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quinta-feira, 7 de outubro de 2021

COMENTÁRIO: O Narcisismo Estratégico Americano


Por Michael Shurkin, Shurbros Global Strategies LLC, 14 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 7 de outubro de 2021.

O general francês André Beaufre, talvez o melhor pensador estratégico daquele país no século passado, definiu estratégia como a "arte da dialética das vontades que empregam a força para resolver seus conflitos". Sua definição contém algo que parece óbvio, embora tragicamente, pelo menos na minha experiência, esteja ausente do pensamento estratégico americano, especialmente no Afeganistão: a ideia de que o inimigo tem vontade e age. Ele terá uma estratégia. Em vez disso, o pensamento americano tem sido consistentemente solipsista*. Houve pouca discussão sobre a estratégia do inimigo e como combatê-la. Os debates quase sempre foram sobre nós. Isso tem sido notavelmente verdadeiro nas últimas semanas, enquanto lutamos para digerir os acontecimentos no Afeganistão: Onde erramos? O que poderíamos ter feito melhor? Quais foram nossos erros? Raramente alguém disse muito sobre o que o Talibã tem feito de certo nos últimos 20 anos.

*Nota do Tradutor: O solipsismo é a ideia filosófica de que apenas a mente da própria pessoa tem a certeza de existir. Do latim "solu-, «só» +ipse, «mesmo» +-ismo".

O próprio Beaufre deu algumas dicas básicas para uma espécie de análise estratégica que não me lembro de ter ouvido entre os americanos sobre derrotar o Talibã. Ele sugeriu identificar os seus próprios pontos fracos e fortes, bem como os do inimigo. Como o inimigo pode tentar explorar nossas fraquezas? Ele deu grande ênfase ao papel crítico da liberdade de ação. O adversário procurará limitar nossa liberdade de ação; teremos que preservar a nossa enquanto limitamos a do inimigo. O lado que mais limita a liberdade de ação do outro é o lado que vence. Como é que alguém faz isso? Forçando-nos a usar helicópteros. Ou ficar atrás das barreiras Hesco. Ou manter-se nas estradas. Ou manter-se fora das estradas. Ou limitar a aplicação de poder de fogo por medo de baixas civis. Assim, o inimigo se abriga entre os civis, ou do outro lado da fronteira, em um condado que não ousamos penetrar. Beaufre também observou que, em conflitos assimétricos, os insurgentes costumam adotar a estratégia da "manobra de lassidão".

O General André Beaufre.

Em outras palavras, o lado fraco se esforça para sobreviver por tempo suficiente para que a parte mais forte se canse e decida que está de saco cheio. O lado fraco, portanto, evita a batalha. O lado forte seria sábio se fizesse o mesmo. Mais importante, o lado forte precisa se segurar em posição e, para isso, precisa se organizar para sustentar o conflito pelo máximo tempo possível. É um teste de vontade. Simplesmente não me lembro de nenhuma discussão honesta sobre a estratégia do Talibã, sobre o que precisávamos fazer para combatê-lo. Como podemos aguentar enquanto cansamos o Talibã? E se isso não fosse possível, onde estava a discussão franca do que fazer ao invés disso? Beaufre também escreveu sobre a necessidade de uma estratégia total que envolvesse todo o governo atuando em vários domínios. Como exatamente isso foi feito no Afeganistão?

Nenhum inimigo é louco o suficiente para enfrentar as forças armadas dos Estados Unidos em uma batalha aberta. Eles vão pensar em outra coisa. Foi isso que o Talibã fez, que por sinal não aplicou uma estratégia significativamente diferente daquela que os comunistas vietnamitas fizeram. No entanto, de alguma forma, estamos surpresos com o resultado.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular:
Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.
Alessandro Visacro.

Leitura recomendada:

COMENTÁRIO: Por que ler Beaufre hoje?, 12 de fevereiro de 2021.

domingo, 3 de outubro de 2021

França no Pacífico: o que ela tem feito e por que isso é bom para a América


Por Michael Shurkin, 9 Dash Line, 20 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 3 de outubro de 2021.

Na controvérsia em torno do recente acordo de três vias Austrália-Reino Unido-Estados Unidos (Australia-United Kingdom-United StatesAUKUS) para fornecer à Austrália tecnologia de submarino nuclear - ao preço de enfurecer a França ao romper um acordo de mais de US$ 60 bilhões para vender submarinos franceses à Austrália, tem havido uma tendência de ignorar o valor do papel francês no Indo-Pacífico, tanto para a Austrália quanto para os EUA. Só o tempo dirá com que gravidade a atual crise diplomática afetará a política francesa, mas deve ficar claro que alienar a França não faz sentido. Era do interesse da América, da Austrália e até do Reino Unido manter a França ao seu lado e trabalhar para fortalecer seu relacionamento com ela. Talvez a Austrália consiga submarinos melhores no final, mas devemos nos perguntar se, pelo menos, todo o caso poderia ter sido administrado de forma diferente.

Sim, a França é uma potência indo-pacífica


A primeira questão que deve ser abordada é a relevância da França no Indo-Pacífico. Pensamos na França como uma potência exclusivamente europeia, mas graças aos resquícios de seu passado colonial - o que os próprios franceses às vezes chamam cinicamente de “confete do império”, a França pode legitimamente se ver como uma potência do Pacífico e do Oceano Índico. Possui vários territórios no Indo-Pacífico, que abrigam 1,6 milhão de cidadãos franceses e dão à França vastas Zonas Econômicas Exclusivas (ZEE) marítimas que somam 9 milhões de quilômetros quadrados. A França também mantém uma força militar permanente de 7.000 homens e mulheres, o que é único para uma nação europeia. Estes incluem, de acordo com o Ministério das Forças Armadas da França, 2.000 soldados e cinco navios dedicados à “Zona Sul do Oceano Índico”, 1.660 soldados e quatro navios designados para a “Zona de Responsabilidade” da Nova Caledônia, e 1.180 soldados e três navios designados para a zona da Polinésia Francesa. A França também envia rotineiramente navios e aeronaves para águas francesas e internacionais nos dois oceanos para mostrar a bandeira, muitas vezes na forma de seu porta-aviões nuclear e suas escoltas ou um dos grandes navios de assalto anfíbio da classe Mistral da França.

Rejeitando a França como fizeram com o acordo AUKUS, Austrália, EUA e Reino Unido excluíram um aliado ansioso para aumentar seu papel na segurança do Indo-Pacífico e o fizeram de uma maneira que quase inteiramente coincidiu com os interesses americanos e australianos.

No entanto, na última década, e especialmente sob o presidente francês Emmanuel Macron, Paris tem enfatizado ruidosamente sua identidade como uma nação “indo-pacífica” ao estender a mão para outras potências indo-pacíficas para construir relações bilaterais e multilaterais. Diplomatas franceses têm se ocupado em fechar acordos com vários países, como Índia e Indonésia, com o objetivo de fomentar as relações comerciais, bem como a cooperação em defesa e segurança, ou ambos combinados na forma de venda de armas. Em 2018, Macron invocou o surgimento de um “eixo Paris-Délhi-Canberra”, e a França atualizou seu relacionamento com a Austrália e o Japão, bem como com a Índia, Indonésia, Cingapura e Vietnã. O acordo do submarino de 2016 com a Austrália foi um triunfo para o predecessor de Macron, e os dois países recentemente haviam chegado a acordos relacionados ao acesso às bases australianas. A França também tem atuado em instituições e fóruns multilaterais regionais. A participação francesa na Enforcement Coordination Cell (ECC) - uma coalizão naval organizada para fazer cumprir as sanções da ONU contra a Coreia do Norte, que foi descrita como a “joia escondida” da cooperação de segurança Indo-Pacífico - é particularmente digna de nota. No geral, tem havido um claro aumento na atividade militar francesa. Como assinalou o Le Monde, se em dois anos o número de tropas desdobradas para a região não aumentou, o “ritmo de exercícios, missões e intercâmbios diplomáticos” [...] "intensificou-se claramente”.

Presença francesa no Indo-Pacífico.

O governo francês expôs seus motivos em publicações oficiais, como a Estratégia de Defesa Francesa de 2019 no Indo-Pacífico. Isso inclui a defesa de uma “ordem internacional baseada em regras” (que a Casa Branca citou recentemente como o motivo do acordo AUKUS), a preservação e promoção das relações comerciais com as nações do Indo-Pacífico e a proteção das rotas marítimas essenciais para o comércio global. A França vê essas coisas ameaçadas pela proliferação nuclear, pirataria, terrorismo e qualquer coisa que ameace a ordem internacional em larga escala. Finalmente, Paris tem um forte interesse em proteger e aumentar seu já massivo comércio com os países do Indo-Pacífico, onde encontra mercados crescentes para bens e serviços franceses, sem mencionar armamentos franceses de ponta, como caças Rafale e submarinos. As vendas de armas dessa natureza contribuem muito para sustentar as indústrias de defesa da França, que Paris considera necessárias para manter sua autonomia estratégica.

Na verdade, os observadores australianos e americanos podem não reconhecer que o acordo submarino entre a França e a Austrália sempre foi, para a França, mais do que apenas empregos: tratava-se de manter vivas as indústrias de defesa francesas particularmente estratégicas, estratégico aqui se referindo a coisas vitais para a nação e sua habilidade de agir de forma independente no cenário mundial. Mais especificamente, isso se refere a armas nucleares e mísseis, aviões e navios necessários para desdobrá-los, o que também implica em propulsão nuclear. Essa é uma prioridade estratégica para a França e algo que a diferencia da Grã-Bretanha, que se sente confortável em contar com fornecedores americanos para componentes-chave de suas capacidades nucleares, por exemplo. Na verdade, em 1958, o Reino Unido e os EUA assinaram um acordo de compartilhamento de tecnologia nuclear, o fruto do qual inclui grande parte da tecnologia no coração das atuais ogivas nucleares do Reino Unido, bem como os mísseis e submarinos que as lançam. Mais ou menos na mesma época, a França notoriamente tomou outra direção, insistindo em ser capaz de fazer coisas vitais por si mesma, pelo menos porque a Paris do pós-guerra considerou imprudente confiar nos Estados Unidos para garantir sua segurança na era nuclear. O fato de fazer suas próprias coisas também significar empregos é a cereja do bolo.

As visões francesas sobre a China


No topo da lista de ameaças da França à ordem internacional no Indo-Pacífico está a aparente ambição da China de desafiar o domínio americano no Pacífico e sua ameaça à liberdade de navegação no Mar do Sul da China. As opiniões francesas sobre a China não são, portanto, fundamentalmente diferentes daquelas dos Estados Unidos. Deve-se notar também que, enquanto durante a Guerra Fria a França se apresentava como uma terceira via entre os Estados Unidos e a União Soviética, Macron deixou claro que desta vez a França está ao lado da América. Seria “inaceitável”, afirmou Macron, “alegar estar à mesma distância dos EUA que da China”, em grande parte porque a França e a América partilham valores, enquanto a França e a China não. Tecnicamente, Macron estava falando da posição da União Europeia, não da França, mas suas observações contrastam fortemente com os comentários da chanceler alemã, Angela Merkel, enfatizando a distância entre a UE e os EUA sobre a China. Em outras palavras, a visão de Macron era um ponto de vista francês e não europeu genérico. Ele estava falando pela França.

No entanto, há uma diferença significativa na maneira como a França se aproxima da China, ou pelo menos como a França fala sobre a China. A diplomacia francesa se concentra menos em desafiar a China do que em fortalecer os laços bilaterais e multilaterais entre todos aqueles que estão preocupados com a China, tudo em nome de causas genéricas como a defesa da liberdade dos mares e da “ordem baseada em regras” ou o combate à pirataria e proliferação. A França pode ver a China como a maior ameaça na região à liberdade dos mares e à ordem internacional baseada em regras, mas os franceses preferem evitar dizer isso em voz alta. Como explicou Macron em fevereiro, ele quer evitar um cenário em que a União Europeia e a comunidade internacional se unam “todas juntas contra a China”. Isso, ele explicou, tinha o maior potencial possível para conflito e seria “contraproducente” porque “forçará a China a aumentar sua estratégia regional” enquanto a pressiona a “diminuir sua cooperação” em outras questões de interesse global.

Convergência

A abordagem francesa se adapta a um amplo espectro de países, o que lhe confere uma vantagem em relação aos Estados Unidos. A ênfase da França em “valores compartilhados” ressoa com alguns, enquanto outros estão simplesmente com medo da China e desejam proteger o comércio internacional. Para a Austrália e o Japão, o relacionamento próximo da França com os EUA era um pré-requisito para relações mais estreitas com a França. Eles apostaram sua segurança nos Estados Unidos e apreciaram o fato de Paris e Washington DC terem se tornado muito mais próximos em questões de defesa e segurança, o que significa que nunca houve uma escolha entre a França e os Estados Unidos. Para muitos outros, o que importava mais era a distância da França dos EUA, por menor que fosse na prática. A parceria com a França era uma forma de se aproximar dos EUA sem se aliar a eles; isso até fornece uma medida de negação plausível.

Soldados franceses e indianos durante um exercício conjunto na Índia.

A Índia é um exemplo disso. Um relatório publicado pelo Senado francês em 2020 observou que o longo compromisso da Índia com o "não-alinhamento" durante a Guerra Fria significou que ela manteve distância dos EUA ao ser atraída pela França por causa da política francesa de se posicionar como uma terceira via entre os dois superpoderes. No entanto, os interesses indianos e americanos convergiram nos últimos anos. Isso pode ser visto na compra de armamento americano pela Índia, na assinatura de acordos bilaterais de defesa e na participação da Índia em exercícios militares. No entanto, a Índia “não desejava entrar em uma aliança restritiva com os Estados Unidos” e “os indianos não desejam abraçar a política americana em relação à China”. Essa preferência por afirmar a independência, sugere o relatório, é a razão por trás da decisão da Índia de comprar um sistema de defesa aérea russo. Nesse contexto, a França, com suas armas de alta tecnologia e uma política da China próxima da América, mas não idêntica, é um parceiro perfeito para a Índia. Também ajuda que a Austrália - outro parceiro de escolha para a França - esteja se tornando cada vez mais valiosa na estimativa da Índia. O resultado final para a França, de acordo com o relatório, é que o "amadurecimento" da Índia para a parceria com a França representa uma grande oportunidade para a França, não apenas por causa das enormes oportunidades econômicas que a Índia oferece. Além disso, a disposição da França de permitir que a Índia produza itens de defesa franceses na Índia está de acordo com o desejo da Índia de aumentar sua própria base industrial de defesa.

O interesse em uma fonte alternativa de armas ocidentais de ponta está, sem dúvida, ajudando a alimentar o boom das vendas de armas francesas aos países do Indo-Pacífico nos últimos anos: comprar armas de alta tecnologia da França é uma boa maneira de diversificar as fontes de tais itens enquanto evitando a bagagem política associada às armas americanas, chinesas ou russas. O fato das armas francesas não estarem sujeitas aos Regulamentos do Tráfico Internacional de Armas dos Estados Unidos (American International Traffic in Arms RegulationsITAR) também é uma vantagem.

O submarino francês Émeraude (S604) daMarine Nationale em patrulha na costa de Guam em 11 de dezembro de 2020.

A França também presume que sua força militar a torna atraente para os países do Indo-Pacífico, e Paris gosta de telegrafar que tem vontade e capacidade para usar a força na região. A participação francesa em maio deste ano no exercício anfíbio ARC21 envolvendo meios militares dos EUA, Austrália e Japão é um bom exemplo. Isso também ajuda a explicar por que a França tomou a atitude incomum de anunciar que seu submarino de ataque nuclear Émeraude havia visitado o Mar da China Meridional neste inverno, enquanto normalmente tal informação é mantida em segredo. Hugo Decis, um especialista naval do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos que observa as atividades navais francesas no Indo-Pacífico, também observou em e-mails ao autor como era incomum para a França enviar um submarino de ataque nuclear “a leste de Málaca”, em estreita cooperação com os EUA, Japão e Austrália e no Mar da China Meridional. Ele especulou que isso poderia ser uma “amostra do que está por vir para a Marinha francesa no Indo-Pacífico”, ou seja, operações “a leste de Malaca e em estreita cooperação com aliados e parceiros”, o que contrastava com desdobramentos mais típicas na área. No verão, em parte para demonstrar capacidades adicionais, a França desdobrou caças Rafale e aeronaves de apoio em territórios franceses no Pacífico. No final de junho, a mesma aeronave vôou para o Havaí e participou de exercícios de treinamento com aeronaves dos EUA antes de retornar pelo continente americano. Os franceses fizeram questão de parar em Langley, Virgínia, para comemorar o 240º aniversário da vitória franco-americana sobre os britânicos em Yorktown, nas proximidades.

Excluindo um aliado


A França está claramente determinada a ser um jogador importante no Indo-Pacífico, onde se beneficia da força militar e da convergência de interesses com uma ampla gama de parceiros. A França também pode ganhar muito dinheiro com as relações comerciais e vendas de armas que acompanham a melhoria das relações, ao mesmo tempo em que melhora seu perfil global. A França também tem tentado habilmente explorar seu próprio posicionamento cuidadoso em relação aos Estados Unidos, enquanto trabalha para garantir que tenha voz em tudo o que acontece na região e liberdade de manobra suficiente para agir da maneira que achar adequada.

Rejeitando a França como fizeram com o acordo AUKUS, Austrália, EUA e Reino Unido excluíram um aliado ansioso para aumentar seu papel na segurança do Indo-Pacífico e o fizeram de uma maneira que quase inteiramente coincidiu com os interesses americanos e australianos. Na verdade, ambos os países deveriam considerar uma maior integração francesa nos acordos de segurança do Indo-Pacífico como uma prioridade. Afinal, a França, além de seu hard power, pode complementar os EUA diplomaticamente apresentando-se como o não exatamente aliado americano da América, e também pode envolver a União Europeia, que é muito importante para as relações comerciais com a China pelo tamanho da economia europeia. Quanto ao Reino Unido, não está claro como ele ganha com o negócio AUKUS além de impulsionar seu próprio senso de relevância. O fato é que, depois do Brexit, o Reino Unido precisa se preocupar com suas relações com a França mais do que nunca, especialmente se Londres tem alguma preocupação com a segurança dentro e ao redor do continente europeu.

Michael Shurkin é um ex-oficial da CIA e cientista político sênior da RAND. Ele é diretor de programas globais da 14 North Strategies e fundador da Shurbros Global Strategies.

Bibliografia recomendada:

L'emergence d'une Europe de la défense:
Difficultés et perspectives.
Dejana Vukcevic.

sábado, 2 de outubro de 2021

Jihad no centro de Mali: luta de classes, revolta social ou revolução no mundo Fulani?

Por Julien Antouly, Bokar Sangaré e Gilles Holder, The Conversation, 22 de setembro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 28 de setembro de 2021.

Poucas pessoas sabem disso, mas o centro de Mali é marcado por uma história política e religiosa de grande importância. É nesta região que os últimos estados pré-coloniais independentes - o Estado Islâmico de Hamdallahi, depois os de Ségou e Bandiagara - se impuseram através de duas jihads sucessivas no século XIX. É também uma área ecologicamente rica e contrastante de quase 80.000km², onde vivem cerca de 2,8 milhões de habitantes - Dogons, Peuls, Bozos, Bambaras, Songhays, etc. - que juntos constituem um mosaico de comunidades sócio-profissionais interdependentes.

Em um contexto onde as histórias se sobrepõem, os recursos naturais são compartilhados e as culturas incorporadas, existem várias fontes de conflito. A região é vista de Bamako como "o norte": para os habitantes de uma capital elevada, preservada dos estertores dos conflitos, tudo o que está além da região de Ségou (localizada a cerca de 200km de Bamako) é percebido como tal, ou seja, linguisticamente e culturalmente diferente e potencialmente "rebelde".

Politicamente marginalizada desde os tempos coloniais e sub administrada, a área passou por profundas convulsões que afetaram as estruturas sociais, mas também, mais especificamente, os modos de regulação entre as comunidades. Colonização, abolição da escravatura, independência, secas, democracia, descentralização, crescimento populacional, políticas de desenvolvimento que lutam para vincular a agricultura e a pecuária: todos fatores que desestabilizam as relações intercomunitárias. Soma-se a isso o conflito que eclodiu no norte do país em 2012, onde a derrota do Exército Malinense marcou simbolicamente o fim do monopólio legítimo do Estado sobre a violência.

Interpretação pela Jihad: Os limites da perícia e análise de categoria

"A aplicação da Sharia é o caminho para a felicidade, é o caminho para o paraíso." - Al-Hesbah.
No Mali, a noção de jihad só pode ser entendida em relação à complexa história do país. Gao, 30 de janeiro de 2013. (Sia Kambou / AFP)

A partir da década de 2000, o Mali foi alvo de especial atenção devido ao estabelecimento de uma katiba (termo militar árabe que designa uma brigada ou companhia) do GSPC argelino no Nordeste e os sequestros de ocidentais. Inúmeros relatórios e estudos são encomendados por atores institucionais, principalmente estrangeiros, que oferecem tantas grades de reflexão sobre dinâmicas de conflito e soluções-modelo.

Do lado da França, o principal ator ocidental envolvido, as análises refletem uma visão de segurança, muitas vezes importada de outros contextos: o Mali foi incluído pela primeira vez em um "Arco de crise" que cobriu uma grande parte do mundo muçulmano, antes de ser descrito como um "estado falido" e para se tornar o teatro da "guerra contra o terrorismo" liderada pela França.

Essas grades de leitura de cima, que dificilmente questionam o postulado "jihadista", foram questionadas em favor de abordagens baseadas em fatores locais e não necessariamente religiosos, em particular após o que foi chamado de "mudança" da jihad em direção ao centro a partir de 2015. Em 2012, a atenção internacional estava de fato voltada para grupos jihadistas que operavam nas regiões do norte do país. A partir de 2015, a presença de grupos jihadistas se intensificou no centro, o que foi apresentado como uma “disseminação”, um “contágio” do norte.

Dentre essas abordagens, a hipótese de conflito intercomunitário tem sido proposta, principalmente com o surgimento da katiba Macina liderada por Hamadoun Koufa. Referido inicialmente pelos meios de comunicação como “Frente de Libertação Macina”, este grupo afiliado à organização Ansar ed-Din surgiu no início de 2015 e assumiu a responsabilidade por vários ataques, em particular aquele que tinha como alvo o Hotel Radisson em Bamako em novembro de 2015. As populações Fulani, ou identificadas como tal por serem de línguas Fulani - de acordo com os critérios de filiação atribuídos pelos Fulani de status livre, nem todos os grupos Fuláfones são considerados Fulani stricto sensu; este é o caso particular dos escravos -, são acusados ​​de fazerem um pacto com grupos jihadistas, levando em reação à formação de grupos de autodefesa (Dogons, Bambaras, mas também Fulani dependendo da região) em bases comunitárias.

A fantasia de uma "comunidade Fulani" radicalizada, France 24, 6 de setembro de 2018


Essa visão foi criticada por sua abordagem etnicizante e preconceito, com grupos de autodefesa vistos como autóctones e, para alguns, pró-governo, onde os Fulani eram vistos coletivamente como alóctones e jihadistas. Consequentemente, outra hipótese surgiu mais recentemente: a de uma crise nos modos de produção e pastoralismo que explicaria o empobrecimento e a marginalização dos pastores.

Embora essas análises não sejam irrelevantes, também não são isentas de falhas, especialmente quando se baseiam em categorias pré-construídas que rotulam os atores (grupos terroristas, milícias de auto-defesa etc.).

Para além deste viés metodológico, o trabalho de categorização também tem consequências quando é necessário conceber uma saída do conflito: por um lado, não (ou com dificuldade) concluímos a paz com os terroristas, e por outro lado, a categorização frequentemente resulta na importação não contextualizada de soluções externas, cujos limites vemos aqui como em outros lugares: processo de DDR (desarmamento, desmobilização e reintegração), iniciativas de reconciliação da comunidade, desradicalização, etc.

Por fim, essas leituras por categoria têm um corolário: a análise de contexto. É claro que isso deve ser levado em consideração, mas o viés dessa abordagem bastante específica para o mercado de expertise é considerar a dimensão sócio-histórica como um fator entre outros do contexto, em favor de uma análise de curto prazo que reifica as situações.

Jihad ou a retórica da luta contra os "exploradores"

Méhariste (cameleiro) tuaregue da Guarda Nacional nigerina na vila de Inatès, perto da fronteira com o Mali e Burquina Fasso, 14 de janeiro de 2007.

Na realidade, nesta região que faz a ligação entre o norte e o sul, as lutas pelo poder voltadas para a estratificação social e a chefia estão no centro do conflito e abriram caminho para o impulso “jihadista”. O apelo à jihad lançado em 2015 por Hamadoun Koufa ilustra bem esta situação: a sua retórica contestatória contra as elites - tanto políticas como tradicionais - chama a atenção de parte das populações Fulani, principalmente pastores nômades e descendentes de escravos.

Desta observação emerge uma hipótese pouco apresentada, mas que lança uma nova luz sobre a violência de grupos que se dizem jihadistas e, de forma mais geral, a conflitualidade no centro do Mali: a fragmentação do monopólio legítimo da violência pelo Estado trouxe para atenuaram os antagonismos não resolvidos e permitiram que grupos sociais dominados ou rebaixados operassem uma espécie de retorno à história, na forma de acerto de dezenas de regimes de dominação social e política que foram mantidos ao longo dos tempos.

Parte interessada no mundo Fulani e personificando o ideal poético do nômade saheliano seguindo seu rebanho, as queixas de certos pastores nômades são dirigidas contra as linhagens que detêm o direito de acesso às pastagens desde o século XIX - os Jooro'en - que impuseram por várias décadas impostos desproporcionais com a cumplicidade de certos agentes da administração.

No Delta do Níger Interior e até Hombori, os pastores formaram ou mobilizaram katibas que visam a aristocracia e as elites da comunidade, em nome do que consideram uma luta pela libertação.

Em Guimbala (região de Niafunké), os pastores servem antes como auxiliares no serviço das katibas e são responsáveis ​​pela cobrança do zakat, o imposto religioso, sobre os rebanhos dos proprietários. Outros atores participam dessa economia da jihad, em particular os ladrões de gado - os terere - que conhecem os circuitos comerciais paralelos e garantem a venda dos animais capturados.

Paramilitares de um grupo de auto-defesa malinense.

Além de pastores nômades, as katibas recrutam de uma comunidade ligada ao mundo fulani, mas historicamente marcada por sua economia escravista. São os Riimaybe, termo que se tornou étnico, mas que significa literalmente "aqueles que não nascem" em oposição aos Rimbe, "aqueles que nascem". Esta é uma oposição quase estrutural entre o indivíduo que pertence a outro e que, portanto, não nasceu de ninguém, exceto de seu mestre, e o indivíduo que é de status livre porque faz parte de uma linhagem Fulani comprovada (linhagem, clã e tribo).

Essas comunidades de origem servil tornaram-se economicamente autônomas e optaram esmagadoramente pela educação dos filhos. No entanto, os Riimaybe mantêm uma espécie de estigma de servidão aos olhos dos antigos senhores, o que os rebaixa socialmente e os afasta do poder. Esses descendentes de escravos formaram a base de um segundo movimento de luta no centro de Mali.

Em Sanari (região de Djenné) e Macina (região de Mopti), outros Riimaybe forjaram alianças com grupos de autodefesa não-fulani que afirmam pertencer à irmandade de caçadores donso tradicionais, apresentando-se como um baluarte contra os "escravistas Fulani".

A necessidade de proteção aparece aqui como a principal motivação para se unir a grupos armados que exercem localmente o monopólio da violência. Mas nas áreas de Nantaka e Koubi, ao norte de Mopti, é a arbitragem dos jihadistas que se busca resolver as disputas de terras.

Compreendendo a guerra no Sahel, Les cartes du Monde Afrique, 11 de janeiro de 2020.


Para além da lógica da proteção e da arbitragem, os vários recursos são sempre locais e oportunistas, testemunhando um conflito ligado à mobilidade social.

A violência de grupos jihadistas se refere às lutas pela emancipação dentro do próprio mundo Fulani: estatutária e política no caso dos Riimaybe, econômica no dos pastores nômades. Essas lutas têm sempre como alvo aqueles que são vistos como "exploradores", sejam eles ex-senhores ou exercendo direitos indevidos sobre as pastagens.

Se essa hipótese for admissível, devemos questionar a gênese histórica dessa violência e sua especificidade. As fontes de conflito no centro de Mali põem em jogo alianças oficiais, pactos implícitos e histórias paralelas que são pouco conhecidas ou negligenciadas pelos estudos de contexto, enquanto induzem uma fragmentação do equilíbrio de poder.

Jihad ou a história do Estado Islâmico que não passa

Essas histórias têm suas raízes na jihad liderada pelo Estado Islâmico de Hamdallahi - Diina na língua Fulani - que virou o século XIX de cabeça para baixo e ainda hoje é a referência histórica da comunidade Fulani, mas também de outras comunidades da região, por que a época foi particularmente difícil.

No entanto, essa memória às vezes traumática se deve menos às dimensões religiosas e políticas do Estado Islâmico do que à forçada reconfiguração socio-econômica que operou sedentarizando a população Fulani, por um lado, e estabelecendo uma administração de escravidão por outro.

A política de sedentarização preocupou todos os clãs Fulani que foram forçados a formarem localidades - os wuro - e desenvolverem uma terra incluindo comunidades de agricultores subjugados e Riimaybe.


Se esses chefes ainda tinham rebanhos, eles não participavam mais da vida pastoral. A responsabilidade cabia a um grupo socio-profissional formado pelo Estado, que ainda hoje forma uma comunidade fechada e fortemente endogâmica, exercendo o monopólio da confidência dos animais. Esta atividade econômica consiste em confiar os rebanhos de diferentes proprietários a um pastor que, em troca, é remunerado em dinheiro ou em espécie (uma parte do crescimento dos animais). Embora anterior a essa época, esse sistema foi codificado no século XIX pelo Estado Islâmico de Hamdallahi.

Mas nas últimas décadas, marcadas pelas inadequações da descentralização, esses pastores, chamados de "peles vermelhas" (Fulbe wodebe) por causa da cor clara de sua pele, têm sofrido crescente pressão fiscal das chefias que controlam a entrada de grandes pastagens, acelerando seu empobrecimento e degradação social.

Quanto à questão da escravidão, é em parte consequência das necessidades geradas pelo Estado Islâmico para as suas atividades estratégicas que eram fornecidas por grupos servis: hidrovias interiores, construção de edifícios, contabilização do dinheiro do búzio... Mas também está relacionado à sedentarização e às necessidades agrícolas das novas localidades Fulani, que combinam uma mão-de-obra servil em permanência e uma massa de escravos “alojados” em aldeias de cultura.

Não há números para o centro do Mali, mas no norte, a administração colonial estimou que 75% da população estava em situação servil no início do século XX. Jean-François Bayart observa o mesmo fenômeno no norte da Nigéria, onde descendentes de escravos constituem a base social do jihadismo.

Dentro do mundo Fulani, onde a distinção entre livres e não livres é quase estrutural, a questão da escravidão por descendência é sensível e levou a conflitos duramente reprimidos por um Estado malinense para o qual a escravidão simplesmente não existe.

Mali: Kayes, a escravidão como herança, TV5 Monde, 13 de maio de 2019.


No Mali, como em outras partes do Sahel, esse fenômeno tem uma profundidade histórica que o diferencia da noção de "escravidão moderna". Não se trata da condição social e econômica do explorado, mas do seu estatuto jurídico, que o torna um bem móvel destituído de responsabilidade moral no seio da sociedade dos senhores. No entanto, qualquer que seja sua condição social - rico ou pobre, educado ou analfabeto - seu status servil perdura independentemente da emancipação coletiva que ocorreu durante a queda do Estado Islâmico - se ele era um escravo do Estado. Sob o tesouro público, o Beyt el-mal -, ou o Acordo Ténenkou de 1903 entre os mestres e os Riimaybe.

Jihad e democracia: bala no centro

Ao submeter a noção pré-construída da jihad à complexidade social e histórica, vemos que a violência e os atores envolvidos estão mais ligados a uma lógica de revolta do que a uma questão religiosa. Isso não significa que a jihad seja uma noção importada ou que os grupos jihadistas não tenham nada a ver com o Islã.

Por um lado, a jihad contemporânea é um rótulo performativo. Por outro lado, o Sahel viu uma série de formações políticas durante os séculos XVIII e XIX que surgiram em nome da jihad, e cuja particularidade é ter se mobilizado entre as populações Fulani marginalizadas.

O pesquisador Christian Coulon lembrou que as religiões podem ser dispositivos ideológicos que as classes populares se apropriam e adaptam à sua situação, para que esse Islã tenha a marca dos dominados. Mas ele acrescentou que o campo islâmico não está parado; evolui de acordo com as mudanças dentro do grupo dominante e as relações que este mantém com o dos dominados.

Soldados chadianos armadas com o FAMAS no Burquina Faso, 2014.

Diante da radicalização de senhores e latifundiários que não querem desaparecer da história, "os que não nasceram" e os que vivem no mato radicalizaram-se por sua vez. A questão é: qual é a natureza dessa radicalização, qual é o seu projeto e por que está acontecendo hoje.

Modibo Galy Cissé relata as palavras de um administrador civil que explicou: "O ideal islâmico-revolucionário [...] está em vias de se concretizar no Delta. Pegamos os fracos dando-lhes Kalashnikovs, transformando assim sua fraqueza em força, e pegamos os pobres dando-lhes petrodólares, transformando assim sua pobreza em riqueza. Assim, criamos um novo homem que não tem medo de nada."

Muitas pistas tendem a mostrar que a ideologia da revolta que está ocorrendo no mundo Fulani (em Mali, Burkina Faso, Níger, etc.) não é o Islã, mesmo que seja óbvio que a jihad está contribuindo para mobilizar uma semântica de libertação.

Isso permite animar, verbalizar e finalmente armar uma luta pela emancipação em relação à história, aquela de um Estado islâmico que terá feito uns, senhores e donos, e outros, escravos e proletários. Da mesma forma, o projeto democrático e suas promessas de liberdade e individualidade oferecem uma legitimidade paradoxal à jihad no que diz respeito a essa semântica de libertação.

Desta leitura surge então algo revolucionário na crise do centro do Mali, da qual devemos, sem dúvida, tomar medidas: se é de fato uma revolução, devemos então considerá-la dentro do próprio mundo Fulani, o processo de retorno a uma situação anterior provavelmente não é negociável.

Sobre os autores:

Julien Antouly
Gerente de Projeto LMI MaCoTer, Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD).

Bokar Sangaré
LMI Macoter, Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD).

Gilles Holder
Antropóloga, Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS).

Bibliografia recomendada:

Estado Islâmico:
Desvendando o exército do terror.
Michael Weiss e Hassan Hassan.

Submissão.
Michel Houellebcq.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Operações especiais não são um substituto para a estratégia


Por Stewart Parker e Ari Cicurel, Breaking Defense, 19 de março de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 17 de setembro de 2021.

Usadas demais e sobrecarregadas na "guerra global contra o terror" desde o 11 de setembro, as Forças de Operações Especiais precisam que Biden lhes dê uma pausa para que possam se concentrar na Rússia, China e na "zona cinzenta".

De filmes a livros que contam tudo, a América adora seus operadores especiais. Mas um ritmo esmagador de operações e uma definição cada vez maior do que constitui uma “operação especial” esticou muito as Forças de Operações Especiais (Special Operations Forces, SOF), tornando mais importante do que nunca definir de forma restrita as missões SOF. A Orientação Provisória de Segurança Nacional do Presidente Joe Biden é um passo importante para redirecionar a política militar do contra-terrorismo no Oriente Médio para a competição estratégica contra a China.

Mas a emissão da orientação provisória em si não resolve os problemas das SOF. É possível para Biden criar uma pegada militar mais inteligente e sustentável no exterior, mas o sucesso estratégico requer a adaptação do modelo americano para contra-terrorismo e contra-insurgência enquanto muda a forma como utiliza as SOF.

A estratégia de Biden para o Oriente Médio busca "dimensionar nossa presença militar ao nível necessário para interromper redes terroristas internacionais, deter a agressão iraniana e proteger outros interesses vitais dos EUA" para que a América possa redirecionar recursos militares para ameaças cada vez mais perigosas como a China.

Após o choque histórico dos ataques de 11 de setembro, o contra-terrorismo e a contra-insurgência no Oriente Médio se tornaram os principais desafios para os planejadores de defesa americanos. Diante de terroristas ou insurgentes que rapidamente atacavam civis e depois se escondiam entre eles, os líderes dos Estados Unidos se apaixonaram por raides de operações especiais e ataques de drones.

Operador especial (CCT/USAF) à cavalo na invasão do Afeganistão, outubro de 2001.

Os EUA já tentaram se afastar da "guerra global contra o terrorismo" antes, começando com o "pivô para a Ásia" do presidente Obama, que nunca se materializou. Em seguida, veio a Estratégia de Defesa Nacional de 2018 da administração Trump e o Anexo de Guerra Irregular de 2020 que priorizou o Indo-Pacífico. Agora, a mudança estratégica de Biden indica que a primazia do contra-terrorismo e da contra-insurgência na segurança nacional americana está acabando.

No entanto, a retirada das tropas não encerrará os conflitos regionais nem eliminará a exposição dos Estados Unidos ao terrorismo. As demandas pelos recursos exclusivos fornecidos pelas SOF não vão diminuir, mesmo com a redução de sua presença no Oriente Médio.

No futuro, será um desafio para o Comando de Operações Especiais dos EUA (U.S. Special Operations CommandUSSOCOM) equilibrar as operações de contra-terrorismo e contra-insurgência em curso, enquanto também se prepara para envolver a China e a Rússia na "zona cinzenta" legal e estrategicamente obscura entre guerra e paz.

Durante grande parte das últimas duas décadas, os operadores especiais funcionaram como uma força não-convencional apoiada por forças convencionais, com as SOF frequentemente no papel principal. O combate contra forças semelhantes provavelmente inverteria esse relacionamento, exigindo que as SOF cumprissem missões de apoio à força combinada mais ampla, aliados e parceiros.

Contra-terrorismo e Contra-insurgência Sustentáveis

As Forças Especiais dos EUA (Boinas Verdes) atacam um objetivo em um evento de treinamento.

Mesmo que as forças americans se retirem do Afeganistão ou de todo o Oriente Médio, os terroristas não irão embora. O presidente Biden, portanto, pretende manter algum foco no contra-terrorismo e na contra-insurgência, mesmo enquanto reduz o engajamento militar em conflitos relacionados. A adoção de um modelo menos focado no combate cinético (poder de fogo) e mais focado no que é acessível e sustentável a longo prazo reduzirá o papel dos militares e contribuirá para melhores resultados de segurança. A Estratégia Nacional de Contraterrorismo de 2018, que exige "todos os instrumentos disponíveis do poder dos Estados Unidos para combater o terrorismo", é um ponto de partida para o plano sustentável do novo governo. Os raides das SOF e ataques aéreos podem atrair atenção descomunal, mas também têm um registro imperfeito de transparência. Para melhor abordar as preocupantes descobertas da comissão do 11 de setembro, os EUA devem continuar a desenvolver seu potente portfólio de capacidades não-militares.

A análise do Centro Nacional de Diplomacia e Contra-terrorismo deve moldar os programas de contra-terrorismo e contra-insurgência, com a aplicação da lei civil e agências de inteligência muitas vezes assumindo a liderança. Os formuladores de políticas devem definir claramente suas prioridades, limitando os esforços apenas contra os grupos terroristas que mais ameaçam a América, seus interesses e seus parceiros. Uma estratégia de recursos sustentáveis requer colaboração proativa, atribui funções claras a departamentos e agências para evitar redundância ineficiente e estimula parceiros e aliados a se apropriarem das missões globais de contra-terrorismo. Mais importante ainda, um modelo de contra-terrorismo com recursos sustentáveis libera cada vez mais Forças de Operações Especiais para se reorientarem contra os atores estatais e seus representantes (proxies).

Adaptando as Forças de Operações Especiais

Operadores especiais russos (Spetsnaz), conhecidos como "Homenzinhos Verdes", na Ucrânia em março de 2014.

O combate efetivo à China, Rússia e outros Estados malignos exige que os formuladores de políticas adaptem o papel das SOF. Embora o contra-terrorismo e a contra-insurgência com foco restrito continuem sendo um esforço duradouro, as SOF não se concentraram historicamente nessas missões. Os Rangers de Roger dominaram as táticas de raides de estilo indígena na Guerra Revolucionária - o que os teóricos hoje chamariam de um conflito "híbrido" envolvendo guerrilheiros e forças regulares, incluindo o Exército Continental de Washington e seus aliados franceses. O presidente Kennedy autorizou os Boinas Verdes a responderem às insurgências apoiadas pelos soviéticos, e uma das principais funções das SOF na Guerra Fria era preparar movimentos de resistência em nações aliadas em risco de serem ocupadas por Moscou. Foram os fracassos conjuntos na tentativa de resgate de reféns iranianos em 1980 e o sucesso superficial na invasão de Granada em 1983 que impulsionaram a criação do USSOCOM - não o terrorismo.

Somente depois do 11 de setembro as SOF foram totalmente absorvidas por raides de “ação direta” contra terroristas e insurgentes, à medida que o USSOCOM se tornou o comando apoiado na guerra global contra o terror, em vez de um elemento de apoio em uma campanha basicamente convencional. As Forças Armadas são mais hábeis dentro da caixa de operações convencionais, mas as atividades centrais das SOF serão indispensáveis para campanhas futuras bem-sucedidas em todo o espectro do conflito. No mês passado, os legisladores reconheceram isso criando um novo subcomitê para supervisionar as SOF.

Operadores Delta e Ranger no momento do choque entre o Bluebeard 3 e o Republic 4 durante a fracassada Operação Eagle Claw, em 1980.
(Ilustração de Jim Laurier e Johnny Shumate/Osprey Publishing)

A redução das atividades de CT melhorará a capacidade das SOF de competirem abaixo do nível de conflito armado, responderem a crises, recuperarem americanos sequestrados e criarem prontidão para a guerra em um ambiente operacional altamente contestado e desordenado.

Para se preparar para a competição estratégica, os Estados Unidos precisam adaptar suas missões de contraterrorismo e contra-insurgência. As SOF serão vitais nas operações contra a China e a Rússia, embora permaneçam cruciais contra as ameaças duradouras no Oriente Médio. Sem rodeios, não há guerra que os militares americanos possam vencer sem Forças de Operações Especiais eficazes.

O Tenente-Coronel Stewart “PR” Parker é um participante do Programa de Líderes Militares dos EUA de 2020 do Instituto Judaico para a Segurança Nacional (Jewish Institute for National Security of America, JINSA) e atualmente está designado para o Comando de Operações Especiais da Força Aérea. Ari Cicurel é um analista de política sênior no Gemunder Center for Defense and Strategy da JINSA.

Bibliografia recomendada:

Special Operations Forces in Afghanistan.
Leigh Neville e Ramiro Bujeiro.

Special Operations Forces in Iraq.
Leigh Neville e Richard Hook.

Leitura recomendada:


As lições de Mogadíscio, 7 de outubro de 2018.


segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Grupo Wagner: mercenários russos ainda chafurdando na África


Por Steve Balestrieri, SOFREP, 19 de abril de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 13 de setembro 2021.

O Grupo Wagner da Rússia está passando por momentos cada vez mais difíceis na África. Cerca de um ano atrás, Moscou estava se gabando de chegar primeiro que o Ocidente e a China na obtenção de contratos militares privados, subestimando as ofertas de vários países ocidentais ao divulgar seu "Modelo Sírio" de sucesso. Como resultado, eles acabaram conseguindo mais de 20 contratos militares privados na África. Mas toda essa euforia está secando.

Entraram no Moçambique cheios de confiança: Em agosto de 2019, o presidente moçambicano Filipe Nyusi encontrou-se com o presidente Putin e chegou a um acordo para que os russos apoiassem os militares moçambicanos. Este acordo deu à Rússia numerosas concessões do rico gás no país.

Insígnia não-oficial de caveira do Grupo Wagner.

O Grupo Wagner foi desdobrado logo depois, em outubro de 2019, com 200 contratados. Aterrou no Aeroporto de Nacala, em Moçambique, para ajudar na luta em curso do governo contra o Estado Islâmico na região norte da região rica em gás natural de Cabo Delgado.

O Grupo Wagner é uma companhia militar privada de propriedade de Yevgeny Prigozhin, um oligarca russo com laços muito próximos ao presidente Vladimir Putin. Ele é conhecido como o "chef de Putin", pois também possui uma vasta empresa de restaurantes. Com o objetivo de Putin de expandir a influência da Rússia na África, as forças proxy (de procuração) do Grupo Wagner estão operando no Sudão, na República Centro-Africana e em Moçambique. Eles também têm uma grande presença na Líbia e na Síria.

O Grupo Wagner é essencialmente um braço da política estatal russa: eles nunca foram empregados em nenhum lugar sem a aprovação do Kremlin. E embora não sejam oficialmente reconhecidos como tal, eles são, na verdade, forças terceirizadas do governo de Putin. “Não faço distinção entre os soldados russos e o Grupo Wagner - a maneira como eles cooperam”, disse Jasmine Opperman, especialista sul-africana em terrorismo, ao Voice of America em uma entrevista.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, chega a Durban, na África do Sul, em uma viagem oficial em 2013.

Como escrevemos no outono passado na SOFREP, embora existam várias empresas de proteção africanas - com uma vasta experiência nesta área do continente - disponíveis para aluguel, o governo moçambicano optou, no entanto, pelo Grupo Wagner, devido à sua óbvia influência política e à seu preço muito mais barato do que o de outras empresas. Enquanto uma empresa da África com 50-60 soldados qualificados com vasta experiência na área custaria ao governo entre US$ 15.000 e US$ 25.000 por mês para cada mercenário, o Grupo Wagner enviou 200 mercenários por entre US$ 1.800 e US$ 4.700 por mês cada.

Mas a velha advertência: “Você recebe o que paga” é uma descrição adequada do que aconteceu até agora na região.

Os superconfiantes contractors russos, apoiados por helicópteros Hind e transportados por helicópteros Mi-17 Hip, avançaram para o interior ao longo da fronteira entre Moçambique e Tanzânia. As forças aéreas e terrestres deveriam operar em estreita cooperação com o exército moçambicano (Forças Armadas de Defesa de Moçambique, FADM). No entanto, o ISIS não hesitou. Conforme relatado pelo Southern Times após a chegada dos russos, o ISIS rapidamente reforçou suas unidades em Moçambique, trazendo “voluntários” de outros países da África Oriental, especialmente da Somália. Isso logo levou a uma série intensificada de ataques da guerrilha.

Opperman chamou a situação de “tempestade perfeita” e disse sobre os esforços do Grupo Wagner na região: “Os russos não entendem a cultura local, não confiam nos soldados e têm que lutar em condições horríveis contra um inimigo que está ganhando mais e mais impulso. Eles estão totalmente fora do seu elemento.” Eles não estão acostumados a operarem em um ambiente de selva e sabem (ou se importam) pouco sobre os costumes e tradições locais.

Assim, os russos estão caindo no mesmo problema que tiveram durante a era soviética: tensões entre eles e as forças das nações anfitriãs. Os mercenários russos acusaram os soldados moçambicanos de não terem disciplina, enquanto as tropas da nação anfitriã sentem que estão sendo intimidadas pelos russos. E não existe um "Robin Sage" [personagem fictício americano] para os russos aprenderem como ganhar a confiança da força de uma nação anfitriã.

E agora, depois de sofrerem uma série de derrotas e mais de uma dúzia de mortes, o Grupo Wagner recuou suas tropas de volta para sua base principal em Nacala, cerca de 250 milhas ao sul.

Mercenários Wagner na República Centro-Africana, janeiro de 2021.

Eles enfrentam o mesmo problema na República Centro-Africana (RCA). Existem centenas de mercenários do Grupo Wagner operando na RCA, incorporados a uma infinidade de forças diferentes, mas eles estão perdendo todo o relacionamento com os locais devido ao tratamento brutal que dispensam a eles.

O Norte da África também não é mais gentil com eles.

Os russos têm cerca de 1.000 mercenários Wagner na Líbia. Eles sofreram 35 mortos em setembro, quando os turcos os atingiram com um drone, pois não tinham como se defender de ataques aéreos - a exemplo do que aconteceu com as tropas Wagner na Síria quando atacaram uma base dos EUA. Em janeiro, Putin e o presidente turco Erdogan chegaram a um acordo e, em seguida, surgiram relatórios de que as tropas russas Wagner foram retiradas da linha de frente em Trípoli.

A Líbia está em constante guerra civil desde a remoção do ditador Muammar al-Gadhafi, liderada pelos EUA, em 2011. Os Estados Unidos, a ONU e a maior parte da comunidade internacional reconhecem o Governo de Acordo Nacional (GNA), com sede na capital líbia Trípoli, como o governo legítimo. Mas a metade oriental do país é liderada por Khalifa Hafter, que é apoiado pela Rússia, Egito e Emirados Árabes Unidos (EAU). Hafter e suas tropas estão tentando capturar Trípoli.

As coisas não estão indo bem para os russos ou o Grupo Wagner na África. E quando você está mostrando uma fraqueza percebida, especialmente neste mundo de contratos militares privados, outros tentarão usar isso a seu favor.

Entra Erik Prince.

Prince, o fundador da empresa de segurança privada Blackwater, tem procurado nos últimos meses fornecer serviços militares o Grupo Wagner em pelo menos dois pontos de acesso africanos, de acordo com relatórios do The Intercept.

Prince supostamente se encontrou no início deste ano com um funcionário do Grupo Wagner e se ofereceu para apoiar as operações do Grupo Wagner na Líbia e em Moçambique. O advogado de Prince negou que ele tenha se encontrado com alguém do Grupo Wagner.

Erik Prince, fundador da Blackwater.

De acordo com o mesmo relatório, Prince também procura fornecer uma força para aumentar as operações do Grupo Wagner no Moçambique. Prince enviou uma proposta à empresa russa oferecendo-se para fornecer forças terrestres e vigilância baseada na aviação, algo que lhes falta no momento. No entanto, o Grupo Wagner/Rússia rejeitou sua proposta.

Os russos não querem admitir que precisam de ajuda, nem aceitá-la de um americano com laços tão estreitos com a Casa Branca de Trump - Prince é irmão da secretária de Educação Betsy DeVos.

Diga o que quiser sobre Prince, mas ele nunca se esquivou de fazer propostas não-solicitadas para suas ideias. Foi assim que ele acabou conhecendo o presidente Trump. Enquanto, neste caso, os russos/Wagner rapidamente rejeitaram sua proposta, isso não muda o fato de que outros podem ver que a "parada da vitória" russa, para obter contratos mercenários na África, foi um pouco prematura.

Eles estão tendo uma vida difícil no continente e, embora continuem a jogar dinheiro e mercenários na briga, estão nadando em águas desconhecidas e isso é visível.

Steve Balestrieri atuou como graduado, sargento e Warrant Officer (sem equivalente no Brasil) das forças especiais antes que ferimentos forçassem sua reforma precoce.

Bibliografia recomendada:

The "Wagner Group":
Africa's Chaos in an Economic Boom.
Intel Africa.

Bush Wars:
Africa 1960-2010.

Leitura recomendada: