quinta-feira, 19 de agosto de 2021

COMENTÁRIO: A Vitória de Pirro do Paquistão no Afeganistão


Por Husain Haqqani, Foreign Affairs, 22 de julho de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 19 de agosto de 2021.

O establishment de segurança do Paquistão está aplaudindo os recentes avanços militares do Talibã no Afeganistão. Os linha-dura do país canalizaram apoio ao Talibã por décadas, e agora eles podem imaginar seus aliados firmemente instalados em Cabul. O Paquistão conseguiu o que desejava - mas se arrependerá. A tomada do Talibã deixará o Paquistão mais vulnerável ao extremismo em casa e potencialmente mais isolado no cenário mundial.

O fim da guerra de 20 anos dos Estados Unidos no Afeganistão também promete marcar uma virada em seu relacionamento com Islamabad. O Paquistão há muito velou suas ambições no Afeganistão para manter relações com Washington, mas esse ato de equilíbrio - visto em Washington como um jogo duplo - será impossível no caso de um emirado islâmico reconstituído ser estabelecido em Cabul. Esta não seria a justificativa que os militares do Paquistão estão esperando: o Talibã tem menos probabilidade de ceder ao Paquistão em seu momento de triunfo, e os americanos provavelmente não se reconciliarão com o grupo a longo prazo. O cenário de pesadelo do Paquistão seria encontrar-se preso entre um Talibã incontrolável e demandas internacionais para controlá-los.

A vitória do Talibã terá um efeito igualmente desastroso na paz e segurança interna do Paquistão. O extremismo islâmico já dividiu a sociedade paquistanesa em linhas sectárias, e a ascensão de islâmicos afegãos na vizinhança apenas encorajará os radicais em casa. Esforços para forçar a mão do Talibã podem resultar em uma reação violenta, com o Talibã do Paquistão atacando alvos dentro do Paquistão. E se a luta entre o Talibã e seus oponentes piorar, o Paquistão terá que lidar com um novo fluxo de refugiados. Uma guerra civil na porta ao lado prejudicaria ainda mais a economia em dificuldades do país. Os críticos paquistaneses do envolvimento de seu país com o Talibã há muito temem e previam esse cenário. Mas os generais do Paquistão vêem o Talibã como um parceiro importante em sua competição com a Índia. Enquanto isso, líderes civis fracos em Islamabad concordaram com uma política que prioriza a eliminação da influência real ou percebida da Índia no Afeganistão.

Por décadas, o Paquistão jogou um jogo arriscado, apoiando ou tolerando o Talibã e também tentando permanecer nas boas graças de Washington. Funcionou por mais tempo do que muitos poderiam esperar, mas nunca seria sustentável a longo prazo. O Paquistão conseguiu chutar a lata pela estrada por muito tempo. Em breve, porém, chegará ao fim da estrada.

A Obsessão com a Índia

O sistema de segurança do Paquistão há muito tempo está obcecado em impor um governo amigo em Cabul. Essa fixação está enraizada na crença de que a Índia está conspirando para dividir o Paquistão ao longo de linhas étnicas e que o Afeganistão será a plataforma de lançamento para insurgências antigovernamentais nas regiões do Baluchistão e Khyber Pakhtunkhwa do Paquistão. Esses temores têm suas raízes no fato de que o Afeganistão reivindicou partes do Baluchistão e das regiões pashtun do Paquistão na época da criação do Paquistão em agosto de 1947. O Afeganistão reconheceu o Paquistão e estabeleceu relações diplomáticas alguns dias depois, mas não reconheceu a Linha Durand, desenhada pelos britânicos como uma fronteira internacional até 1976. O Afeganistão também permaneceu amigo da Índia, levando o Paquistão a permitir que os islâmicos afegãos se organizassem em seu território antes mesmo da ocupação soviética do Afeganistão em 1979.


Apesar da ampla cooperação EUA-Paquistão no Afeganistão durante a Guerra Fria, os dois países nunca reconciliaram verdadeiramente seus interesses divergentes no país. Os Estados Unidos enviaram armas e dinheiro para os mujahideen através do Paquistão como parte de uma estratégia global para sangrar a União Soviética, mas mostraram pouco interesse no futuro do Afeganistão depois que os soviéticos partiram. As autoridades paquistanesas, por outro lado, viram a jihad anti-soviética como uma oportunidade de transformar o Afeganistão em um estado satélite. Eles favoreciam os mujahideen mais fundamentalistas na esperança de que um futuro governo sob seu controle rejeitasse a influência indiana e ajudasse a suprimir o nacionalismo étnico Baloch e Pashtun ao longo de sua fronteira comum.

Essas diferenças não resolvidas apodreceram nas décadas seguintes. Mesmo depois que o Paquistão se tornou o centro logístico para as forças dos EUA no Afeganistão após o 11 de setembro, as autoridades em Islamabad se preocuparam com a influência da Índia em Cabul. Os militares do Paquistão apoiaram o Talibã, argumentando que o grupo representava uma realidade que seu país, como vizinho do Afeganistão com uma população etnicamente sobreposta, não poderia ignorar. Para simpatizantes islâmicos, incluindo aqueles dentro do establishment, também havia um prazer perverso em causar dor aos Estados Unidos.

A vitória do Taleban terá um efeito desastroso na paz e segurança interna do Paquistão.

O General Hamid Gul, ex-chefe da Inteligência Inter-Serviços (Inter-Services Intelligence, ISI) do Paquistão, expôs publicamente em 2014 como o ISI usou a ajuda fornecida pelos Estados Unidos após o 11 de setembro para continuar financiando o Talibã e como se beneficiou da decisão dos EUA de inicialmente ignorar o grupo islâmico afegão em favor de sua perseguição à Al Qaeda. Ele disse a uma audiência de televisão em 2014: “Quando a história for escrita, será declarado que o ISI derrotou a União Soviética no Afeganistão com a ajuda da América. Então haverá outra frase. O ISI, com a ajuda da América, derrotou a América.”

Mais recentemente, altos funcionários paquistaneses também se gabaram do fracasso dos EUA em eliminar o Talibã. O envolvimento diplomático de Washington com o grupo islâmico, eles acreditam, equivale a uma aceitação tácita de sua influência no Afeganistão. Após a assinatura do acordo EUA-Talibã em Doha em fevereiro de 2020, que abriu o caminho para a retirada das tropas americanas, Khawaja Muhammad Asif, um ex-ministro da Defesa e ministro das Relações Exteriores do Paquistão, tuitou uma foto dos Secretário de Estado americano Mike Pompeo em reunião com o líder talibã Mullah Abdul Ghani Baradar. Ele acrescentou um comentário: “Você pode ter a força do seu lado, mas Deus está conosco. Allah u Akbar!”

Como ministro das Relações Exteriores, Asif insistiu que as relações do Paquistão com o Talibã apenas refletiam o reconhecimento de sua força política no Afeganistão. Ele também criticou os Estados Unidos por transformarem o Paquistão em um "menino chicoteado" por não conseguirem destruir o grupo. Mas ele não sentiu necessidade de uma dupla fala diplomática neste momento de triunfo. Para paquistaneses como Gul e Asif, a vitória iminente do Talibã também é uma vitória das operações secretas do Paquistão.

O Brigadeiro Dogbar, do ISIS, posando em Gardez, no Afeganistão, enquanto uma unidade soviética é emboscada por mujahideens, metade dos anos 1980.

É provável que esse triunfalismo saia pela culatra. Os americanos nunca reconheceram como séria a percepção do Paquistão de uma ameaça existencial da Índia, e é por isso que eles nunca entenderam a preferência do Paquistão por islamistas pashtuns em relação aos nacionalistas afegãos. As autoridades paquistanesas, ao longo dos anos, optaram por negar categoricamente as ações do Paquistão no Afeganistão ou explicá-las. Isso gerou acusações de fraude por parte dos americanos, gerando ainda mais desconfiança nas relações bilaterais. As relações com a Índia e o resto do mundo também sofreram, e o Paquistão passou a depender excessivamente da China.

De sua dívida externa de US$ 90 bilhões, o Paquistão deve 27% - ou mais de US$ 24 bilhões - a Pequim. Também foi forçado a confiar em tecnologia militar chinesa de qualidade inferior depois de perder a assistência militar dos EUA.

Longe de ser "normal"

Trinta anos de apoio à jihad também alimentaram a disfunção interna do país. Sua economia tem lutado, exceto em anos de generosa ajuda americana. Radicais islâmicos locais incitaram a violência esporádica, como ataques terroristas a minorias religiosas e rebeliões exigindo a expulsão do embaixador francês por suposta blasfêmia na França contra o profeta Maomé. Os direitos das mulheres têm sido questionados e ameaçados publicamente, e as redes sociais e convencionais são regularmente censuradas para acomodar às sensibilidades islâmicas radicais. O governo foi forçado a “islamizar” o currículo em detrimento dos cursos de ciências e pensamento crítico.

Ironicamente, a retirada americana do Afeganistão ocorre em meio a promessas de reverter essas tendências. Quatro anos atrás, o atual chefe do exército do Paquistão, General Qamar Javed Bajwa, declarou que queria transformar o Paquistão em um "país normal". Desde então, ele também falou sobre a necessidade de melhorar as relações com a Índia e reduzir a dependência do Paquistão da China.

Essa visão de transformação incluiu um esforço para possibilitar um acordo no Afeganistão. O Paquistão começou a cercar a longa e porosa fronteira com seu vizinho, fez aberturas ao governo de Cabul e prometeu ajudar os Estados Unidos a chegar a um acordo de paz. Bajwa indicou a disposição do Paquistão de expandir seus parceiros no Afeganistão para incluir facções não-talibãs. O ISI organizou reuniões entre negociadores americanos e alguns líderes do Talibã, levando ao Acordo de Doha, que definiu um cronograma para a retirada militar dos EUA em troca de vagas promessas do Talibã de iniciar negociações de paz com outros afegãos e evitar que territórios controlados por eles fossem usados para lançar ataques terroristas contra os Estados Unidos.

É improvável que os Estados Unidos perdoem tão cedo o Paquistão por seu apoio de décadas ao Talibã.

Em vez de estimular o retorno à normalidade no Paquistão, este acordo apenas agravará os desafios do país. Dada a ideologia de linha dura do Talibã, não era realista para os negociadores americanos esperar que o grupo fizesse um acordo com outros afegãos, especialmente o governo de Cabul. E embora o Paquistão tenha facilitado este acordo na esperança de que melhorasse sua posição com os Estados Unidos, agora é provável que seja culpado pela recusa do Talibã em parar de lutar e concordar com o compartilhamento do poder. O desejo declarado de Bajwa de mudar o curso foi impedido pelas políticas anteriores do Paquistão. Dado o relacionamento ruim do Paquistão com quase todos os outros grupos no Afeganistão, ele pode ter pouca escolha a não ser ficar com o Talibã no caso de uma nova guerra civil na fronteira noroeste.


O acordo também não alcançará os objetivos de contraterrorismo de Washington. Um relatório do Conselho de Segurança da ONU publicado em junho concluiu que o Talibã não rompeu laços com a al-Qaeda e que altos funcionários da al-Qaeda foram recentemente mortos "ao lado de associados do Talibã enquanto co-alocados com eles". O relatório também identificou a rede Haqqani, um grupo que os militares americanos uma vez descreveram como um "verdadeiro braço do ISI do Paquistão", como a principal ligação do Talibã com a al-Qaeda. “Os laços entre os dois grupos permanecem próximos, com base no alinhamento ideológico, relações forjadas por meio de lutas comuns e casamentos mistos”, diz o relatório.

O secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, enquanto isso, disse que a al-Qaeda poderia se reconstituir no Afeganistão dentro de dois anos de uma retirada americana. Nenhum desses fatos mudou o compromisso do presidente Joe Biden de retirar as forças americanas.

O Paquistão está antecipando uma vitória do Talibã, embora seus líderes continuem a falar da necessidade de reconciliação entre os afegãos. Embora as declarações públicas de Islamabad continuem a descrever o desejo de paz do Paquistão, as autoridades americanas dificilmente acreditarão nos protestos do Paquistão de que não quer uma tomada militar talibã. O relacionamento dos dois países parece prestes a se tornar ainda mais não confiável nos próximos anos.

Cuidado com o que deseja

Para os paquistaneses que vêem o mundo pelo prisma da competição com a Índia, uma vitória do Talibã oferece algum consolo. O Paquistão não tem se saído bem na competição com a Índia na maioria das frentes, mas seus representantes no Afeganistão parecem estar tendo sucesso - mesmo que o Paquistão não possa controlá-los totalmente.

Mas é uma vitória de Pirro. Esses acontecimentos afastarão ainda mais o Paquistão de se tornar um “país normal”, perpetuando disfunções em casa e prendendo-o a uma política externa definida pela hostilidade em relação à Índia e dependência da China. O longo envolvimento mútuo de Washington e Islamabad no Afeganistão ameaça enfraquecer ainda mais a relação EUA-Paquistão. É improvável que os Estados Unidos perdoem tão cedo o Paquistão por seu apoio de décadas ao Talibã. Nos próximos anos, os paquistaneses discutirão se valeu a pena o esforço para influenciar o Afeganistão por meio de representantes talibãs quando, depois do 11 de setembro, o Paquistão poderia ter garantido seus interesses se aliando totalmente aos americanos.

Bibliografia recomendada:

Elite Forces of India and Pakistan.
Kenneth Conboy e Paul Hannon.

Leitura recomendada:

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

FOTO: O FAMAS de volta a Cabul depois de 7 anos


O FAMAS novamente no Afeganistão depois da retirada de 2012.

Tropas francesas auxiliando a evacuação na Operação Apagan, durante a aterrissagem do primeiro A400M e evacuação dos franceses de Cabul.

Bibliografia recomendada:

Le FAMAS et son histoire.
Jean Huon.

Leitura recomendada:

GALERIA: Treinamento de reservistas do 3e RMAT com o FAMAS, 1º de agosto de 2021.

GALERIA: O FAMAS em Vanuatu, 22 de abril de 2020.

O futuro dos cadetes afegãos na Índia é incerto

Soldados do Exército Nacional Afegão praticam tiro ao alvo no campo de tiro, outubro de 2010.

Por Jakub Wozniak, Overt Defense (OVD), 18 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 18 de agosto de 2021.

Enquanto o governo afegão desmorona diante do avanço do Talibã e a comunidade internacional se apressa para evacuar seus cidadãos e aliados afegãos de Cabul, o futuro dos militares afegãos treinando e estudando  na Índia permanece incerto. O jornal Indian News 18 relatou que mais de 150 soldados e cadetes estão presos no país; seu destino é incerto.

A Índia apoiou as forças armadas afegãs durante anos, fornecendo equipamento e treinamento. Entre 2015 e 2016, a Índia forneceu ao Afeganistão quatro helicópteros Mi-35 e, em 2019, três helicópteros leves Cheetah. Mais de 700 soldados receberam treinamento na Índia todos os anos em programas “feitos sob medida” de curta duração em várias instituições de defesa indianas, com milhares recebendo treinamento ao longo dos anos em áreas como coleta de informações cibernéticas e de inteligência. O The Times of India citou um oficial dizendo que:

“Além disso, 80-100 cadetes vinham para o treinamento de pré-comissionamento na IMA [Academia Militar Indiana], OTA [Academia de Treinamento de Oficiais] e NDA [Academia de Defesa Nacional] todos os anos. Embora treinemos cadetes de muitos outros países, desde Butão, Bangladesh e Sri Lanka até Vietnã, Mianmar e Tadjiquistão em nossas academias militares, os afegãos constituem a maior parte dos cadetes estrangeiros.”

Os cadetes do IMA estão tão preocupados com suas famílias em casa quanto com eles próprios. O Hindustan Times citou um oficial falando sob condição de anonimato:

“Os jovens cadetes estão preocupados com suas famílias em casa... Seus treinadores e professores estão constantemente os apoiando e tentando manter seu moral alto. […] Mesmo que seu futuro pareça incerto, já que o ANA [Exército Nacional Afegão] parece ter entrado em colapso, o IMA não está interrompendo seu treinamento”.

 Arindam Bagchi é o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Índia.

Enquanto os cadetes aguardam notícias sobre seu futuro, os militares indianos estão lutando para evacuar cidadãos e pessoal de Cabul, com o embaixador supostamente saindo em um avião da Força Aérea em 17 de agosto. O governo também afirmou, de forma polêmica, que priorizará os vistos de emergência para afegãos hindus e sikhs.

A mídia indiana compartilhou imagens do helicóptero MI-35 oferecido ao Afeganistão caindo nas mãos do Talibã:


Bibliografia recomendada:

I Am Soldier:
War stories from the Ancient World to the 20th century.
Robert O'Neil e Richard Holmes.

Leitura recomendada:

Como a China vê a retirada dos EUA do Afeganistão,  21 de maio de 2021.

COMENTÁRIO: A Vitória de Pirro do Paquistão no Afeganistão, 19 de agosto de 2021.

Expansão das forças de operações especiais do Afeganistão: dobrando seu sucesso ou diluindo ainda mais sua missão?, 19 de junho de 2021.

Corpo de Comandos do Exército Nacional Afegão14 de julho de 2020.


FOTO: Raide dos Comandos Afegãos na província de Farah, 3 de setembro de 2020.

FOTO: Soldados americanos e afegãos observam uma explosão, 17 de janeiro de 2020.

FOTO: Fuzis variantes do SVD Dragunov, 21 de junho de 2021.

IntelBrief: Negociando uma saída do contraterrorismo no Sahel


Por Wassim Nasr, The Soufan Center, 6 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de agosto de 2021.

Resumo logo de cara:
  • Talvez em um esforço para sinalizar uma abertura para negociações, o braço da al-Qaeda no Sahel declarou que o solo francês não faz parte do conflito.
  • Pela primeira vez, um afiliado da al-Qaeda declarou publicamente que a guerra em curso com a França não inclui solo francês.
  • Os ramos mais ativos da al-Qaeda e do chamado Estado Islâmico (EI) estão atualmente na África Subsaariana.
  • As negociações são uma ferramenta necessária que pode e deve ser utilizada em paralelo com a ação militar para fornecer soluções sustentáveis.
Com a África se tornando o epicentro da atividade jihadista globalmente, a al-Qaeda do Magrebe Islâmico (AQIM) afiliada do Sahel, Jamaat Nusrat al-Islam wal Muslimin (JNIM), continuou a evoluir para uma força política e militar na região. Os ramos mais ativos da al-Qaeda e do Estado Islâmico estão na África - a região do Sahel e o Chifre da África para a al-Qaeda, e a região do Lago Chade e a África Central para o Estado Islâmico. Até agora, toda experiência de “governança” da al-Qaeda resultou em fracasso, principalmente devido à pressão militar das potências ocidentais, objetivos quixotescos, rivalidades internas e falta de experiência política ou capacidade de manobra para atender às necessidades e queixas das populações locais. Foi esse o caso durante o projeto de governança de curta duração no norte do Mali em 2012. Militantes da al-Qaeda e comandantes locais implementaram interpretações severas da lei Sharia, empregaram violência para impor sua autoridade e destruíram artefatos culturais como os históricos mausoléus de Timbuktu. No entanto, isso contradiz a vontade do líder da AQIM, Abu Moussaab Abdel Wadud. Para ganhar corações e mentes, ele ordenou que os militantes sob seu comando seguissem uma “abordagem gradual suave”, que recebeu críticas da central da al-Qaeda. Para os principais líderes da al-Qaeda, Abu Moussaab era visto como conciliador e excessivamente político.


Cinco anos depois, o mesmo homem estava por trás do esforço que levou à unificação de quatro facções jihadistas no Sahel. Abu Moussab teve sucesso na mediação de disputas entre vários comandantes regionais e, ao mesmo tempo, revigorou uma AQIM enfraquecida na Argélia por meio de um impulso vital mais ao sul, no Mali; o JNIM foi criado sob a bandeira da AQIM em 2017. No entanto, em junho de 2020, as forças de Operações Especiais francesas mataram Abu Moussaab em um tiroteio no norte do Mali. A AQIM é agora chefiada por Abu Ubaïda Yussef al-Anabi, outro cidadão argelino e ex-chefe do "Conselho de Notáveis" da AQIM desde 2010. Ele foi a fonte de inspiração para a abordagem de Abu Moussaab, tentando uma governança "suave" e entrincheiramento na dinâmica local. Essas políticas foram seguidas e implementadas pelo chefe do JNIM, Iyad Ag Ghali, uma figura tuaregue conhecida e um político do Mali antes de se tornar um líder jihadista. O segundo em comando, Mohammad Kuffa, fornece ao grupo acesso ao centro do Mali, Burkina Faso e até a fronteira com Benin, Costa do Marfim, Senegal e Gana, devido à sua capacidade de recrutar entre a comunidade Fulani como pregador Fulani. Conseqüentemente, o grupo tem um alcance além dos recrutas tuaregues e árabes e a capacidade de romper a tradicional organização de casta social entre a comunidade Fulani.

A al-Qaeda tolerou o surgimento do Estado Islâmico no Sahel por quase quatro anos, mas isso chegou ao fim em 2020, causando sérias repercussões para os civis pegos no fogo cruzado. Essa nova realidade de competição entre grupos da região se traduziu em recrutas mais comprometidos de ambos os lados. Combinado com a lacuna de governança e a falta de serviços do Estado em muitas áreas, a repercussão da luta intragrupo está forçando as comunidades locais a buscar proteção do JNIM ou do Estado Islâmico contra ataques de outro grupo, forças de segurança governamentais predatórias ou milícias afiliadas na região da tríplice fronteira (ou seja, Mali, Níger e Burkina Faso).


O JNIM, que inicialmente evitou abordar publicamente o conflito com o Estado Islâmico, sugeriu em janeiro de 2021 a responsabilidade deste último por um massacre contra a comunidade Zarma no Níger e prometeu vingar os mortos. No Níger, pela primeira vez em maio de 2021, o Estado Islâmico reivindicou ataques contra as forças armadas e milícias locais como vingança pelo assassinato de vários tuaregues malinenses pelas forças de fronteira do Níger. Essas reivindicações destacam as intenções do Estado Islâmico de se entrincheirar na dinâmica local do Níger.

Cada grupo parece expressar, ou impor, sua vontade política de maneiras bastante opostas. O JNIM se absteve de implementar regras severas sobre as populações locais e esperou que os moradores buscassem "justiça islâmica", até mesmo tentando fornecer recursos humanos no campo, convocando acadêmicos islâmicos não-afiliados para servirem como juízes; enquanto isso, o Estado Islâmico governou por meio de interpretações estritas da Sharia, e muitas vezes sem qualquer consideração pela dinâmica local. Outra contradição notável entre os dois grupos surgiu em relação aos reféns ocidentais. Por um lado, o JNIM e a AQIM abduzem e mantêm reféns porque possuem as capacidades logísticas necessárias para o fazer. Por outro lado, o Estado Islâmico não possui capacidades de detenção semelhantes e, portanto, tende a executar prisioneiros no local. O JNIM/AQIM mantém atualmente seis reféns estrangeiros no Sahel, entre eles um americano e um francês. Em comparação, o Estado Islâmico executou seis trabalhadores franceses de ajuda humanitária, seu guia local e seu motorista em Kouré, no Níger, no dia 9 de agosto de 2020. Esta estratégia sugere objetivos diferentes - manter reféns pode resultar em uma recompensa financeira, enquanto executá-los imediatamente espalha terror e intimida populações, bem como ONGs estrangeiras.

Em uma situação em constante mudança com múltiplos atores e interesses, o JNIM, o mais poderoso afiliado da al-Qaeda, pode estar fechando um “capítulo do terror” internacional no solo do continente onde tudo começou. A África testemunhou o impacto da rede internacional da al-Qaeda já em 1998, com os atentados às embaixadas no Quênia e na Tanzânia. O continente africano também foi o primeiro a entrar na fase aberta de “governança jihadista” com a União dos Tribunais Islâmicos na Somália. Foi em solo africano que os primeiros soldados americanos morreram em uma luta que incluiu retornados da al-Qaeda do Afeganistão já em 1993 na Batalha de Mogadíscio. E é na África que estamos testemunhando uma evolução notável de uma das facções mais ativas da al-Qaeda em todo o mundo. Pela primeira vez, uma filial ou filial da al-Qaeda declarou publicamente que a guerra em curso com a França não inclui solo francês. Isso veio na forma de um comunicado escrito em janeiro deste ano. Seis meses depois, o chefe da AQIM enfatizou em sua primeira mensagem de áudio em junho que solo francês nunca foi mirado vindo do Mali. Ao mesmo tempo, os apelos para vingar o Profeta e atingir os interesses franceses no continente africano continuam. No entanto, esta clara evolução do discurso da AQIM deve ser acompanhada de perto e tida em consideração, pois certamente não porá fim ao confronto, mas poderá criar uma abertura para conversas no futuro.


Para conter as insurgências do Sahel, as negociações são uma ferramenta necessária que pode e deve ser utilizada em conjunto com a ação militar e operações cinéticas de contraterrorismo. O JNIM, o único partido jihadista disposto a negociar, usa o terrorismo e as negociações com governos e representantes locais como ferramentas e não como fins em si. No entanto, mesmo com a afiliada da al-Qaeda suavizando sua posição, a França foi incapaz ou não quis capitalizar sobre esse desenvolvimento e usar as negociações como uma ferramenta eficaz com o JNIM.

Após oito anos de intervenção francesa direta, o status quo no Sahel é insustentável. Na esteira do aumento do Estado Islâmico e da possível cooperação entre seus militantes no Sahel e no Lago Chade, os governos regionais e os atores internacionais não devem envolver o JNIM apenas militarmente, mas também politicamente como um ator profundamente enraizado na dinâmica local, desfrutando do apoio e aceitação populares. Quando as populações locais percebem as facções jihadistas como parte da solução para sustentar suas necessidades básicas diárias imediatas, a ação militar, a melhoria da governança e a responsabilização não são suficientes. Antes de abordar a questão do Sahel como parte da Guerra Global contra o Terror, as potências ocidentais devem pressionar os governos locais para tratarem de todo o sistema de compartilhamento de poder e atribuições de terras que devem ser revisadas em uma base local e direcionada. Uma vez que os grupos jihadistas capitalizam e expõem as queixas locais, as soluções também existem nesses mesmos níveis.

Wassim Nasr é jornalista da France24 e especialista em jihadismo. Nasr é o autor do livro "État islamique, le fait accompli" (Editora Plon, 2016). Ele também é consultor do documentário Terror Studios (2016) indicado ao International Emmy Awards (2017). Siga-o em @SimNasr.

Bibliografia recomendada:

Estado Islâmico:
Desvendando o exército do terror.
Michael Weiss e Hassan Hassan.

Leitura recomendada:

Implicações da al-Qaeda na nova liderança do Magrebe Islâmico, 5 de abril de 2021.

Guerras e terrorismo: não se deve errar o alvo22 de novembro de 2020.

O Estilo de Guerra Francês, 12 de janeiro de 2020.





terça-feira, 17 de agosto de 2021

"Resposta ao povo afegão": Jornalista afegã que sobreviveu ao Talibã pergunta ao Pentágono o que acontece agora

A repórter afegã Nazira Karimi aponta para sua máscara facial da bandeira da antiga República Islâmica do Afeganistão durante uma coletiva de imprensa com o porta-voz do Pentágono John Kirby em 16 de agosto de 2020.
(Captura de tela via CNN)

Por David Roza, Task & Purpose, 17 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de agosto de 2021.

“Não temos presidente, não temos nada”.

Uma jornalista afegã que sobreviveu a perseguições, ameaças de morte e violência ao cobrir o Talibã na década de 1990 acusou o Pentágono do fogo na segunda-feira quando perguntou ao secretário de imprensa John Kirby para onde Ashraf Ghani, o ex-presidente de seu país, havia fugido. Karimi também aproveitou a oportunidade para expressar sua frustração com o rápido retorno do Talibã ao poder.

“Eu sou do Afeganistão e estou muito chateada hoje, porque as mulheres afegãs não esperavam que da noite para o dia todo o Talibã viesse”, disse a jornalista Nazira Karimi em lágrimas em uma coletiva de imprensa na segunda-feira. A reunião ocorreu dois dias depois que Ghani fugiu do Afeganistão e um dia depois que o Talibã assumiu o controle de Cabul, a capital, marcando a vitória em sua guerra de 20 anos contra o governo afegão e os Estados Unidos.

“Eles tiraram minha bandeira”, disse Karimi, apontando para sua máscara, que trazia a faixa preta, vermelha e verde que o país hasteava desde 2004. “Esta é a minha bandeira... todo mundo está chateado, principalmente as mulheres”.

Karimi perguntou a Kirby para onde Ghani havia fugido, dizendo que ele tinha a obrigação de "lutar por nós, povo". Mas ela também expressou sua frustração com a situação enfrentada pelas mulheres afegãs em geral. A jornalista começou sua carreira cobrindo a brutalidade do Talibã contra mulheres e meninas afegãs, de acordo com o Tahirih Justice Center, uma organização sem fins lucrativos que trabalha para proteger mulheres imigrantes e meninas que fogem da violência.

“A certa altura, durante uma entrevista para a BBC, ela perguntou a um porta-voz do Talibã sobre se o Talibã permitiria que as mulheres trabalhassem”, escreveu o centro em uma declaração de 2015 em homenagem a Karimi. “Em resposta, ele a manteve presa por três horas, depois das quais disse a ela para nunca mais voltar e ficar em casa.”

Agora que o Talibã está de volta ao poder, isso provavelmente significa um retorno a como as coisas eram na década de 1990, o que significa desfazer muito do progresso que as mulheres fizeram no país desde a invasão dos Estados Unidos em 2001. Esse progresso inclui a posse de 27% dos assentos na Casa do Povo do antigo governo; ir para a escola; ser capaz de dirigir carros; servir no exército e, por uma mulher, tornando-se prefeito de uma capital de província.

“As mulheres têm muitas conquistas no Afeganistão”, disse Karimi. “Eu tenho muitas conquistas.”

Farzia, 28, que perdeu seu marido em Baghlan uma semana atrás para lutar contra o Talibã, senta-se com seus filhos, Subhan, 5, e Ismael, 2, em uma tenda em um acampamento improvisado para deslocados internos no parque Share-e-Naw para várias mesquitas e escolas em 12 de agosto de 2021 em Cabul, Afeganistão.
(Foto de Paula Bronstein / Getty Images)

A certa altura, durante seus comentários, Karimi esqueceu a pergunta original que pretendia fazer a Kirby, que era para onde Ghani havia fugido. Mas no meio de seus comentários parecia haver uma questão mais ampla: o que acontece agora?

“Não temos presidente, não temos nada”, disse ela. “O povo afegão, eles não sabem o que fazer ... Onde está nosso presidente? Ele deve responder ao povo afegão. ”

Kirby disse que não podia falar por Ghani ou para onde havia fugido, mas enfatizou que entendia a dor de Karimi.

“Deixe-me dizer com todo o respeito que entendo e todos nós entendemos a ansiedade, o medo e a dor que você está sentindo”, disse ele. “É claro e é evidente.”

Milhares de afegãos correm para o Aeroporto Internacional Hamid Karzai enquanto tentam fugir da capital afegã, Cabul, Afeganistão, em 16 de agosto de 2021.
(Foto: Haroon Sabawoon / Agência Anadolu via Getty Images)

Quase todos no Pentágono têm uma conexão pessoal com o Afeganistão, acrescentou Kirby.

“Tudo o que você está vendo nas últimas 48 a 72 horas é pessoal para todos aqui no Pentágono”, disse ele. “Nós também investimos muito no Afeganistão e no progresso que mulheres e meninas fizeram política, econômica e socialmente.”

No momento, o Departamento de Defesa está focado em fazer “o melhor que pudermos pelos afegãos que nos ajudaram”, disse Kirby. “Vamos nos concentrar em fazer o que estiver ao nosso alcance para honrar essa obrigação para com todos aqueles que ajudaram a tornar possível todo esse progresso. Porque ao nos ajudar, eles nos ajudaram a ajudar você.”

O governo dos EUA tem um longo caminho a percorrer para honrar esse compromisso. Kirby estimou na tarde de segunda-feira que há 22.000 afegãos ainda precisando de evacuação e, até agora, o governo dos EUA retirou 2.000 do país. Ele estimou que a capacidade de transporte aéreo deve crescer para 5.000 pessoas por dia, de acordo com a revista da Força Aérea americana (Air Force Magazine).

Como Kirby destacou, a evacuação se concentra em ajudar os afegãos que trabalharam com o governo dos EUA durante a guerra, seja como intérpretes ou em outra capacidade. Isso ainda deixa os 38 milhões de afegãos que agora precisam se reajustar à vida sob o Talibã. Para essas pessoas, Kirby poderia oferecer apenas simpatia.

“Mais uma vez, sinto muito por sua dor”, disse ele a Karimi. "Eu realmente sinto."

Bibliografia recomendada:

O Mundo Muçulmano.
Peter Demant.

Leitura recomendada:



"Não me atrevo mais a sair": As mulheres em Cabul vivem com medo após o retorno do Talibã

Vídeos que circulam nas redes sociais mostram um pequeno grupo de mulheres em Cabul, Afeganistão, protestando em 17 de agosto de 2021 pelos direitos das mulheres enquanto os combatentes talibãs observam sem intervir. Não foi possível verificar se a manifestação das mulheres foi espontânea.
Twitter / @ HameedMohdShah / @ HamzaDawar0)

Por Pariesa Young, France24 - The Observers, 17 de agosto de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de agosto de 2021.

Desde que o Talibã capturou a capital afegã, Cabul, em 15 de agosto de 2021, o grupo islâmico assumiu efetivamente o controle do Afeganistão. Enquanto a liderança do Talibã trabalha com as autoridades para formar um governo, muitos afegãos se perguntam o que a tomada do Taleban significa para grupos vulneráveis, especialmente mulheres e meninas. Nosso Observador nos disse que sua vida em Cabul foi permeada pelo medo desde a chegada do Talibã.

O Talibã, que governou o Afeganistão de 1996 a 2001 antes da invasão dos EUA, impôs aos cidadãos uma interpretação estrita da lei islâmica. Sob o regime anterior do Talibã, as mulheres só podiam sair de casa acompanhadas por um tutor do sexo masculino. Eles não podiam ir à escola, trabalhar ou votar. A violação de qualquer uma dessas regras levava a punições rígidas, incluindo açoites e apedrejamentos.

Com o grupo extremista de volta ao poder no Afeganistão, mulheres e meninas temem um retorno a esses padrões rígidos. No entanto, o Talibã tentou convencer a população de que as coisas vão mudar.

O grupo disse que as mulheres terão permissão para desempenhar um papel no governo, bem como manter empregos, de uma forma que esteja alinhada com a lei da Sharia.

“O Emirado Islâmico não quer que as mulheres sejam vítimas”, disse Enamullah Samangani, membro da comissão cultural do Talibã, em uma entrevista à televisão nacional afegã RTA, usando o termo dos militantes para o Afeganistão. “Elas deveriam estar na estrutura governamental de acordo com a lei da Sharia.”

Um vídeo compartilhado online em 16 de agosto mostrou funcionários do Talibã se reunindo com mulheres profissionais de saúde, garantindo-lhes que poderiam praticar livremente sua profissão e ter um ambiente de trabalho seguro.

Um vídeo publicado no Twitter em 16 de agosto de 2021 mostra autoridades do Talibã conversando com várias mulheres, vestidas com jalecos médicos. Um funcionário disse às mulheres que elas podem continuar trabalhando em segurança e sem medo.

Esses vídeos parecem fazer parte de uma campanha do Talibã para tranquilizar a população de que os direitos das mulheres serão mantidos sob seu regime. Um porta-voz do Talibã no Twitter repreendeu o boato de que o Talibã estava forçando garotas a se casarem com seus combatentes, chamando isso de “propaganda venenosa”.

Apesar dessas garantias, as mulheres em outras cidades ao redor do Afeganistão foram orientadas a não voltarem ao trabalho. Em Herat, por exemplo, o Talibã disse às jornalistas que não trabalhassem, de acordo com nosso Observador no local. Em julho, duas mulheres que trabalhavam em bancos em Herat e Kandahar foram perturbadas por combatentes do Talibã e disseram que parentes do sexo masculino deveriam substituí-las no trabalho.

As mulheres em Herat também foram rejeitadas nas universidades depois que sua cidade caiu nas mãos do Taleban.

Mesmo a garantia do Talibã de que a vida continuaria normalmente em Cabul não convenceu muitas mulheres, que não conseguiram voltar à vida normal - ou mesmo deixar suas casas - três dias depois que o Talibã chegou à capital.

"Eu vi apenas duas mulheres, e elas estavam sendo espancadas por alguns combatentes talibãs - aparentemente por não usarem seus hijabs adequadamente."

Nossa Observadora, Ariana (nome fictício), uma estudante de doutorado que estuda no exterior, mas de volta ao Afeganistão para o verão, diz que a tomada do Talibã mudou completamente a vida das mulheres.

"Só saí de casa uma vez desde que o Talibã ocupou Cabul, e foi quando fui ao aeroporto para ver se poderia ir embora [Nota do editor: em 16 de agosto]. Obviamente, não foi possível.

A cidade que vi estava completamente vazia de mulheres. Em toda a viagem de ida e volta para o aeroporto de Cabul, vi apenas duas mulheres, e elas estavam sendo espancadas por alguns combatentes talibãs - aparentemente por não usarem seus hijabs adequadamente. No aeroporto, havia muitas mulheres sozinhas, com seus filhos ou com suas famílias, todas tentando fugir como eu.

Eu estava com medo de sair de casa. Tive que mudar minha roupa e colocar um hijab mais conservador para passar pelos postos de controle talibãs. E desde que voltei para casa, não me atrevo mais a sair. Em três dias, tudo mudou para as mulheres daqui. Não posso sair de casa sozinha.

A forma como o Talibã está se comportando agora é apenas uma atuação orquestrada para manter os governos ocidentais em silêncio. Eles dizem ‘Toleraremos se enfermeiras ou médicas continuarem trabalhando, ou se as meninas continuarem a estudar...’ Mas isso não é verdade."

Vários vídeos mostram um grupo de mulheres reunidas no bairro de Wazir Akbar Khan, em Cabul, segurando cartazes, enquanto combatentes talibãs observam. As mulheres disseram estar protestando por direitos econômicos, sociais e políticos sob o novo regime.

 Um vídeo postado no Twitter pelo jornalista da Al Jazeera Hameed Mohd Shah em 17 de agosto de 2021 mostra um grupo de mulheres segurando cartazes em protesto enquanto os combatentes talibãs olham sem intervir.

Em outro vídeo dessas mulheres protestando, elas entoam frases como: “As mulheres afegãs existem”, “Trabalho, educação, envolvimento político” e “Seja a voz das mulheres”.

"Esses homens não entendem que o mundo mudou de repente para nós, para as mulheres."

Alguns moradores de Cabul relataram que a vida está voltando ao normal com hesitação, mas para Ariana, essa não é a realidade para as mulheres.

"Vejo pessoas nas redes sociais - a maioria homens - dizendo que a vida está voltando ao normal porque a rede elétrica está funcionando novamente, porque é "seguro" lá fora ou porque não há explosões. Mas esses homens não entendem que o mundo mudou de repente para nós, para as mulheres. E é desolador que mesmo para jornalistas ou ativistas no Afeganistão tenhamos importância secundária.

Sinto que não há mais esperança aqui para as mulheres afegãs. Não tenho dúvidas de que veremos as mesmas cenas de violência contra as mulheres e a mesma selvageria que vimos nos anos 90 no Afeganistão. As mulheres serão apedrejadas, não poderão ir à escola e simplesmente esqueça sobre trabalhar. Os talibãs são as mesmas pessoas que eram há 20 anos.

Eu queria estudar, aprender alguma coisa e voltar para o meu país e torná-lo um lugar melhor, mas agora é impossível, só tenho que ir embora e salvar minha vida."

Moradores de Cabul já começaram a se preparar para as novas regras do Talibã para mulheres. Alguns lojistas removeram a publicidade com fotos de mulheres nas vitrines das lojas. As mulheres foram orientadas a usar roupas mais conservadoras e a não sair de casa sem um parente do sexo masculino.

Bibliografia recomendada:

O Mundo Muçulmano.
Peter Demant.

A guerra não tem rosto de mulher.
Svetlana Aleksiévitch.

Leitura recomendada: