo de transição no domingo, disse o porta-voz do Exército.

Segundo informações da France 24, o filho de Déby, de 37 anos, Mahamat, que assumiu o comando do chamado Conselho Militar de Transição (Conseil militaire de transitionCMT), nomeou um governo composto por 40 ministros e vice-ministros e criou um novo ministério de reconciliação nacional, disse o porta-voz em um comunicado transmitido pela televisão. O novo ministério será chefiado por Acheick Ibn Oumar, um ex-chefe rebelde que se tornou conselheiro diplomático da presidência em 2019.

Embora o principal líder da oposição, Saleh Kebzabo, não tenha sido nomeado para o governo de transição, outra figura da oposição, Mahamat Ahmat Alhabo, será ministro da Justiça, anunciou o porta-voz da junta militar Azem Bermandoa Agouna. Os partidos de oposição rejeitaram a promessa da junta de restaurar a democracia no Chade dentro de 18 meses. No domingo anterior, a junta militar anunciou o levantamento do toque de recolher noturno introduzido após a morte de Déby. O exército disse que Déby morreu em decorrência de ferimentos sofridos em combates com as forças rebeldes no norte do país saheliano no mês passado.


A tensão está alta no país, com os militares dizendo que seis pessoas foram mortas na semana passada durante manifestações na capital N'Djamena e no sul contra a formação da junta. Um grupo de ajuda local calculou o número de mortos em nove. Mais de 650 pessoas foram presas durante os protestos, os quais foram proibidos pelas autoridades.

Os militares disseram que Déby morreu durante combates com rebeldes da Frente para Mudança e Concórdia no Chade (Front pour l'alternance et la concorde au Tchad, FACT) com base na Líbia, que lançou uma ofensiva no dia das eleições em 11 de abril. O anúncio da morte de Déby veio apenas um dia depois dele ter sido proclamado vencedor da eleição presidencial, conferindo-lhe o sexto mandato após três décadas de governo com punho de ferro na ex-colônia francesa.

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sexta-feira, 30 de abril de 2021

Por que a Rússia está apostando na junta militar de Mianmar


Por Artyom LukinAndrey Gubin, East Asia Forum, 27 de abril de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 30 de abril de 2021.

Em 1º de fevereiro de 2021, a junta militar do Mianmar declarou estado de emergência e tomou o poder do governo civil liderado por Aung San Suu Kyi. O golpe criou imediatamente uma crise política e resultou em derramamento de sangue em massa, mas a resposta internacional foi dividida.

Enquanto o Ocidente liderado pelos EUA e seus principais aliados asiáticos, como Japão e Coréia do Sul, condenam o golpe e impõem sanções à junta, outras potências importantes são mais ambivalentes. No Conselho de Segurança da ONU, China, Índia e Rússia fizeram esforços para proteger os perpetradores de censuras mais duras e possíveis sanções da ONU.

Desde o início, a Rússia se recusou a condenar o golpe, com o Ministério dos Negócios Estrangeiros apenas expressando esperança de "uma solução pacífica para a situação por meio da retomada do diálogo político". Na mesma declaração, Moscou observou como um sinal encorajador que os militares pretendiam realizar uma nova eleição parlamentar. A agência de notícias estatal russa RIA Novosti justificou o golpe argumentando que o exército de Mianmar, o Tatmadaw, é o único fiador viável da unidade e paz do país multiétnico.

A manifestação mais visível de apoio russo à junta veio no final de março, quando o vice-ministro da Defesa Alexander Fomin se tornou o oficial estrangeiro de mais alta patente a participar do desfile do Dia das Forças Armadas de Mianmar na capital Naypyidaw. Enquanto os militares reprimiam violentamente os manifestantes, Fomin manteve conversas com o líder da junta, General Min Aung Hlaing. Ele chamou Mianmar de "aliado confiável e parceiro estratégico da Rússia no Sudeste Asiático e na Ásia-Pacífico" e enfatizou que Moscou "adere ao curso estratégico de melhorar as relações entre os dois países".


Existem vários motivos pelos quais a Rússia está emergindo como o apoiador mais destacado do governo militar do Mianmar.

Os laços estreitos de Moscou com Mianmar datam da década de 1950. Visto que durante a maior parte de sua história moderna o país do sudeste asiático foi governado por militares, a Rússia desenvolveu uma relação de trabalho com seus governantes uniformizados. O general incumbente Min Aung Hlaing visitou a Rússia em várias ocasiões, mais recentemente em junho de 2020 para participar do desfile do Dia da Vitória em Moscou, e é conhecido como campeão dos laços entre Mianmar e Rússia.

Sob Min Aung Hlaing, a cooperação militar entre Mianmar e Rússia recebeu um impulso. Depois da China, a Rússia é o segundo maior fornecedor de armas do país, sendo a fonte de pelo menos 16 por cento do armamento adquirido por Mianmar de 2014-2019. As forças armadas do Mianmar estão aguardando a entrega de seis caças Su-30 encomendados em 2019 e, em janeiro de 2021, os dois lados assinaram contratos para um sistema de defesa aérea russo e um conjunto de drones de vigilância.

O general Min Aung Hlaing preside o desfile do exército no Dia das Forças Armadas em Naypyitaw, Mianmar, em 27 de março de 2021.

Milhares de oficiais militares do Mianmar também receberam treinamento nas academias militares da Rússia. Notavelmente, o comandante-em-chefe do Mianmar mantém uma conta oficial na rede social russa VK enquanto é banido do Facebook e do Twitter. Não é por acaso que o principal interlocutor do Kremlin com Mianmar é o ministro da Defesa, Sergey Shoigu, que visitou o país poucos dias antes do golpe de 1º de fevereiro.

Dada essa relação lucrativa e de longa data com os militares do Mianmar, é lógico que a Rússia não vai condenar o golpe, muito menos sancionar a junta. O presidente russo, Vladimir Putin, nunca foi conhecido por sua simpatia pelos movimentos pró-democracia apoiados pelo Ocidente, e o Kremlin dificilmente vê Aung Sang Suu Kyi, que estudou na Inglaterra e tem dois filhos de nacionalidade britânica, como uma alternativa desejável aos governantes uniformizados.

O apoio de Moscou a uma ditadura militar poderia prejudicar sua reputação internacional, mas com o que já aconteceu entre Putin e o Ocidente, o Kremlin dificilmente poderia se importar menos com as consequências de sua reputação por conta do Mianmar. Em defesa de sua posição sobre Mianmar, a Rússia também poderia apontar para a hipocrisia ocidental - a vizinha Tailândia é governada por generais com credenciais democráticas duvidosas, mas o país permanece nas boas graças do Ocidente por ser um "aliado de tratado" dos Estados Unidos.


Não está claro até que ponto Moscou coordenará suas políticas de Mianmar com Pequim, o principal parceiro estratégico da Rússia e um companheiro autocrático. O governo chinês se absteve de condenar o golpe militar, mas, em comparação com a Rússia, tem sido visivelmente menos favorável - a relação da China com o Tatmadaw sempre foi complicada e Pequim não está nada feliz com o golpe.

Enquanto a relação de Moscou com Mianmar se limita principalmente a laços militares para militares, com poucas interações sociais e econômicas, as relações da China com seu vizinho do sul são mais multidimensionais. Pequim não pode se dar ao luxo de antagonizar segmentos pró-democracia da população do Mianmar, por isso precisa adotar uma abordagem mais complexa.

Moscou e Pequim provavelmente estão discutindo a situação em Mianmar, mas suas estratégias são diferentes. A Rússia é movida pelo desejo de manter contratos militares lucrativos e, possivelmente, ganhar uma posição no Oceano Índico. Por outro lado, Pequim é guiada por interesses estratégicos de longo prazo ditados pela proximidade imediata do Mianmar com a província chinesa de Yunnan.

Vendo-se como uma grande potência global, a Rússia tem interesse em manter uma presença estratégica em Mianmar, um país geopoliticamente importante no Indo-Pacífico. Para manter e expandir os laços da Rússia com Mianmar, o Kremlin apostou nos generais. Resta saber se o cálculo de Moscou será o correto.


Sobre os autores:

Artyom Lukin é Professor Associado do Instituto Oriental, Escola de Estudos Regionais e Internacionais, Universidade Federal do Extremo Oriente, Vladivostok.

Andrey Gubin é Pesquisador Sênior do Instituto Russo de Estudos Estratégicos, Moscou.

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domingo, 18 de abril de 2021

A geopolítica da Guerra Civil Síria

Por Reva Goujon, Stratfor, 4 de agosto de 2015.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 18 de abril de 2021.

Nota do Warfare: Análise do período anterior à intervenção turca. Erdogan venceu a luta de poder mencionada no artigo em 2016, inclusive derrotando uma tentativa de golpe, e concentrou autoridade suficiente para intervir no mundo árabe, invadindo a Síria e o Iraque, e intervindo indiretamente na Líbia. A Turquia também interveio no conflito entre a Armênia (país eslavo) e o Azerbaijão (país muçulmano).

Diplomatas internacionais se reunirão no dia 22 de janeiro na cidade suíça de Montreux para chegar a um acordo destinado a encerrar a guerra civil de três anos na Síria. A conferência, no entanto, estará muito distante da realidade no campo de batalha sírio. Poucos dias antes do início da conferência, uma controvérsia ameaçou engolfar os procedimentos depois que as Nações Unidas convidaram o Irã a participar, e representantes rebeldes sírios pressionaram com sucesso para que a oferta fosse rescindida. A incapacidade de chegar a um acordo até mesmo sobre quem estaria presente nas negociações é um sinal desfavorável para um esforço diplomático que provavelmente nunca seria muito frutífero.

Soldados do Exército Árabe Sírio com a bandeira nacional.

Existem boas razões para um ceticismo profundo. Enquanto as forças do presidente sírio Bashar al-Assad continuam sua luta para recuperar terreno contra as forças rebeldes cada vez mais fratricidas, há pouco incentivo para o regime, fortemente apoiado pelo Irã e pela Rússia, conceder poder a seus rivais sectários a mando de Washington, especialmente quando os Estados Unidos já estão negociando com o Irã. Ali Haidar, um antigo colega de classe de al-Assad da escola de oftalmologia e um membro de longa data da oposição leal da Síria, agora servindo de forma apropriada como Ministro da Reconciliação Nacional da Síria, captou o clima dos dias que antecederam a conferência ao dizer "Não espere nada de Genebra II. Nem Genebra II, nem Genebra III, nem Genebra X resolverão a crise síria. A solução começou e continuará com o triunfo militar do estado”.

O pessimismo generalizado sobre um acordo funcional de divisão de poder para encerrar os combates levou a especulações dramáticas de que a Síria está condenada a se fragmentar em estados sectários ou, como Haidar articulou, a voltar ao status quo, com os alauítas recuperando o controle total e os sunitas forçados de volta à submissão. Ambos os cenários são falhos. Assim como os mediadores internacionais não conseguirão chegar a um acordo de divisão de poder nesta fase da crise, e assim como a minoria alauítas governante da Síria enfrentará extraordinária dificuldade em colar o estado de volta no lugar, também não há maneira fácil de dividir a Síria ao longo de linhas sectárias. Uma inspeção mais detalhada do terreno revela o porquê.

T-54/55 com telêmetro laser usado pelo ISIS é quase atingido por um ATGM na Síria, 2014.

A Geopolítica da Síria

Soldados haxemitas do Exército Xarifiano (Exército Árabe) durante a Revolta Árabe de 1916-1918, carregando a bandeira da revolta, ao norte de Yanbu, Reino de Hejaz.

Antes do acordo Sykes-Picot de 1916 traçar uma estranha variedade de estados-nação no Oriente Médio, o nome Síria era usado por mercadores, políticos e guerreiros para descrever um trecho de terra cercado pelas montanhas Taurus ao norte, o Mediterrâneo a oeste, a Península do Sinai ao sul e o deserto a leste. Se você estivesse sentado na Paris do século XVIII contemplando a abundância de algodão e especiarias do outro lado do Mediterrâneo, você conheceria esta região como o Levante - sua raiz latina "levare" que significa "levantar", de onde o sol iria subir no leste. Se você fosse um comerciante árabe viajando pelas antigas rotas de caravanas no Hejaz, ou na moderna Arábia Saudita, de frente para o nascer do sol a leste, você teria se referido a este território em árabe como Bilad al-Sham, ou a "terra à esquerda" dos locais sagrados do Islã na Península Arábica.

Seja vista do leste ou do oeste, do norte ou do sul, a Síria sempre se encontrará em uma posição infeliz, cercada por potências muito mais fortes. As terras ricas e férteis que abrangem a Ásia Menor e a Europa ao redor do Mar de Mármara ao norte, o Vale do Rio Nilo ao sul e as terras aninhadas entre os rios Tigre e Eufrates a leste dão origem a populações maiores e mais coesas. Quando um poder no controle dessas terras saiu em busca de riquezas mais longe, eles inevitavelmente passaram pela Síria, onde sangue foi derramado, raças foram misturadas, religiões foram negociadas e mercadorias comercializadas em um ritmo frenético e violento.

Densidade populacional no Grande Levantino.

Consequentemente, apenas duas vezes na história pré-moderna da Síria esta região pode reivindicar ser um estado soberano e independente: durante a dinastia Helenística Selêucida, baseada em Antióquia (a cidade de Antakya na atual Turquia) de 301 a 141 aC, e durante o Califado Omíada, baseado em Damasco, de 661 a 749 DC. A Síria era freqüentemente dividida ou agrupada por seus vizinhos, muito fraca, internamente fragmentada e geograficamente vulnerável para se defender. Esse é o destino de uma terra de fronteira.

Ao contrário do Vale do Nilo, a geografia da Síria carece de um elemento de ligação forte e natural para superar suas fissuras internas. Um aspirante a estado sírio não precisa apenas de um litoral para participar do comércio marítimo e se proteger das potências marítimas, mas também de um interior coeso para fornecer alimentos e segurança. A geografia acidentada da Síria e a colcha de retalhos de seitas minoritárias geralmente têm sido um grande obstáculo a esse imperativo.

A longa e extremamente estreita costa da Síria se transforma abruptamente em uma cadeia de montanhas e planaltos. Ao longo deste cinturão ocidental, grupos de minorias, incluindo alauítas, cristãos e drusos, se isolaram, igualmente desconfiados de estranhos do oeste e dos governantes locais do leste, mas prontos para colaborar com quem tiver mais chances de garantir sua sobrevivência . A longa barreira montanhosa então desce em amplas planícies ao longo do vale do rio Orontes e do Vale do Bekaa antes de subir abruptamente mais uma vez ao longo da cordilheira do Anti-Líbano, do planalto de Hawran e das montanhas Jabal al-Druze, proporcionando um terreno mais acidentado para seitas perseguidas se barricarem e armarem-se.

Sistema hidrográfico da Síria.

A oeste das montanhas do Anti-Líbano, o rio Barada corre para o leste, dando origem a um oásis no deserto também conhecido como Damasco. Protegida da costa por duas cadeias de montanhas e longos trechos de deserto a leste, Damasco é essencialmente uma cidade-fortaleza e um lugar lógico para se tornar a capital. Mas para esta fortaleza ser uma capital digna de respeito regional, ela precisa de um corredor que atravesse as montanhas para o oeste até os portos do Mediterrâneo ao longo da antiga costa fenícia (ou libanesa dos dias modernos), bem como uma rota para o norte através das estepes semi-áridas, através de Homs, Hama e Idlib, para Aleppo.

A extensão de terra de Damasco ao norte é um território relativamente fluido, tornando-se um lugar mais fácil para uma população homogênea se aglutinar do que o litoral acidentado e freqüentemente recalcitrante. Aleppo fica ao lado da foz do Crescente Fértil, um corredor comercial natural entre a Anatólia ao norte, o Mediterrâneo (via o Passo de Homs) a oeste e Damasco ao sul. Embora Aleppo tenha sido historicamente vulnerável às potências dominantes da Anatólia e possa usar sua distância relativa para se rebelar contra Damasco de tempos em tempos, continua sendo um centro econômico vital para qualquer potência damascena [leia-se, de Damasco].

A região do Grande Levantino.

Finalmente, projetando-se a leste do núcleo de Damasco, encontram-se vastas extensões de deserto, formando um terreno baldio entre a Síria e a Mesopotâmia. Esta rota escassamente povoada tem sido percorrida por pequenos grupos nômades de homens - de comerciantes de caravanas a tribos beduínas e jihadistas contemporâneos - com poucos apegos e grandes ambições.

Demografia Projetada

A demografia desta terra flutuou muito, dependendo do poder predominante da época. Cristãos, principalmente ortodoxos orientais, formavam a maioria na Síria bizantina. As conquistas muçulmanas que se seguiram levaram a uma mistura mais diversa de seitas religiosas, incluindo uma população xiita substancial. Com o tempo, uma série de dinastias sunitas provenientes da Mesopotâmia, do Vale do Nilo e da Ásia Menor fizeram da Síria a região de maioria sunita que é hoje. Enquanto os sunitas vieram para povoar fortemente o deserto da Arábia e as terras que se estendiam de Damasco a Aleppo, as montanhas costeiras mais protetoras foram salpicadas por um mosaico de minorias. As minorias organizadas em cultos formaram alianças inconstantes e estavam sempre à procura de uma potência marítima mais distante com a qual pudessem se alinhar para se equilibrar contra as forças sunitas dominantes do interior.

Divisões sectárias na Síria e no Líbano.

Os franceses, que tinham os laços coloniais mais fortes com o Levante, eram mestres da estratégia de manipulação das minorias, mas essa abordagem também trouxe consequências graves que perduram até hoje. No Líbano, os franceses favoreciam os cristãos maronitas, que passaram a dominar o comércio no mar Mediterrâneo a partir de movimentadas cidades portuárias como Beirute às custas dos mercadores sunitas damascenos mais pobres. A França também retirou um grupo conhecido como Nusayris que vivia ao longo da costa acidentada da Síria, rebatizou-os como alauítas para dar-lhes credibilidade religiosa e os colocou no exército sírio durante o mandato francês.

Quando o mandato francês terminou em 1943, os ingredientes já estavam prontos para uma grande convulsão demográfica e sectária, culminando no golpe sem sangue de Hafiz al-Assad em 1970, que deu início ao reinado altamente irregular dos alauítas sobre a Síria. Com o equilíbrio sectário agora se inclinando para o Irã e seus aliados sectários, a atual política da França de apoiar os sunitas ao lado da Arábia Saudita contra o regime majoritariamente alauíta que os franceses ajudaram a criar tem um toque de ironia, mas se encaixa em uma mentalidade clássica de equilíbrio-de-potência para a região.

Definindo expectativas realistas

Carro de combate T-72AV do Exército Árabe Sírio sendo explodido por um míssil TOW americano em Darayya, subúrbio de Damasco, pela Brigada dos Mártires do Islã, início de 2016.

Os delegados que discutem a Síria nesta semana na Suíça enfrentam uma série de verdades irreconciliáveis que se originam da geopolítica que governou esta terra desde a antiguidade.

É improvável que a anomalia de uma poderosa minoria alauíta governando a Síria seja revertida tão cedo. As forças alauítas estão mantendo sua posição em Damasco e gradualmente recuperando o território nos subúrbios. O grupo militante libanês Hezbollah está, entretanto, seguindo seu imperativo sectário para garantir que os alauítas mantenham o poder, defendendo a rota tradicional de Damasco através do Vale do Bekaa até a costa libanesa, bem como a rota através do Vale do Rio Orontes até a costa alauíta síria. Enquanto os alauítas puderem manter Damasco, não há chance deles sacrificarem o coração econômico.

Portanto, não é de admirar que as forças sírias leais a al-Assad tenham estado em uma ofensiva para o norte para retomar o controle de Aleppo. Percebendo os limites de sua própria ofensiva militar, o regime manipulará os apelos ocidentais por cessar-fogo localizados, usando uma trégua na luta para conservar seus recursos e tornar a entrega de alimentos a Aleppo dependente da cooperação rebelde com o regime. No extremo norte e no leste, as forças curdas estão, entretanto, ocupadas tentando criar sua própria zona autônoma contra as crescentes restrições, mas o regime alauíta está bastante confortável sabendo que o separatismo curdo é mais uma ameaça para a Turquia do que para Damasco neste momento.

O ditador Bashar al-Assad, o comandante-em-chefe do Estado sírio, encastelado em Damasco.

O destino do Líbano e da Síria permanece profundamente interligado. Em meados do século XIX, uma sangrenta guerra civil entre drusos e maronitas nas densamente povoadas montanhas costeiras se espalhou rapidamente do Monte Líbano a Damasco. Desta vez, a corrente está fluindo ao contrário, com a guerra civil na Síria agora inundando o Líbano. À medida que os alauítas continuam a ganhar terreno na Síria com a ajuda do Irã e do Hezbollah, um amálgama sombrio de jihadistas sunitas apoiados pela Arábia Saudita se tornará mais ativo no Líbano, levando a um fluxo constante de ataques sunitas-xiitas que manterão o Monte Líbano no limite.

É improvável que a anomalia de uma poderosa minoria alauíta governando a Síria seja revertida tão cedo.

Os Estados Unidos podem estar liderando a malfadada conferência de paz para reconstruir a Síria, mas na verdade não têm nenhum interesse forte lá. A própria depravação da guerra civil obriga os Estados Unidos a mostrar que estão fazendo algo construtivo, mas o principal interesse de Washington para a região no momento é preservar e fazer avançar as negociações com o Irã. Essa meta está em desacordo com uma meta declarada publicamente nos EUA de garantir que al-Assad não faça parte de uma transição síria, e este ponto pode muito bem ser uma das muitas peças no acordo em desenvolvimento entre Washington e Teerã. No entanto, al-Assad detém maior influência enquanto seu principal patrono estiver em negociações com os Estados Unidos, a única potência marítima atualmente capaz de projetar força significativa no Mediterrâneo oriental.

Tropas americanas e russas na Síria.

O Egito, a potência do Vale do Nilo ao sul, está totalmente enredado em seus próprios problemas internos. Assim como a Turquia, a principal potência do norte, que agora está dominada por uma luta pública e violenta pelo poder que deixa pouco espaço para o aventureirismo turco no mundo árabe*. Isso deixa a Arábia Saudita e o Irã como as principais potências regionais capazes de manipular diretamente o campo de batalha sectário da Síria. O Irã, junto com a Rússia, que compartilha o interesse em preservar as relações com os alauítas e, portanto, seu acesso ao Mediterrâneo, terá a vantagem neste conflito, mas o deserto que liga a Síria à Mesopotâmia está repleto de bandos de militantes sunitas ansiosos por apoio saudita para amarrar no lugar seus rivais sectários.

*NW: Em 2016, após um golpe militar fracassado, Erdogan conseguiu o controle sobre o exército e, conforme previsto pela analista, interveio na guerra civil principalmente por causa da ameaça do separatismo curdo. O exército turco invadiu e ocupou o norte da Síria desde 2016 na Operação Escudo do Eufrates (Fırat Kalkanı Harekâtı). No ano passo, o ministro das Relações Exteriores da Síria chamou a Turquia de "o maior patrocinador do terrorismo na região".

Soldados turcos assistem a um tanque Leopard 2A4 disparar contra posições duma milícia curda em Ras al-Ain, no norte da Síria, em 28 de outubro de 2019.

E assim a luta continuará. Nenhum lado da divisão sectária é capaz de sobrepujar o outro no campo de batalha e ambos têm apoiadores regionais que irão alimentar a luta. O Irã tentará usar sua vantagem relativa para atrair a realeza saudita para uma negociação, mas uma Arábia Saudita profundamente nervosa continuará a resistir enquanto os rebeldes sunitas ainda tiverem espírito de luta suficiente para continuar. Os combatentes no terreno irão regularmente manipular apelos por cessar-fogo encabeçados por estranhos em grande parte desinteressados, enquanto a guerra se espalha no Líbano. O estado sírio não se fragmentará e se formalizará em estados sectários, nem se reunificará em uma única nação sob um acordo político imposto por uma conferência em Genebra. Um mosaico de lealdades de clã e o imperativo de manter Damasco ligada ao seu litoral e centro econômico - não importa que tipo de regime esteja no poder na Síria - manterá essa fronteira fervilhante unida, embora tenuemente.

Reva Goujon é Vice-Presidente de Análise Global da Stratfor.

Vídeo recomendado: O Acordo Sykes-Picot


Bibliografia recomendada:

Arabs at War:
Military Effectiveness, 1948-1991.
Kenneth M. Pollack.

O Mundo Muçulmano.
Peter Demant.

Estado Islâmico:
Desvendando o exército do terror.
Michael Weiss e Hassan Hassan.

Leitura recomendada: