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quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Soldados soviéticos ferveriam suas munições enquanto serviam no Afeganistão: eis o porquê

Por Nikolay Shevchenko, Russia Beyond, 30 de junho de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de novembro de 2022.

Durante a guerra soviética no Afeganistão, houve um conto generalizado do exército. Soldados russos eram frequentemente vistos fervendo sua munição por horas em uma panela sobre uma fogueira. Contos dessa prática generalizada atingem muitos contemporâneos como algo inexplicável, mas havia uma lógica por trás desse estranho hábito de guerreiros experientes.

O negócio da guerra

Policiais militares russos relaxam durante uma patrulha ao longo de Koch-E Murgha (ou Rua da Galinha) no bairro de Shahr-E Naw, em 12 de maio de 1988 em Cabul, no Afeganistão.

Para alguns, a presença soviética no Afeganistão foi uma tragédia, mas outros viram a guerra como uma oportunidade de negócios. O governo soviético gastou toneladas de dinheiro para manter e abastecer suas tropas no país e algumas pessoas procuraram obter algum lucro por meio de peculato e apropriação indébita.

Tudo de valor era uma oportunidade de negócios para alguns oficiais corruptos que controlavam o fluxo de mercadorias soviéticas para o Afeganistão.

“Em 1986, […] os suprimentos estratégicos de alimentos do exército foram […] enviados para o Afeganistão. Eles alcançaram apenas parcialmente o exército. A maior parte acabou em bazares afegãos. Carne enlatada […] Presunto polonês e húngaro, ervilhas verdes, óleo de girassol, gordura composta, leite condensado, chá e cigarros – tudo o que não chegava aos famintos soldados soviéticos era vendido a comerciantes afegãos”, escreveu Zhirokov.

Enquanto oficiais sem escrúpulos ganhavam dinheiro sujo, as fileiras das forças armadas soviéticas no Afeganistão não apenas arriscavam suas vidas diariamente, mas também eram insuficientes e muitas vezes subnutridas.


Comerciantes afegãos

Deixados por conta própria, os soldados tiveram que agir para sobreviver. Eles precisavam de dinheiro para comprar comida, roupas e outros itens de comerciantes afegãos locais.

A única coisa que os soldados tinham a oferecer era sua munição, pois a tinha em abundância. Além disso, em tempos de guerra, era praticamente impossível acompanhar as balas; ninguém sabia dizer se a munição perdida foi utilizada em combate ou desviada. Para os soldados que foram injustamente roubados, o comércio de munição foi um salva-vidas.

No entanto, todos perceberam para onde a munição vendida estava indo em seguida. Ninguém duvidava que os mercadores afegãos venderiam a munição soviética aos mujahideen afegãos que lutavam contra o governo afegão apoiado pelos soviéticos.

Cada bala vendida poderia matar um soldado soviético ou mesmo aquele que a vendeu em primeiro lugar. Antes que a munição pudesse ser vendida, os soldados soviéticos tiveram que se certificar de que as balas estavam danificadas além do reparo.

Munição fervida

Soldados soviéticos em Cabul.

Na época, um conto generalizado do exército afirmava que a munição fervida por algumas horas não funcionaria corretamente. Os soldados acreditavam que a fervura prolongada danificava a munição, de modo que o fuzil do inimigo cuspia os cartuchos impotentes ou não atirava por completo.

A receita era simplesmente primitiva: fazer fogo, ferver água em praticamente qualquer recipiente de metal à mão, colocar a munição na água fervente e “cozinhar” por quatro a cinco horas. A água não permitiu que a munição detonasse acidentalmente, enquanto se acreditava que a exposição prolongada à alta temperatura danificava a munição sem alterar visualmente as balas.

No entanto, havia um problema. Os soldados soviéticos no Afeganistão tinham principalmente dois fuzis Kalashnikov: o AKM, que usava balas de calibre 7,62 e o AK-74, que usava balas de calibre 5,45.

Apesar da prática generalizada de ferver os dois tipos de balas antes de vendê-las aos afegãos, isso provavelmente não teve efeito sobre as munições modernas, por causa dos materiais usados para montá-las.

No século XIX e início do século XX, o fulminato de mercúrio foi usado em iniciadores para acender o propelente. Quando essa bala é aquecida a temperaturas de cerca de 100°C, o produto químico sofre um processo de decomposição térmica. Em suma, uma bala velha onde se usava fulminato de mercúrio deixaria de funcionar depois de ter sido fervida por algumas horas.

Ofensiva Mujahidin na área de Jalalabad, no Afeganistão.

No entanto, no início do século 20, novos compostos modernos e mais avançados foram introduzidos como substitutos do fulminato de mercúrio - tóxico e menos estável. Esses novos compostos eram extremamente resistentes à exposição térmica. Uma bala moderna dispara perfeitamente, mesmo que tenha sido fervida por horas.

Muito provavelmente, as balas produzidas na URSS durante a Guerra do Afeganistão eram resistentes ao aquecimento e os esforços dos soldados para danificá-las antes da venda foram em vão.

No entanto, os soldados soviéticos fizeram tudo o que podiam para sobreviver. Considerando que essa história do exército era generalizada, era natural que os soldados soviéticos realmente fervessem sua munição antes de vendê-la aos afegãos.


Bibliografia recomendada:

Bandeira Vermelha no Afeganistão,
Thomas T. Hammond.


Leitura recomendada:

Soldado da Fortuna: Com os Mujahideen no Afeganistão10 de julho de 2021.

PINTURA: Guardas de Fronteira da KGB com um Mi-8, 27 de março de 2021.

GALERIA: Snipers soviéticos no Afeganistão, 8 de maio de 2021.

GALERIA: Monumento aos soldados soviéticos mortos no Afeganistão23 de julho de 2022.

O Grupo Mercenário Wagner está recrutando comandos afegãos treinados pelos EUA para lutar na Ucrânia, diz seu ex-general

Por Safiullah Stanikzai, Soldier of Fortune, 1º de novembro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de novembro de 2022.

Um ex-funcionário do Ministério da Defesa afegão reiterou as alegações de que comandos afegãos foram recrutados para lutar como mercenários na Ucrânia.

Relatos começaram a circular no final da semana passada de que o sombrio Grupo Wagner, uma força mercenária russa privada com laços estreitos com o Kremlin, está tentando aumentar suas fileiras na Ucrânia recrutando comandos afegãos treinados pelos EUA e outras forças de segurança, os quais fugiram para o Irã após a tomada do Afeganistão pelo Talibã.

Um ex-general afegão esta semana repetiu as alegações.

Comandos afegãos com máscaras de caveira durante uma parada militar.

Cerca de 15 ex-comandos afegãos já se juntaram ao grupo paramilitar Vagner e milhares mais podem ser recrutados com a ajuda do Irã para lutar na Ucrânia, de acordo com o General Abdul Raouf Arghandiwal, ex-autoridade do Ministério da Defesa afegão e comandante do Corpo de Exército Zafar 207 de elite do Afeganistão.

O Grupo Wagner planeja “recrutar 1.000 pessoas na primeira fase e 1.000 pessoas na segunda fase como um batalhão, e continuar gradualmente esse processo”, disse Arghandiwal à Rádio Azadi da RFE/RL por telefone dos Estados Unidos.

Outro general, Hibatullah Alizai, o último chefe do exército afegão antes do Talibã assumir, disse que o esforço está sendo ajudado por um ex-comandante das forças especiais afegãs que fala russo e que já viveu na Rússia.

A Rússia ocupou inicialmente grandes áreas da Ucrânia após sua invasão em grande escala em fevereiro, mas há meses sofre perdas significativas de tropas e perdas territoriais devido em grande parte a uma contra-ofensiva ucraniana em duas frentes.

Os contratempos, que deixaram a Rússia tentando manter a linha em partes do sul e leste da Ucrânia que ainda ocupa e reivindica como sua, forçaram o Kremlin a introduzir um alistamento militar e a contar cada vez mais com mercenários Wagner e tropas chechenas para reabastecer suas forças esgotadas.

Arghandiwal diz que foi informado pessoalmente da campanha de recrutamento por “centenas” de seus ex-soldados. “Os russos, através da empresa de segurança Wagner e em cooperação com o país anfitrião [Irã], onde a maioria das forças de segurança e defesa do Afeganistão estão [agora] localizadas, bem como alguns afegãos que anteriormente se mudaram para o Irã e a Rússia, estão tentando recrutar comandos”, disse ele.

O general afegão disse que ex-membros do Exército Nacional Afegão, da Polícia Nacional Afegã e outras ex-forças de segurança são os próximos na fila para o recrutamento a ser realizado na Rússia e depois lutar na Ucrânia.

Combatentes do Talibã assumem o controle do palácio presidencial afegão depois que o presidente afegão Ashraf Ghani fugiu do país, em Cabul, Afeganistão, 15 de agosto de 2021.

Dezenas de milhares de soldados afegãos e pessoal de segurança foram treinados pelas forças armadas americanas durante a guerra de quase 20 anos no Afeganistão, que terminou com uma retirada caótica de forças estrangeiras e o Talibã retomando o poder em Cabul em agosto de 2021. Temendo retribuição do Talibã, muitos membros do exército e da polícia do Afeganistão, bem como oficiais militares e de inteligência leais ao governo deposto fugiram para o Irã, Paquistão e outros países.

O Inspetor Geral Especial dos EUA para a Reconstrução do Afeganistão (SIGAR) informou em maio que, mesmo antes da queda de Cabul, “cerca de 3.000 forças de segurança afegãs, compostas de oficiais de alto escalão a soldados de infantaria, juntamente com seus equipamentos militares e veículos, cruzaram a fronteira para o Irã”, embora muitos tenham retornado ao Afeganistão depois que o Talibã ofereceu uma anistia geral.

Logo após o Talibã retornar ao poder, o Irã teria oferecido vistos temporários aos afegãos que pudessem provar que serviram nas forças armadas afegãs.

Recrutas do treinamento básico treinam combate em compartimento (CQB) como parte do currículo de Operações Militares em Terreno Urbano do Centro de Treinamento Militar de Cabul, 10 de maio de 2010.

Enquanto mais de 80.000 afegãos em risco que trabalharam ou lutaram ao lado dos EUA e outras forças ocidentais foram retirados de avião quando o Talibãn avançou sobre Cabul, dezenas de milhares foram deixados para trás no Afeganistão, onde mais de 100 assassinatos extrajudiciais de ex-militares e funcionários do governo foram registradas nos primeiros meses do regime talibã, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

A situação levou a preocupações dos líderes militares e políticos dos EUA de que Washington não estava fazendo o suficiente para evacuar os afegãos que lutaram contra o Talibã, abrindo a possibilidade de que cerca de 20.000 a 30.000 soldados treinados pelos EUA não tivessem outra alternativa a não ser se juntar ao Talibã ou a um adversário regional.

Em agosto, uma investigação do Congresso americano liderada pelos republicanos, crítica à retirada dos EUA, destacou o risco representado para os Estados Unidos por ex-forças afegãs que fugiram para o Irã, “devido ao fato de que esse pessoal afegão conhece as táticas, técnicas e procedimentos da comunidade militar e de inteligência americanas”.

Indignados com o grande número de tropas afegãs que não foram transportadas de avião para fora do Afeganistão nos últimos dias da guerra liderada pelos EUA, vários grupos liderados por veteranos americanos da guerra foram lançados para ajudar a tirar seus aliados afegãos do país.

“Nenhuma outra opção”

Operadores do 6º Kandak de Operações Especiais praticando a limpeza de um compartimento durante um exercício de treinamento em Cabul, província de Cabul, Afeganistão, 26 de novembro de 2013.

Mike Edwards, ex-treinador das forças especiais afegãs que formaram a organização voluntária Exodus Relief, disse à RFE/RL em março que “esses caras não têm outra opção a não ser serem mortos ou, se tiverem sorte, serem recrutados para o outro lado." Se eles escolherem o último, disse Edwards, isso significaria ter “alguns dos melhores que já treinamos trabalhando contra nós”.

Arghandiwal diz que as autoridades iranianas estavam dando às forças especiais afegãs que se mudaram para o Irã um ultimato para retornar ao Afeganistão ou lutar pela Rússia na Ucrânia.

A RFE/RL não conseguiu verificar de forma independente as alegações de Arghandiwal.

A Foreign Policy informou na semana passada que comandos afegãos estavam sendo recrutados para lutar na Ucrânia, citando ex-combatentes dizendo que estavam sendo contatados nos serviços de mensagens WhatsApp e Signal. Uma fonte militar disse à revista que até 10.000 ex-comandos afegãos podem estar dispostos a aceitar a oferta do Grupo Wagner.

Sequência com os Comandos do 6º Kandak na porta prestes a entrarem.

A AP informou esta semana que membros das forças especiais afegãs estavam sendo atraídos com a promessa de US$ 1.500 por mês e refúgio seguro para seus familiares. A agência de notícias citou um ex-comando afegão atualmente no Irã dizendo que cerca de 400 combatentes estavam pensando em se juntar ao Grupo Wagner.

O ex-comando disse que muitos de seus colegas soldados se sentiram abandonados por Washington e que sua oferta incluía vistos para a Rússia para ele, assim como para seus filhos e esposa, que estão no Afeganistão.

Sírios também foram oferecidos dinheiro para se tornarem mercenários

O Grupo Wagner esteve envolvido na guerra da Rússia na Ucrânia desde o início, com relatos no início do conflito sugerindo que o grupo mercenário estava oferecendo aos sírios US $ 3.000 por mês para se juntarem à luta.

A inteligência ucraniana disse que cerca de 40.000 sírios estavam se preparando para se aliar às forças russas na Ucrânia, mas acredita-se que apenas algumas centenas de sírios realmente chegaram ao campo de batalha e o esforço de recrutamento acabou sendo amplamente descartado como desinformação russa.

Comandos da 6º Kandak de Operações Especiais se protegem durante um tiroteio noturno com o Talibã no distrito de Ghorband, província de Parwan, em 15 de janeiro de 2014.

O impacto potencial dos comandos afegãos - considerados combatentes altamente qualificados e treinados - se lutarem na Ucrânia é contestado. Um ex-alto funcionário de segurança afegão sugeriu à Foreign Policy que sua entrada na guerra Rússia-Ucrânia “seria um divisor de águas” para o esforço de guerra do Kremlin.

Sergei Danilov, vice-diretor do Centro de Estudos do Oriente Médio da Academia Russa de Ciências, disse em entrevista ao Current Time que não tinha dúvidas de que a Rússia estava tentando recrutar afegãos. Mas ele disse que as forças afegãs estavam dispersas demais para serem recrutadas em grande número para formar uma força de combate unida, e observou suas falhas na defesa do Afeganistão contra o Talibã.

“Eles são treinados, mas não estão absolutamente motivados”, disse Danilov. “Eles não representam uma ameaça. Alguns conseguiram ir para o Paquistão – ou mesmo para o Irã – e agora estão na região e além…. Mas isso não é dezenas de milhares ou mesmo milhares.”

Bibliografia recomendada:

História dos Mercenários:
De 1789 aos nossos dias,
Walter Bruyère-Ostells.

Leitura recomendada:


sexta-feira, 14 de outubro de 2022

FOTO: Retorno de uma patrulha francesa em Kapisa

Retorno de uma patrulha francesa à base de operações avançada em Kapisa, em 24 de outubro de 2008.
(Philippe de Poulpiquet/ Le Parisien)

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 14 de outubro de 2022.

Retorno de uma patrulha francesa à base de operações avançada (forward operating base, FOB) de Nijrab, na província afegã de Kapisa, em 24 de outubro de 2008. As fotos foram tiradas por Philippe de Poulpiquet, do jornal Le Parisien.

Os soldados estão armados com fuzis bullpup FAMAS e metralhadoras leves FN Minimi, e foram transportados em veículos VAB. A França foi uma dos países da Coalização liderada pelos Estados Unidos no Afeganistão, majoritariamente composta de contingentes da OTAN, e deixou o país em 2012 após repetidos incidentes de ataques a seus militares pelos aliados do Exército Nacional Afegão; "green-on-blue".


Bibliografia recomendada:

GUERRA IRREGULAR:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história,
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:

sábado, 17 de setembro de 2022

Como e por que o Exército Afegão caiu tão rapidamente para o Talibã?

Recrutas do Exército Nacional Afegão ouvem as explicações de seu instrutor durante uma sessão de treinamento no Centro de Treinamento Militar de Cabul, no Afeganistão, em 19 de julho de 2009.
(AP Photo/Emilio Morenatti)

Por Todd Lehmann, The Times of Israel, 23 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de setembro de 2022.

Padrões de colapso indicam que foi o resultado coletivo de soldados individuais tomando decisões racionais sobre suas próprias situações e decidindo não lutar.

A CONVERSA via AP - O rápido colapso das forças armadas afegãs nos últimos dias pegou muitos nos EUA de surpresa, incluindo o presidente do Estado-Maior Conjunto.

Nos meses após o anúncio da retirada das tropas pelo presidente dos EUA, Joe Biden, em abril de 2021, relatórios de inteligência alertaram que os militares afegãos poderiam não lutar por conta própria, abrindo caminho para uma tomada do Talibã após a retirada das forças americanas.

No entanto, poucos esperavam que o Talibã tivesse sucesso tão rapidamente.

Em 10 de agosto, uma avaliação da inteligência americana previu uma tomada do Talibã em 90 dias. Demorou apenas cinco.

Minha pesquisa sobre o que os teóricos dos jogos e acadêmicos chamam de “problemas de comprometimento” identifica o problema, e não é um problema sobre o qual a maioria dos especialistas está falando, como planejamento ruim ou corrupção. Os padrões do colapso das forças armadas afegãs indicam que foi o resultado coletivo de soldados individuais tomando decisões racionais sobre suas próprias situações e decidindo não lutar.

Procurando a causa certa

Milicianos da resistência anti-Talibã na região de Abdullah Khil, na província de Panshir, em 24 de agosto.
(Ahmad Sahel Arman/AFP)

Durante todo o conflito, a ênfase perene em uma “estratégia de saída” dos EUA significava que os políticos dos EUA sempre se concentravam em saber se já era hora de sair. Por 20 anos, os esforços dos EUA se concentraram no pensamento de curto prazo e na solução de problemas que mudaram os objetivos militares e políticos ao longo do tempo, em vez de investir tempo e esforço para desenvolver uma estratégia abrangente de longo prazo para a guerra. Um compromisso indiscutivelmente morno dos EUA criou constantemente muitas das condições subjacentes ao colapso das forças armadas afegãs. No entanto, não determinou inteiramente o resultado.

Biden afirmou que os militares afegãos não tinham vontade de lutar. Outros culparam possíveis problemas de treinamento, soldados afegãos incompetentes ou corruptos e muita dependência de contratados privados para sustentar as forças afegãs.

Com base em minha pesquisa e análise, a causa primária do que aconteceu nas forças armadas afegãs não é nenhuma dessas, nem foi uma falha de caráter. Em vez disso, os soldados encontraram um “problema de compromisso”, vendo condições em rápida mudança que mudaram suas mentes de estarem dispostos a lutar para perceber que era uma ideia ruim – e perigosa – naquele momento.

Homens armados afegãos apoiando as forças de segurança afegãs contra o Talibã com suas armas e veículos Humvee na área de Parakh em Bazarak, província de Panjshir, em 19 de agosto de 2021.
(Ahmad Sahel Arman/AFP)

Uma cascata de rendição

Forças especiais afegãs patrulham a vila de Pandola perto do local de um bombardeio dos EUA no distrito de Achin da província de Nangarhar, no leste do Afeganistão, em 14 de abril de 2017.

Os soldados buscam força nos números. Quando os soldados lutam em batalha, eles só têm sucesso se lutarem como uma unidade. No entanto, as decisões individuais de lutar ou fugir dependem de expectativas mútuas. Se um soldado espera que a maioria de seus companheiros lute, o melhor interesse do soldado também é lutar.

Mas se eles esperam que a maioria de seus companheiros se renda, os soldados podem achar mais atraente se render – o que leva a um “problema de ação coletiva”. Se os soldados souberem que outras unidades realmente se renderam, eles esperam que a determinação de seus próprios camaradas seja baixa e se tornem menos propensos a lutar. Algumas rendições ou deserções iniciais podem desencadear mais algumas, e depois mais e mais até que um exército inteiro desmorone.

Foi exatamente isso que aconteceu com os militares afegãos. Quando a retirada dos EUA começou em maio, o Talibã começou a ganhar território. À medida que avançavam, o Talibã também negociou com grupos de forças afegãs estacionadas em postos avançados e em cidades, e convenceu algumas tropas a se renderem. Uma vez que o primeiro ataque de rendição ocorreu e as notícias começaram a se espalhar, outros rapidamente o seguiram, facilitando a aceleração do impulso para o Talibã à medida que avançavam sem enfrentar grande resistência. No final, os soldados afegãos escolheram a segurança em números ao se renderem juntos.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O Fiat-Ansaldo CV-35 no desfile da vitória do Talibã

Talibãs desfilando em cima de um tankette italiano CV-35 em Kandahar,
31 de agosto de 2022.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 8 de setembro de 2022.

Um tankette Carro Veloce CV-35 (L3/35), de fabricação italiana, usado pelo Talibã em um desfile em Kandahar, 31 de agosto de 2022. O tankette carrega, além dos militantes, a nova bandeira branca nacional, a antiga bandeira do Talibã. A foto foi postada por Lukas Muller  (@aaf_lukas) no Twitter hoje, quinta-feira dia 8 de setembro.

O desfile de 31 de agosto celebrava a vitória sobre os Estados Unidos e a Coalizão, marcando o primeiro aniversário da retirada dos ocidentais e da criação do Emirado Islâmico do Afeganistão, liderado pelo Talibã.

A bandeira nacional do Emirado Islâmico do Afeganistão é a bandeira branca simbolizando pureza e fé, e consiste em um campo branco com um Shahada preto. Significando "o testemunho", este é um juramento islâmico, um dos Cinco Pilares do Islã e parte do Adhan. Lê-se:

"Testemunho que não há deus senão Alá (Deus), e testemunho que Muhammad (Maomé) é o mensageiro de Alá."

Essa bandeira adotada em 15 de agosto de 2021 com a vitória do Talibã na guerra de 2001-2021. Desde a Guerra Anglo-Afegã de 1919, também conhecida como Guerra da Independência, o Afeganistão usou cerca de 19 bandeiras nacionais, mais do que qualquer outro país nesse período. A bandeira nacional teve as cores preta, vermelha e verde na maioria das vezes durante o período; como foi o caso da agora extinta República Islâmica do Afeganistão (2004-2021).

T-62M do emirado islâmico durante o desfile,
também com a bandeira branca.

O CV-35 é um veículo leve sob lagartas dos anos 1930, e é notável por sua capacidade fora de estradas e sobrepujando obstáculos em terreno acidentado; lembrando que o Afeganistão é um país montanhoso com poucas estradas. No entanto, já era totalmente obsoleto em 1940. O Afeganistão adquiriu o tankette italiano na segunda metade da década de 1930. Dado que o veículo da Fiat-Ansaldo foi homologado no Regio Esercito italiano em 1936, acredita-se que os CV-35 afegãos foram entregues à partir de 1937 e permaneceram em serviço por muitas décadas.

Outra foto do velho guerreiro durante o desfile.

Depois da Segunda Guerra Mundial, o Exército Real Afegão modernizou os seus tankettes com ajuda soviética; seu novo patrono e que teria efeitos cataclísmicos no país. Ligeiro, porém mal protegido por meros 15mm de blindagem máxima, o tankette era muito vulnerável. Uma das melhorias feitas foi justamente a substituição das duas metralhadoras de 8mm Fiat 14/35 por duas metralhadoras pesadas KPV de 14,5mm soviéticas. Os outros veículos mantendo o seu armamento original foram usados em serviço de policiamento e vigilância por milícias locais.

A aparição de um veículo tão antigo no desfile da vitória talibã é algo notável e marcante. O Museu de Cabul mantinha um CV-35 em bom estado até aonde se tem notícia, o que indica uma viatura com mais de 75 anos de construção ainda preservada.

O CV-35 nos trópicos

Desfile dos Fiat-Ansaldo CV-35 brasileiros.
Fuzileiros navais ladeiam a avenida.

O Brasil também adquiriu o CV-35 na década de 1930. Tal qual como o Afeganistão, a capacidade em terreno acidentado e baixo preço do veículo. E tal qual como o Afeganistão, foi o segundo veículo nacional depois do lendário Renault FT-17. O Brasil comprou 23 tankettes em 1938, formando o Esquadrão de Auto-Metralhadoras.

Dentro desse esquadrão havia 18 viaturas armadas com metralhadoras duplas Madsen de 7mm, com os outros 5 veículos sendo de comando e armados com uma metralhadora pesada Breda 13,2mm cada um. Desta forma, o esquadrão possuía quatro pelotões de cinco carros cada; todos devidamente marcados por naipes de cartas do baralho. O Esquadrão de Auto-Metralhadoras (designação francesa dos tanquetes) foi filmado pelos ingleses pelo British Pathé quando fazia funções de vigilância no saliente nordestino, em 1942, em prol do esforço de guerra aliado na campanha do Atlântico.


Leitura recomendada:

A primeira mulher piloto do Afeganistão agora está lutando para voar pelas forças armadas dos EUA6 de julho de 2022.

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GALERIA: Graduação no ANASOC13 de abril de 2020.

FOTO: Forças especiais alemãs saúdam bandeira na retirada em Cabul24 de agosto de 2022.

O Tanque está morto: conclusão precipitada?12 de agosto de 2022.

Como a China vê a retirada dos EUA do Afeganistão21 de maio de 2021.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

FOTO: Forças especiais alemãs saúdam bandeira na retirada em Cabul

Os militares saudando a bandeira alemã na cerimonia de partida.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 24 de agosto de 2022.

Operadores do KSK (Kommando Spezialkräfte / Comando de Forças Especiais) saudando a bandeira alemã em Cabul, durante a evacuação do Aeroporto de Cabul em agosto de 2021.

Os alemães não prestam continência com equipamento, especialmente o capacete. O Spieße da companhia ficaria louco, mas dada a situação extraordinária os operadores quebraram o protocolo e usaram equipamento completo.

O Spieße/Spiess (significando "lança"), também chamado de "a mãe da companhia", costuma ser um graduado antigo com funções administrativas e de gerenciamento de pessoal da companhia.

Bibliografia recomendada:

Special Operations Forces in Afghanistan,
Leigh Neville e Ramiro Bujeiro.

Leitura recomendada:

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Forças iranianas entram em confronto com talibãs na fronteira afegã

Membros das forças do Talibã controlam pessoas esperando para obter vistos, na embaixada do Irã em Cabul, no Afeganistão, em 4 de outubro de 2021.
(REUTERS/JORGE SILVA)

Do jornal The Jerusalem Post, 31 de julho de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de agosto de 2022.

Um membro das forças do Talibã foi morto durante o confronto em Nimroze, no sul do Afeganistão, disse um oficial da polícia afegã.

Confrontos entre forças do Talibã e guardas de fronteira do Irã no domingo deixaram pelo menos um morto no lado do Afeganistão, disse um oficial da polícia afegã.

"Temos um morto e um ferido; a causa do confronto ainda não está clara", disse à Reuters o porta-voz da polícia da província de Nimroze, no sul do Afeganistão, Bahram Haqmal.

Irã: sem baixas em confronto na fronteira

Maysam Barazandeh, governador da área de fronteira iraniana de Hirmand, foi citado pela agência de notícias semi-oficial Fars dizendo que os confrontos pararam e não houve baixas.

A agência de notícias iraniana Tasnim disse que os confrontos eclodiram depois que as forças talibãs tentaram hastear sua bandeira "em uma área que não é território afegão".

Um membro das forças do Talibã patrulha na frente de pessoas esperando para obter vistos, na embaixada do Irã em Cabul, no Afeganistão, em 4 de outubro de 2021
(REUTERS/JORGE SILVA)

Fontes locais disseram à Reuters que as pessoas que vivem perto da fronteira do lado afegão fugiram de suas casas para se protegerem quando os confrontos se intensificaram.

Desde que tomaram o Afeganistão há um ano, as forças do Talibã entraram em confronto com as forças de segurança do Irã, que é vizinho do país a oeste, bem como do Paquistão, que é vizinho a leste.

sábado, 23 de julho de 2022

GALERIA: Monumento aos soldados soviéticos mortos no Afeganistão


Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 23 de julho de 2022.

O monumento do Memorial de Guerra Tulipa Negra, inaugurado em 1995 e localizado em Ecaterimburgo (Yekaterinburg, ex-Sverdlovsk), é dedicado à memória dos soldados soviéticos que morreram na Guerra Soviética-Afeganistã (1979-1989). O nome Tulipa Negra é derivado do apelido do avião de transporte Antonov An-12, que carregava cadáveres de soldados soviéticos do Afeganistão de volta para casa.

A peça central do memorial é uma estátua de um soldado sentado segurando um fuzil. Sua cabeça está abaixada e ele está olhando fixamente para o chão. Gravada em seu rosto está a emoção de horror, derrota e devastação no que foi considerada uma guerra implacável e desnecessária. O Memorial de Guerra Tulipa Negra é um lembrete convincente para todos os visitantes de Ecaterimburgo da crueldade desumana da guerra.

As perdas oficiais reveladas por Moscou foram de 15 mil mortos, mas os números estimados de perdas do Exército Vermelho são o dobro disso, ultrapassando os 30 mil. A experiência pessoal dos soviéticos no Afeganistão foi alvo de estudo da escritora russa Svetlana Aleksiévitch no livro Meninos de Zinco, assim chamados pelos caixões de zinco usados para transportar os mortos de volta para a União Soviética.






Leitura recomendada:

Meninos de Zinco,
Svetlana Aleksiévitch.

Leitura recomendada:

quarta-feira, 6 de julho de 2022

A primeira mulher piloto do Afeganistão agora está lutando para voar pelas forças armadas dos EUA

Niloofar Rahmani foi a primeira mulher piloto da Força Aérea Afegã.
Agora ela está de olho em voar pelos Estados Unidos.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

Por Mac Caltrider, Coffie or Die, 30 de junho de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 6 de julho de 2022.

Quando ela era uma criança vivendo em Cabul sob o regime talibã, Niloofar Rahmani passava horas olhando para os pássaros e fantasiando sobre um dia compartilhar sua liberdade de voar. Sem oportunidades de receber uma educação formal, Rahmani nunca considerou a possibilidade de se tornar uma piloto quando crescesse. Mas graças à educação em casa que recebeu de sua mãe e à integração das mulheres nas forças armadas afegãs em 2009, Rahmani conseguiu tornar seu sonho realidade. Ela finalmente se tornou a primeira mulher piloto da Força Aérea Afegã e vôou em missões de combate durante a Operação Liberdade Duradoura (Operation Enduring Freedom).

Rahmani agora vive na Flórida com sua família, onde ela está trabalhando para voar novamente. Nós nos sentamos com ela para discutir sua jornada extraordinária, seu livro de memórias, Open Skies: My Life as First Female Pilot (Céus Abertos: Minha Vida como Primeira Piloto Mulher), e sua luta atual para se juntar às forças armadas dos Estados Unidos.

Esta entrevista foi editada por questão de extensão e clareza.

COD: Você nasceu em Cabul durante o período caótico que se seguiu à guerra soviético-afegã. Como foi crescer em um país instável e mais tarde sob o domínio do Talibã?

NR: Devido à guerra civil no Afeganistão, eu tinha apenas 6 meses quando meus pais deixaram o Afeganistão e nos mudamos para o Paquistão. Moramos lá por seis anos da minha vida e não tínhamos uma casa. Não tínhamos nada. Eu cresci em uma tenda de refugiados lá.

Quando criança, eu não tinha ideia de como era o Afeganistão. Eu não sabia onde era o meu país. Meus pais moraram lá nos anos 60 e o Afeganistão era um lugar completamente diferente. Nada perto de quando eu morava lá ou como é agora. Meus pais finalmente desistiram do Paquistão; não havia direitos para nós lá. Não podíamos ir para a escola como refugiados, minha mãe teve que nos educar em casa. O Afeganistão era a casa da minha família, então voltamos antes dos EUA chegarem em 2001. Mas quando voltamos, foi um pesadelo. Um verdadeiro pesadelo.

Todas as histórias que meus pais costumavam nos contar sobre o Afeganistão não pareciam verdadeiras porque tudo o que víamos eram essas pessoas assustadoras. Toda a cidade de Cabul era assustadora. Tenho algumas lembranças horríveis de mim e meus irmãos sendo crianças sob o controle do Talibã.

Niloofar Rahmani cresceu ouvindo histórias de seus pais sobre como era o Afeganistão antes do Talibã assumir o controle.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

Uma de minhas amigas morava ao nosso lado, e o Talibã a levou embora. Eles simplesmente a levaram embora. Tudo o que podíamos ouvir eram os gritos de sua mãe e depois dos gritos um tiro. Minha amiga se foi, e seu pai foi baleado na cabeça. É apenas um pesadelo que às vezes nem consigo pensar nisso. Houve tanta violência que o Talibã fez às mulheres, e todos os afegãos tiveram essas experiências com elas.

Eu me lembro deles. Simplesmente me dá dor de estômago pensar em uma vez em que vi minha mãe ser espancada pelo Talibã porque ela teve que levar minha irmã ao médico enquanto meu pai estava no trabalho. Minha irmã estava muito doente, então minha mãe teve que ser a única a levá-la ao hospital. Ela colocou a burca, mas esqueceu de cobrir totalmente as pernas e colocar as meias. O Talibã começou a espancá-la só porque ela mostrava parte das pernas. São apenas lembranças horríveis. Às vezes é até difícil colocar isso em palavras ou frases. É quase inacreditável o quanto uma pessoa pode passar. E quando você reflete sobre esses momentos e pensa sobre isso, parece um pesadelo, nem mesmo uma realidade.

Rahmani (à esquerda) foi treinada pela Força Aérea dos EUA nos Estados Unidos antes de retornar para voar em missões de combate no Afeganistão.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

COD: Qual é a sua memória mais antiga de querer se tornar um piloto?

NR: Minha história de me tornar um piloto é bem diferente. Na verdade, nunca voei em um avião até começar meu treinamento de piloto. Eu já era adulto quando sentei pela primeira vez em um avião e estava voando de Cabul para Herat durante meu treinamento de piloto.

Sob o Talibã, há violência contra as mulheres, as mulheres não podem nem ser educadas e ir à escola. Se eles pegam pais ensinando suas filhas, eles matam os pais na frente das crianças, e então eles atiram na criança. É simplesmente horrível.

Lembro-me de quando eu era uma garotinha e estávamos vivendo em uma barraca com tantos outros refugiados, cercados por tanta violência que eu apenas olhava para os pássaros voando e ficava tão impressionada com eles e como eles eram livres. Eu gostaria de poder voar como um pássaro. Eu ficava tão excitada sonhando em estar no céu e voar para longe dessas pessoas violentas.

Você sabe, meu pai costumava me contar histórias sobre quando ele cresceu, e é claro que o Afeganistão era um lugar completamente diferente naquela época. Foi bonito. As mulheres tinham liberdade. Todos viviam em paz. Mas algo no Afeganistão que nunca mudou foi o tribalismo. Quem estivesse no poder, quem tivesse conexões com o governo, quem fosse poderoso naquela época, apenas os filhos das pessoas de alto escalão poderiam ser pilotos. Meu pai foi negado, mesmo sendo um homem muito inteligente, e esse sonho morreu em seu coração. No Afeganistão, se você tem um filho, todo mundo acredita que seu filho pode tornar seus sonhos possíveis. Ele é o único que fará seu sonho incompleto se tornar realidade. Mas meus pais nunca pensaram assim.

Quando vi aviões americanos pela primeira vez, fiquei inspirada. Eu sabia que havia pilotos dentro daqueles aviões, e isso foi muito inspirador para mim. Foi tão rápido e fiquei tão fascinada pelo som e velocidade. Meus olhos não conseguiam nem pegá-los. Mesmo sabendo que havia uma guerra acontecendo, eu estava tão feliz olhando para eles e apenas tentando identificar onde eles estavam. Claro, alguém como eu, eu nunca teria pensado que algum dia esse sonho se tornaria realidade porque as forças armadas estavam contratando apenas pilotos do sexo masculino. Mas ver aqueles aviões realmente despertou esse sonho em minha mente, e decidi que não importava o que acontecesse, eu tinha que fazer isso.

Rahmani vôou em missões de reabastecimento partindo de Cabul durante a Operação Liberdade Duradoura.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

COD: O Afeganistão tem um histórico de negar oportunidades iguais às mulheres. Que tipo de obstáculos você enfrentou em sua busca por voar?

NR: Quando os EUA chegaram ao Afeganistão, eles expulsaram o Talibã de Cabul e as escolas começaram a reabrir para meninas. Quando as escolas reabriram, houve um processo em que todas as meninas poderiam vir e fazer um teste, e quem obtivesse um nível alto o suficiente poderia participar. Fiz o teste e me classifiquei para a sétima série. Então, em 2009, eu estava assistindo ao noticiário com meu irmão e vi aquele anúncio que dizia que os militares estavam recrutando mulheres em todos os ramos das Forças Armadas, incluindo a Força Aérea. Ver aquilo foi como mágica. Assim que ouvi aquilo eu sabia que ia fazer isso. Eu queria vestir o uniforme e poder fazer algo maior. No passado, as meninas nem podiam ir à escola, mas tive muita sorte de ter o apoio dos meus pais e eles concordaram que eu deveria me alistar na Força Aérea e buscar o que quisesse. Eu sabia qual era o risco, porque sabia que a sociedade afegã não estava pronta porque isso era muito novo para eles. Eu tive muita sorte de ter pais que me apoiaram e nunca me disseram não, então eu pude ir e me alistar.

COD: Em que aeronave você vôou e como era voar em missões de combate reais?

NR: Meu treinamento inicial de vôo foi nos Estados Unidos, depois voltamos ao Afeganistão para treinamento avançado. Primeiro voei com um Cessna 182, depois avancei para o Cessna 208 Caravan. Fui designado para Cabul e voei em algumas missões humanitárias, mas principalmente estava voando [evacuação de baixas] e missões de reabastecimento. Voamos com qualquer apoio que pudéssemos para fornecer às tropas no terreno e dar-lhes o que precisavam, como munição, comida e suprimentos médicos.

Mesmo depois de se tornar piloto e voar em missões de combate, Rahmani ainda enfrentava discriminação mesmo entre seus pares.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

COD: Depois de finalmente atingir seus objetivos de voar, o que o motivou a se mudar para os Estados Unidos?

NR: Eu vim para os EUA em março de 2015, quando recebi o prêmio Women of Courage (Mulher de Coragem). Tive sorte e consegui voar com os Blue Angels, o que foi muito, muito interessante. Então voltei para casa no Afeganistão, mas logo depois os EUA ofereceram cinco bolsas para pilotos afegãos para pilotar o C-130. Infelizmente, a maioria dos generais e a maioria das pessoas de escalões mais altos não queriam que uma mulher fizesse parte desse treinamento. Eles sabiam que era um treinamento caro e queriam que seus filhos fizessem parte dele. Eu tive que lutar naquela batalha por meses e meses, e ainda assim eles não queriam me nomear para o programa. Meus próprios colegas de trabalho afegãos pensaram que lhes traria vergonha se uma mulher pudesse fazer a mesma coisa que eles. Eles nunca quiseram que uma mulher crescesse e encontrasse mais sucesso em sua carreira. Finalmente, tive conselheiros da Embaixada dos EUA entrando e dizendo: 'Não, você vai para este treinamento mesmo que não tenha a aprovação afegã.' Infelizmente, os generais da Força Aérea nunca o aprovaram. Eventualmente, em outubro de 2015, decidi me mudar para a América.

COD: Você conseguiu tirar sua família do Afeganistão no verão passado, quando o Talibã retomou o controle do país. Como foi esse processo?

NR: Em agosto do ano passado, o Talibã tomou o poder. Aos olhos do Talibã, e aos olhos de alguns membros da minha própria família, meus pais foram contra a sociedade e eu fui contra o que era ser uma boa mulher muçulmana. Eles envergonharam meu pai, perguntando: “Como você pode criar uma garota que não é honrada? Ela trabalha nas forças armadas. Ela trabalha com americanos e não é mais uma boa muçulmana.” É difícil esconder sua própria família porque eles sabem tudo sobre você e é com isso que estávamos lidando. É demais para descrever. Quando deixei o Afeganistão em 2015, não pude voltar e meus pais ainda estavam lá.

Eles sempre acreditaram que o Afeganistão era seu país. Foi lá que eles construíram sua vida, e partir significaria que eles teriam que começar de novo, o que foi especialmente difícil depois de 22 anos de liberdade do Talibã. Eles nunca pensaram que algo como uma tomada do poder pelo Talibã aconteceria e, quando aconteceu, as pessoas simplesmente entraram em pânico.

O sonho de Rahmani era pilotar C-130s, e agora ela está tentando se juntar à Força Aérea dos EUA para que isso aconteça.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

Meu irmão – que havia fugido para a Turquia – ligou para meus pais e disse para eles deixarem seu esconderijo em Cabul e irem para o aeroporto. Havia postos de controle do Talibã em todos os lugares. Eles não conseguiram chegar até minha irmã que estava em outro lugar no Afeganistão porque o Talibã estava verificando passaportes e telefones, que era a maneira de se comunicar comigo e minha irmã. Foi um pesadelo assim por duas semanas só para levá-los ao aeroporto Não foi fácil, e eles viram coisas horríveis que não foram mostradas na TV. Eles viram cadáveres, crianças morrerem e tantas coisas horríveis. E então, finalmente, alguns dos meus conselheiros que ainda estavam no Afeganistão conseguiram puxá-los pelo portão. Eles foram tão gentis. Jamais esquecerei a gentileza deles. Sou grato a todas as pessoas que trabalharam dia e noite para que isso acontecesse. Conseguimos levar meus pais para os Emirados Árabes Unidos e depois para Wisconsin. Agora eles estão aqui comigo na Flórida. Estou tentando descobrir minha nova vida também. Infelizmente, nada do que fiz voando foi contado. Eu tive que voltar para a escola e obter todas as minhas classificações da FAA. Foi um começo completamente novo para todos nós, mas sou grata por estarmos todos seguros. Eu posso fazer o que eu quiser aqui. Não é impossível. Só vai exigir muito trabalho e esforço.

Depois de vir aqui, acredito 100% que este país é uma terra de liberdade e uma terra de oportunidades. Quando digo liberdade, quero dizer uma boa liberdade. É um lugar onde ninguém lhe diz quais são suas limitações, ou o que você pode e o que não pode fazer. Esperei anos e anos e anos apenas por uma residência permanente, com tantos objetivos e tantos desejos e sonhos que são impossíveis sem ter o status imigratório certo.

Em 2021, finalmente consegui um green card, o qual dá residência permanente. Quero voltar para a Força Aérea, quero voltar para as forças armadas – desta vez para as forças armadas dos EUA. Quero retribuir às pessoas que me salvaram e salvaram minha família. Sou muito grato a eles, porque se não fosse por eles, eu não estaria viva e meus colegas não estariam vivos. Durante anos, tenho tentado arduamente fazer parte das forças armadas novamente, não importa de que ramo seja. Eu só quero vestir esse uniforme e poder voar e servir o país que nos deu um lar e não nos abandonou. É um novo começo de vida.

Durante o outono de Cabul em agosto de 2021, Rahmani conseguiu se coordenar com ex-colegas de trabalho que ajudaram sua família a fugir para os Estados Unidos.
(Foto cortesia de Niloofar Rahmani)

Meu status de imigração nunca me permitiu me alistar, mas não aceito um não como resposta. Eu tenho que fazer alguma coisa, mas ao mesmo tempo minhas mãos estão atadas. Todo o meu treinamento foi com a Força Aérea dos EUA. Ganhei minhas asas e todos os meus instrutores eram americanos. Todas as horas de voo e todas as missões de combate que voei, nenhuma delas foi contada. Eles me disseram basicamente que você tem que começar do zero. Para alguém que acabou de se mudar para um país onde você não conhece muito a cultura, não sabe muito sobre o sistema educacional, ainda está tentando viver, obter uma licença de avião particular não é fácil. É muito, muito caro nos EUA, então comecei a trabalhar de intérprete. Fui intérprete para hospitais, seguradoras, bancos, agências de aplicação da lei, tribunais e escritórios de advocacia. Foi assim que comecei a construir minha vida novamente, porque não podia voar.

Tive muita sorte e uma das escolas na Flórida me ofereceu uma bolsa de estudos, e consegui passar um vôo de checagem, pois já sabia voar. Eu sabia muita coisa que a maioria dos pilotos civis não sabia. Consegui minha licença de instrutor de vôo e, muito recentemente, fui convidado para o Gathering of Eagles, que é uma convenção anual que celebra a aviação. Todos os anos, o Colégio do Estado-Maior da Força Aérea nomeia várias pessoas que eles chamam de águias e destacam sua história e realizações. Conheci o ex-controlador de combate da Força Aérea Dan Schilling e o general [David] Goldfein, ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea.

Depois de compartilhar minha história, contei a eles o quanto queria voltar para as forças armadas e não queria ser apenas uma piloto de avião. Desde que os conheci, eles têm trabalhado duro para me ajudar a entrar nas forças armadas. Sou muito grata a todos e mal posso esperar pelo dia em que realmente começarei a jornada. Seria incrível. Estou muito excitada e ansiosa por isso.

Niloofar Rahmani escreveu sua história de desafiar as probabilidades de se tornar a primeira piloto mulher do Afeganistão em Open Skies.
Composto por Coffee or Die Magazine.

COD: Você tem um novo livro sobre sua jornada inspiradora. O que você espera que os leitores tirem da sua história?

NR: Como humanos, quando a vida fica fácil, começamos a dar tudo como garantido. Achamos que deveria ser dado a nós, mas não é o caso. Quero que as pessoas que lerem minha história – especialmente meninas e meninos – saibam como são afortunadas por terem todas essas liberdades. Acesso à educação, água potável, até mesmo acender a luz, são sonhos para outra pessoa que não tem a mesma sorte. A coisa mais importante é que nunca devemos dar a vida como garantida, especialmente quando tudo fica fácil. Temos que usar esses dons da melhor maneira possível.

Quando olharem para trás daqui a 10, 15, 20 anos, quero que se orgulhem do que fizeram na vida. Eu quero que eles percebam que não importa em que país vivemos, não podemos tomar as coisas como garantidas. Mais importante ainda, se você tem um sonho, sempre vá em frente. Não importa a idade que você tem, é sempre bom sonhar. Eu nunca pensei que nenhum dos meus sonhos se tornaria realidade, mas eles me levaram para onde eu pertenço. Eu sonhava em ser um pássaro e estar naqueles caças. Meu sonho não era estudar, mas tudo aconteceu porque lutei pela chance de voar e nunca desisti.