sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Conheça os modernos filósofos da guerra franceses

 

Por Michael Shurkin, War on the Rocks, 5 de janeiro de 2018.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de fevereiro de 2021.

Para os franceses, o choque dos ataques terroristas de 2015 veio não apenas do horror dos eventos, mas também da percepção de que sua nação estava de fato, como o então presidente François Hollande disse a eles, em guerra com o ISIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante). Claro, a França vinha lutando contra grupos islâmicos em várias frentes há algum tempo. Ela enviou uma brigada para o Mali em 2013 para lutar contra os afiliados da Al-Qaeda, levando o Le Figaro a notar que, pela primeira vez, o governo francês estava usando a palavra com "g", ou seja, guerre (guerra), em vez de recorrer a eufemismos. No ano seguinte, a França estendeu sua missão no Mali a toda a região do Sahel (Operação Barkhane) e iniciou as operações no Iraque e na Síria contra o ISIL (Operação Chammall). A França também vinha travando uma guerra clandestina contra afiliados da Al-Qaeda no Chifre da África por vários anos, e as forças francesas lutaram e morreram ao lado de tropas americanas no Afeganistão. Os ataques de 2015 trouxeram a guerra para casa, não apenas por causa da carnificina em solo francês, mas porque o governo desdobrou, como parte da Operação Sentinela, cerca de 10.000 soldados encarregados de proteger locais "sensíveis", incluindo aeroportos e atrações turísticas, restaurantes kosher e sinagogas.

Para aceitar o fato de estarem em guerra, os franceses se voltaram não apenas para os intelectuais e comentaristas públicos usuais, mas também para uma espécie relativamente rara na França: os que podem ser chamados de especialistas em segurança nacional. Vários deles estão associados ao pequeno mas saudável ecossistema de think tanks da França, que se beneficiam do apoio do governo, e cujos pesquisadores às vezes vão de um lado para outro entre suas casas institucionais e o serviço governamental. Existem dois pensadores, no entanto, que se destacam tanto por causa de sua proeminência pública, mas também porque casam o melhor das tradições intelectuais da França com credenciais militares sérias. O General Vincent Desportes e o Coronel Michel Goya baseiam-se em carreiras focadas no estudo e na prática da guerra e compartilham uma visão mais sombria e hobbesiana do que normalmente se encontra nos debates públicos franceses. Isso por si só os torna guias atraentes para o mundo sombrio em que os franceses agora se encontram. Desportes e Goya também são incomuns em um país no qual se espera que os oficiais militares não falem em público ou compartilhem suas opiniões abertamente, um legado do Putsch de Argel de 1961. Depois que alguns oficiais do exército tentaram derrubar o presidente Charles de Gaulle e estabelecer uma junta militar, todos os lados acharam melhor que os militares falassem o menos possível.

De fato, Desportes supostamente arruinou sua carreira em 2010 quando, em uma entrevista ao Le Monde, criticou a estratégia americana no Afeganistão e a estratégia francesa de seguir os americanos. Isso lhe rendeu a ira do então ministro da Defesa Hervé Morin. Em um editorial de maio de 2016 no Le Monde, Desportes criticou o ex-primeiro-ministro Alain Juppé por insistir que os oficiais "calassem a boca ou saíssem". Mais recentemente, ele tem sido implacável em suas críticas ao novo presidente da França, Emmanuel Macron, por sua forma de lidar com os militares e por "incompetência".

Para os americanos, Desportes e Goya fornecem informações preciosas sobre as perspectivas de algumas das melhores mentes do Exército Francês, um exército que conta como o aliado mais ativo e capaz dos Estados Unidos. Os oficiais franceses merecem ser ouvidos porque são estudantes assíduos das forças armadas americanas e do modo de guerra americano. Eles oferecem críticas bem intencionadas, mas às vezes mordazes, que só podem vir de um amigo próximo. Desportes e Goya postulam que os americanos estão certos em acreditar que o “hard power” (poder duro/coercitivo) continua sendo indispensável, e que os legisladores não devem ter vergonha de ordenar suas forças armadas a derramarem sangue e correrem o risco de derramar seu próprio sangue. Eles também expressam sérias reservas sobre como os americanos lutam nas guerras e o que eles vêem como o "culto" à alta tecnologia dos militares americanos.

Vincent Desportes


Desportes é um oficial de cavalaria blindada aposentado. Como todos os oficiais-generais franceses, ele se formou no equivalente francês de West Point, Saint-Cyr, e cresceu por meio de um sistema que recompensa a destreza intelectual e a eloqüência junto com as habilidades de liderança. Ele também se formou no U.S. Army War College e serviu como adido de defesa nos Estados Unidos. Uma de suas últimas funções oficiais no serviço francês foi dirigir um dos mais proeminentes think tanks internos do Exército francês, o Centre de Doutrine et d'Emploi des Forces (Centro de Doutrina e de Emprego de Forças), que entre outras coisas combina algumas das funções do Comando de Treinamento e Doutrina do Exército dos EUA e seu Centro de Lições Aprendidas do Exército.

Desportes apresenta uma visão de mundo sombria em seus muitos ensaios e entrevistas publicados, bem como em seu trabalho recente mais importante, La dernière bataille de France: Lettre aux Français qui croient encore être défendus (Última batalha da França: Carta aos franceses que ainda pensam que são defendidos), escrita e publicada entre os ataques de janeiro e novembro de 2015. Seu ponto de partida nesse livro e ao longo de sua escrita é que o mundo é perigoso e a França deve ter a capacidade de agir militarmente e unilateralmente: “É hora de voltar à dura realidade do mundo para entender os limites da solidariedade internacional e, portanto, para restaurar nossa capacidade de defesa nacional.” Uma razão, ele argumenta, é que o futuro da França está tudo menos garantido. “Não é porque a França 'era' que a França 'será’”, escreve ele. Além disso, o poder militar da França é, em sua opinião, a única razão pela qual a França é importante.

O ceticismo de Desportes em relação ao internacionalismo reflete três preocupações. Uma é que nem sempre se pode esperar que países com interesses diferentes apoiem uns aos outros. Referindo-se ao filme de Steven Spielberg de 1998 sobre a invasão da Normandia, Desportes insiste na Última Batalha da França que o soldado Ryan é um mito, e a França não pode esperar que os americanos mais uma vez sacrifiquem os seus para salvá-la.

O segundo é o sentimento de complacência que o general pensa que os compromissos multinacionais fomentam. A OTAN tem seus usos, Desportes escreve no livro, “mas a organização se tornou a partir de agora mais perigosa do que útil, pois dá aos europeus uma falsa sensação de segurança, uma boa desculpa para renunciar aos seus próprios meios de defesa”.

A terceira preocupação é a americanização dos militares franceses. Qualquer pessoa familiarizada com as forças armadas da OTAN pode testemunhar a propagação da profunda influência das forças armadas dos EUA. Considere, por exemplo, o amplo uso de definições, termos (chavões), táticas e doutrinas militares americanas. Qualquer força operando em uma coalizão com americanos deve seguir as normas americanas e, mesmo sem a presença dos americanos, os militares da OTAN costumam recorrer a essas normas como referência comum.

Desportes desaprova por uma série de razões, entre elas seu desgosto pelo modo de guerra americano e pela cultura estratégica americana, que, ele argumenta, fetichiza a tecnologia e impede os estrategistas de compreenderem a natureza fundamentalmente política da maioria dos conflitos. Os americanos, diz ele, confundem guerra com duelo tecnológico. Eles constroem armas em prol de armas. Um caso em questão que ele oferece é a chamada “transformação” ou “revolução nos assuntos militares”, a ideia americana de que a tecnologia de rede digital combinada com munições de precisão estava revolucionando a guerra e oferecia aos Estados Unidos uma grande vantagem sobre seus oponentes. Ele cita a publicação militar americana Joint Vision 2010, que é repleta de entusiasmo por alta tecnologia, como um excelente exemplo do "credo" religioso das forças armadas americanas.

Desportes considera o modo de guerra americano como intrinsecamente falho e, em qualquer caso, muito caro para a França seguir. Necessita de equipamento tão caro que aqueles que não têm os bolsos fundos da América são forçados a reduzir suas forças para pagar por itens novos e atualizados, criando uma espécie de espiral mortal para forças armadas que já estão reduzindo seu tamanho por causa dos cortes no orçamento. A França e outras forças aliadas estão se tornando requintadas - ou seja, neste caso, altamente capazes e muito caras - mas raras. Isso é um problema porque, Desportes insiste, os números são importantes e a maioria dos conflitos exige o controle do espaço, em vez de simplesmente localizar e atacar o inimigo. O controle do espaço requer “volume”. O resultado é um exército francês que pode prevalecer em uma batalha, mas não pode vencer uma guerra.

Cortar orçamentos para financiar combates “ao estilo americano” também é problemático porque resulta em lacunas nas capacidades francesas, o que obriga a França a depender ainda mais da ajuda americana. De fato, a confiança da França nos Estados Unidos para conduzir suas operações militares (os Estados Unidos fornecem rotineiramente reabastecimento aéreo, transporte aéreo pesado e inteligência) dá a Washington um poder de veto de fato sobre muitas atividades militares francesas. Há muitos precedentes: os Estados Unidos usaram sua capacidade de diminuir o apoio às forças armadas francesas para limitar a ação francesa na Indochina, no Sinai e na Argélia, bem como em várias ocasiões na África. Capacidades diminuídas também se traduzem em resiliência diminuída e coerência operacional geral diminuída. Desportes compara "transformação" com a Linha Maginot, cujo custo, diz ele, forçou a França a cortar uma série de capacidades que reduziram a "coerência operacional" da força e enfraqueceram gravemente o todo. Para Desportes, está claro que o modo de guerra americano também não funciona para os americanos: eles perdem suas guerras.

Desportes apoiou a decisão de Hollande de declarar guerra ao ISIL e seu eventual envio de forças militares para o Iraque e a Síria, mas ele defendeu um compromisso maior do que o que Hollande estava preparado para fazer e preferiu se concentrar na África. Invocando a doutrina Pottery Barn de Colin Powell (você quebra, você compra) durante o depoimento perante o Senado francês, ele explicou que, como os Estados Unidos "quebraram" o Iraque e "criaram" o ISIL, eles deveriam assumir a liderança no tratamento do ISIL. A França, entretanto, “quebrou” a Líbia e tem uma participação direta na África, onde pode alavancar suas vantagens comparativas. Se dependesse de Desportes, a França teria um exército muito maior - grande o suficiente para vencer e grande o suficiente para lutar à maneira francesa em vez de seguir a liderança americana - e então apontá-lo-ia para o sul.

Há no pensamento dos Desportes, deve-se notar, mais do que um pouco da outra regra famosa de Powell, sua "Doutrina Powell". Isso pode ser resumido pelo ditado clássico americano "go big or go home" ("vá com tudo ou vá para casa"). Daí a crítica de Desportes em sua infame entrevista ao Le Monde sobre a abordagem de Obama no Afeganistão e a decisão de "aumentar" as forças dos EUA lá. “Todos sabiam”, afirmou Desportes, “o número deveria ser zero ou 100.000 a mais... Não se faz meias-guerras”.

Desportes também é um crítico ferrenho da Operação Sentinelle, que ele considera um mau uso dos militares e um desperdício de recursos. Os soldados simplesmente não são adequados para o que significa trabalho policial e patrulhamento das ruas da cidade, diz ele. Tempo e dinheiro gastos no Sentinelle são tempo e dinheiro que não estão sendo gastos na preparação para o tipo de conflito a que se destinam as forças armadas da França. Além disso, todos os soldados nas ruas francesas não estão disponíveis para o serviço em outro lugar. A Sentinelle, para Desportes, indica uma falha em entender para que servem os militares e sua contínua relevância no mundo de hoje. Ele argumenta que “o poder brando só funciona se você tiver um poder duro”, e a França não está investindo no tipo de poder duro que acredita que precisa para garantir sua segurança e ter uma voz no mundo.

O argumento de Desportes em favor do hard power e sua rejeição do multilateralismo - essencialmente, bom, mas perigoso confiar nele - contrasta fortemente com os repetidos apelos de muitos líderes europeus para que suas nações unam seus recursos militares, o que na maioria dos casos implicaria em abrir mão de algumas capacidades nacionais ou autonomia de ação. Os holandeses chegaram ao ponto de entregarem sua brigada aeromóvel ao Exército Alemão, onde faz parte da força de reação rápida da Alemanha, e agora estão integrando uma brigada de infantaria mecanizada em uma divisão Panzer alemã.

Talvez de maior interesse para o público americano seja a crítica de Desportes ao modo de guerra americano e sua obsessão por alta tecnologia. Ainda assim, parece claro que a tecnologia da qual ele desconfia é impossível de descartar agora que está aqui, mesmo que seus benefícios não sejam confirmados. Uma força militar que aspira a se manter em uma guerra até mesmo contra os russos pode se dar ao luxo de não investir em alta tecnologia? Curiosamente, para os militares franceses, a resposta parece ser "não". Avança com alta tecnologia na busca pela modernização. O Exército francês, por exemplo, está bem envolvido em um programa conhecido como SCORPION, que se assemelha ao fracassado Future Combat Systems americano e apresenta uma família de veículos blindados de última geração e outros equipamentos que se conectam a uma nova rede de computadores massiva. Por outro lado, a abordagem francesa para a guerra centrada na rede é comparativamente mais modesta em sua ambição e modesta sobre os benefícios esperados - de uma forma que talvez reflita o ceticismo de Desportes. Os franceses parecem estar se movendo em direção a algo como um meio-termo entre a visão de Desportes e o tipo de entusiasmo sem fôlego que alguém poderia ter encontrado no Pentágono no início dos anos 2000.

Outro problema com a escrita de Desportes é que, apesar de todas as suas críticas ao jeito americano (eles perdem suas guerras), raramente fica claro quais alternativas ele tem em mente. Como a França poderia ter lutado de maneira diferente no Afeganistão se possuísse os meios para lutar do seu jeito? Desportes não responde bem a essa pergunta, embora se possa inferir que ele poderia ter optado por não lutar se não houvesse recursos suficientes e nenhum caminho claro a seguir. Mais uma vez, lembramo-nos da Doutrina Powell.

Michel Goya


Goya serviu como soldado de infantaria nas tropas navais da França, uma parte do Exército francês que no século XIX fazia parte da Marinha e sempre teve uma vocação colonial e foco expedicionário. Ao contrário de Desportes, Goya subiu na hierarquia depois de servir como sargento e conquistou uma vaga em uma escola que contrata ex-alistados e graduados. Goya serviu na década de 1990 com as forças francesas nos Bálcãs, mas no final de sua carreira na ativa, ele assumiu um turno acadêmico como diretor de pesquisa no Centre de Doutrine et d'Emploi des Forces (Centro de Doutrina e de Emprego de Forças) e em sua organização irmã, o Institute de Recherche Stratégique de l'École Militaire (Instituto de Pesquisa Estratégica da Escola Militar), outro dos mais proeminentes think tanks da defesa francesa.

Como Desportes, Goya defendeu uma estratégia “África em Primeiro Lugar”, e os dois estão de acordo na maioria das questões. Mas enquanto Desportes favorece amplas pinceladas de nível estratégico, Goya se deleita com os detalhes de estudos de caso históricos, que ele apresenta em seu blog “La Voie de l'Épée” (O Caminho da Espada) e em antologias publicadas como a de 2011, Res Militaris. Ele é particularmente fascinado por como soldados, unidades de combate, exércitos e nações respondem ao choque do combate e como eles se adaptam conforme as ameaças evoluem. Goya acredita que o sucesso na guerra depende de certas qualidades humanas: é um artigo de fé para ele que exércitos que encorajam líderes inteligentes a se adaptar e improvisar podem prevalecer sobre forças maiores e mais bem equipadas. Assim, por exemplo, em Res Militaris, ele argumenta que as unidades da França Livre que lutaram ao lado dos britânicos na Líbia em 1941 superaram em muito as unidades francesas maiores e mais bem armadas que lutaram na França em 1940 porque os líderes da França Livre se adaptaram e improvisaram. Eles usaram suas armas de maneiras novas e encontrando soluções táticas para ameaças que haviam causado sofrimento às unidades francesas maiores.


Goya, como Desportes, critica fortemente a conduta americana no Afeganistão, e sua crítica deveria ser leitura obrigatória para aqueles que desejam compreender o curso dessa guerra. Mas sua análise mais instigante é a guerra de Israel contra o Hezbollah em 2006 (que Desportes também cita com frequência). Goya quer saber como um exército grande e tecnologicamente superior não conseguiu derrotar um inimigo muito menor. O problema, ele argumenta, era basicamente psicológico. Primeiro, Israel falhou em preparar seus soldados para o choque do combate. Seus líderes também não aceitaram que a guerra exigiria a perda de soldados, por isso evitou um ataque terrestre e manteve sua fé no poder aéreo - com o resultado de permitir que os civis alvos dos mísseis do Hezbollah suportassem o impacto da guerra enquanto protegiam as tropas (Goya teme que a França esteja fazendo a mesma coisa hoje em sua luta contra o ISIL, observando a disparidade entre o número de vítimas civis e vítimas militares francesas). Ele também argumenta que os líderes israelenses se comprometeram tanto com a transformação e com o modo de guerra americano que não conseguiam reconhecer a desconexão entre as capacidades que haviam adquirido com grande custo e o mundo real. A tecnologia rapidamente se revelou quase inútil, sugere Goya, e os líderes israelenses não conseguiram se adaptar.

Goya compara o modo de guerra americano em suas iterações americana ou israelense com um modo de luta nitidamente francês, personificado por seu próprio braço do Exército francês, os fuzileiros navais. Era e é normal para a França enviar pequenas formações de fuzileiros para pontos críticos e esperar que os oficiais subalternos lidem com situações perigosas contando com seus próprios recursos e inteligência.

O resultado, escreve Goya, é uma “abordagem abrangente” que se concentra em prestar atenção ao ambiente humano e às interações entre as tropas e as populações locais, em vez de depender da força bruta. Comparando a conduta francesa e americana no Afeganistão e em outros teatros, Goya descreve os americanos como menos ágeis - com comandantes de escalão inferior menos capacitados para agir e se adaptar por conta própria e muito mais dependentes do poder de fogo. O jeito americano, ele escreve, é mais seguro, mas exceto para aqueles raros conflitos em que destruir combatentes inimigos é de fato a chave para a vitória, geralmente não contribui para vencer guerras. O jeito francês busca estimular a adaptação, principalmente nos níveis mais baixos, com os “decisores” mais próximos da luta, e é menos focado em destruir o inimigo com poder de fogo. Também é mais barato, embora talvez mais caro em vidas dos soldados. Sua visão de comando é consistente com a adoção do comando de missão pelo Exército francês, que envolve capacitar os subordinados a descobrirem por si próprios como atingir seus objetivos, e fazer isso com o tipo de restrição de recursos a que os oficiais franceses estão acostumados.

Goya expressou repetidamente a frustração com a incapacidade da França (e da Europa) de reunir os recursos necessários para lutar e vencer o ISIL e aceitar os custos financeiros e humanos que uma guerra real exigiria. Logo após os ataques à bomba de março de 2016 em Bruxelas, por exemplo, ele redigiu uma resposta à onda usual de declarações como "Je suis Bruxelles" ou "Je suis Charlie", em vez disso declarando "Je suis la Guerre" (eu sou a guerra). Mais recentemente, em um artigo intitulado "La Drôle de Guerre: Update", Goya focou em duas operações contra-ISIL da França: Sentinelle, a missão de segurança interna e Chammal, a campanha aérea e terrestre no Iraque e na Síria. Com relação à Sentinelle, Goya é totalmente hostil a uma operação militar que causou a morte de menos de uma dúzia de terroristas, mas a um custo impressionante em termos de trabalho, dinheiro e tempo que o Exército poderia gastar em treinamento. “Não é certo que a vontade do Estado Islâmico tenha sido particularmente afetada”, escreve ele. Pelo contrário, “é provável que esteja satisfeito com a existência desta operação”. Goya parece preferir que os políticos aceitem o risco de que a retirada de tropas das ruas da França resulte em mais mortes de civis. Isso é guerra. Aqui, encontra-se também um eco de seu interesse pela psicologia da guerra: Goya insiste repetidamente que os formuladores de políticas devem entender o "verdadeiro" significado da guerra e preparar o público para seu custo real (ou seja, soldados voltando para casa em caixões).

Se a Sentinelle é muito grande e inútil, de acordo com Goya, a Chammal é muito pequena e muito mal adaptada ao seu objetivo declarado de erradicar o ISIL. Ele observa que as forças desdobradas pela França foram escassas:

"Dois grupos de treinamento, um grupo de forças especiais, um esquadrão de caças-bombardeiros que às vezes é reforçado por aeronaves navais... e uma bateria de quatro canhões de 155mm... Voilà, isso é tudo que a França é capaz de comprometer em uma guerra total (porque devemos lembrar que os dois adversários querem acabar um com o outro)."

Ele continua:

"Vamos dizer com clareza: não se está realmente procurando destruir [ISIL], mas sim "contribuir um pouco para a destruição" [do ISIL], sabendo muito bem que a maior parte do trabalho está sendo feito por forças locais no terreno, e que somos responsáveis apenas por cerca de 5% dos ataques aéreos da coalizão."

Goya está incomodado não apenas pela escassez do esforço da França, mas também por sua relutância em aceitar riscos. A França precisa estar disposta a arriscar a morte de seus soldados, em vez de procurar poupar soldados às custas de vidas de civis. Basicamente, ao enviar apenas alguns soldados por preocupação com sua segurança, acaba-se matando mais civis direta e indiretamente. Diretamente, porque o bombardeio aéreo, por mais cuidadoso que seja, invariavelmente mata civis, e indiretamente, porque ao optar por não conduzir uma campanha terrestre, está optando por não encerrar rapidamente o combate. O resultado é que “esta guerra é, portanto, a primeira em nossa história em que as perdas humanas são de quase 99% de civis”. Goya acrescenta: “É sempre surpreendente que tenhamos ido à guerra sem querer fazer guerra”.

A mensagem de Goya para os franceses se resume ao velho ditado romano: "Se você quer paz, prepare-se para a guerra". Ele procura dissipar as ilusões de que o hard power e o recurso às armas são menos importantes no mundo de hoje. Ele elabora uma visão de um modo de guerra francês, insistindo que ele oferece uma promessa maior do que o modo americano porque, essencialmente, aposta na inteligência e criatividade de seus jovens comandantes, em vez de tecnologia e poder de fogo. Claro, como aconteceu com Desportes, é difícil saber como a França poderia lutar no Afeganistão de forma diferente se pudesse lutar como quisesse, ou como poderia lutar contra a Rússia de forma diferente no caso de uma guerra na Europa Oriental.

É difícil avaliar quanta influência Desportes e Goya têm na opinião pública francesa, mas pelo menos está claro que eles conquistaram uma audiência relativamente grande graças aos seus escritos e às frequentes aparições na mídia. Além disso, o clima mudou. Hollande em 2015 anunciou que faria crescer o Exército francês pela primeira vez desde a Guerra da Argélia, formalmente pedindo uma suspensão dos cortes de defesa - movimentos Desportes e Goya aplaudiram enquanto mantinham dúvidas sobre o que viria a seguir. Macron também prometeu aumentar o orçamento de defesa, embora ainda não se veja até que ponto ele cumpre essa promessa. Enquanto isso, o interesse dos jovens em ingressar no exército disparou em 2015, e a França não parece ter problemas para cumprir suas metas de recrutamento, o que diz algo sobre a visão dos jovens franceses sobre as forças armadas e a ideia de lutar. As pesquisas indicam que o público tem os militares em alta conta e apóia fortemente as operações da França no exterior.

Para os americanos, os argumentos dos dois pensadores franceses a favor do hard power beiram o auto-evidente, já que o público americano tende a não questionar grandes orçamentos de defesa ou a necessidade de intervenções militares. A seriedade com que Desportes e Goya encaram a guerra, no entanto, torna sua opinião sobre como ela deve ser feita particularmente valiosa. Eles acreditam na necessidade de lutar e acreditam que se deve lutar para vencer, o que, por sua vez, levanta questões sobre quando se deve lutar e como. Embora certamente não critiquem os Estados Unidos por estarem dispostos a lutar, eles vêem problemas significativos no modo de guerra americano e concordam que os franceses devem evitar emulá-lo. Sua mensagem mais profunda, no entanto, é aquela que os líderes e públicos de ambos os países devem prestar atenção: a necessidade de ser honesto sobre o que é a guerra e o que ela exige.

Michael Shurkin é cientista político sênior da RAND Corporation, organização sem fins lucrativos e não-partidária.

Bibliografia recomendada:


Leitura recomendada:

O Estilo de Guerra Francês, 12 de janeiro de 2020.

O que um romance de 1963 nos diz sobre o Exército Francês, Comando da Missão, e o romance da Guerra da Indochina, 12 de janeiro de 2020.

COMENTÁRIO: Por que ler Beaufre hoje?12 de fevereiro de 2021.

Um grupo de israelenses construiu e testou secretamente drones suicidas para um cliente asiático desconhecido

Por Thomas Newdick, The War Zone, 11 de fevereiro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de fevereiro de 2021.

A polícia israelense e o serviço de segurança do Estado estão investigando um plano clandestino para exportar ilegalmente as “munições vagantes” (loitering munitions).

Um grupo de mais de 20 israelenses, entre eles ex-autoridades de defesa, está sob investigação por supostamente projetar, produzir e vender ilegalmente “mísseis armados vagantes”, também conhecidos como “drones suicidas”, para um país asiático não-identificado. A notícia chega menos de duas semanas após o anúncio de três vendas legítimas desse tipo de arma pela indústria armamentista israelense, inclusive para países asiáticos não-identificados.

A polícia israelense confirmou hoje a investigação, que foi conduzida “nos últimos meses” em cooperação com o serviço de segurança estatal Shin Bet do país. Em nota publicada no Twitter, a polícia israelense explicou que os suspeitos haviam recebido secretamente instruções “de entidades relacionadas ao mesmo país”, em troca de “fundos consideráveis” pagos a eles, bem como outros benefícios não divulgados. A investigação foi conduzida pela Unidade de Investigações de Crimes Internacionais, parte da divisão Lahav 433 da polícia, que é a principal responsável pela investigação de crimes nacionais e corrupção. Como já observado, o Shin Bet também estava envolvido, assim como o Conselho de Segurança Nacional de Israel.

As munições vagantes ilegais em construção em uma oficina israelense.

“Os israelenses são suspeitos de crimes contra a segurança nacional, violação das leis de exportação de armas, lavagem de dinheiro e outros crimes financeiros”, relatou o jornal israelense Haaretz. “A investigação continua. Os detalhes da investigação e as identidades dos suspeitos estão sob ordem de silêncio.”

Os supostos crimes incluem crimes contra a segurança do Estado, violações da lei sobre a supervisão de exportações de segurança, lavagem de dinheiro e outros crimes econômicos.

“Este caso ilustra o dano potencial à segurança do país devido a negócios ilegais conduzidos por cidadãos israelenses com entidades estrangeiras”, disse um porta-voz do Shin Bet, conforme noticiado no Jerusalem Post. “Também aumenta o temor de que a tecnologia caia nas mãos de países inimigos”, acrescentaram.

Israel tem procurado aumentar a regulamentação em torno de suas exportações de defesa nos últimos anos, com o objetivo de evitar que as empresas vendam armas conscientemente a países que cometeram graves violações dos direitos humanos.

De acordo com a Lei de Supervisão das Exportações de Defesa, o Ministério da Defesa israelense deve consultar o Ministério das Relações Exteriores em todas as vendas de armas para países estrangeiros, avaliando o impacto potencial na política externa e nas relações diplomáticas. Desde que a lei foi aprovada em 2007, o Ministério das Relações Exteriores tem muito mais poder para vetar as transferências de armas, embora elas, por sua vez, possam ser anuladas pelo gabinete de segurança do governo. Ironicamente, à luz do caso atual, esse regulamento foi introduzido, em parte, devido à venda planejada de drones de coleta de inteligência para a China, que acabou sendo cancelada devido à pressão dos Estados Unidos.

A polícia israelense divulgou vídeos e fotos das munições vagantes. Um breve videoclipe, com dois timestamps mostrando agosto e novembro de 2019, mostra uma das armas sendo testadas, com vários indivíduos reunidos ao lado de dois carros antes de serem lançadas, quase verticalmente. O Times of Israel informa que a polícia confirmou que o teste ocorreu “perto de uma área residencial” no centro do país.

De modo geral, os drones suicidas têm as vantagens de serem pequenos, manobráveis e difíceis de detectar, além de serem relativamente baratos. Mesmo uma munição vagante relativamente básica, oferecendo um sistema de controle man-in-the-loop (modelo que necessita de interação humana) seria uma arma muito útil em muitos cenários, especialmente em guerra assimétrica. Outros benefícios desse tipo de arma incluem a capacidade do operador de abortar o ataque, mesmo no último momento, ou fazer ajustes manuais para melhorar a precisão. Geralmente, os drones suicidas são muito precisos, ao mesmo tempo que fornecem meios adicionais para ajudar a evitar danos colaterais, recursos sobre os quais você pode ler com mais detalhes neste artigo anterior do War Zone.

Enquanto a munição vagante em questão parece ter sido lançada inicialmente com um motor de foguete, uma foto mostrando os drones sendo fabricados em uma oficina revela que ela também parece ter uma hélice na parte traseira, para a fase de cruzeiro de seu vôo. O drone em si tem um corpo tubular com grandes asas cruciformes no centro do corpo, além de aletas cruciformes menores na extremidade da cauda. No geral, o drone parece ser uma reminiscência de um míssil teleguiado israelense, o SPIKE-NLOS, produzido pela Rafael, embora este não use um motor de hélice.

Um tripé montado no que parece ser um link de controle para operar os drones.

Não se sabe qual sistema de orientação o drone usou. Normalmente, esses tipos de armas podem usar um sistema de controle man-in-the-loop que permite que seu operador humano veja o que o drone vê, por meio de um conjunto de câmeras de vídeo eletro-ópticas e/ou infravermelhas, durante todo o curso do seu vôo.

Os modelos mais sofisticados agora disponíveis oferecem um grau de autonomia, com a capacidade de detectar, categorizar e rastrear automaticamente vários tipos de alvos. Cada vez mais comuns são os modos de operação em que os drones podem prosseguir para atingir os alvos desejados sem qualquer necessidade adicional de intervenção humana.

Embora não esteja claro se esses métodos de orientação mais avançados estavam disponíveis para os indivíduos responsáveis pela construção desses drones ilícitos, o fato de ex-autoridades de defesa estarem envolvidos na trama sugere que eles podem ter pelo menos um conhecimento significativo dessas tecnologias.

Este laptop robusto parece ter sido usado para lançar e controlar os drones.

Israel já é notavelmente um dos principais desenvolvedores de munições vagantes, ou drones suicidas, incluindo o Harop que foi desenvolvido pela Israel Aerospace Industries (IAI). Menos de duas semanas atrás, o War Zone relatou como a versão marítima dessa arma havia recentemente garantido o que era aparentemente sua primeira encomenda, de outro país asiático não-identificado. A venda da Harop navalizada foi anunciada juntamente com um acordo com "outro cliente na Ásia" para versões padrão lançadas de terra dessa arma e uma venda da munição vagante de asa rotativa Rotem da IAI para um "país estrangeiro" diferente.

Não é exagero dizer que Israel foi essencialmente o pioneiro no conceito de munições vagantes, inspirado pelo uso inicial de drones para ajudar a destruir e confundir as defesas aéreas hostis durante a Guerra do Yom Kippur em 1973. Nos conflitos que se seguiram, Israel refinou o uso de drones para ajudar a sobrecarregar as baterias de defesa aérea, bem como para vigilância. Drones destinados a essas missões de alto risco tornaram-se cada vez mais dispensáveis, levando ao Harpy (Harpia), que se destinava a vaguear e depois localizar as frequências de radar de ameaça, destruindo os próprios sistemas de defesa aérea. Como talvez a primeira "munição vagante", o Harpy é a ancestral do Harop de hoje, e você pode ler mais sobre ele aqui.

Claro, é do interesse de alguns países obscurecer os detalhes das transferências de armas de Israel, no caso de vendas legítimas. Sensibilidades políticas são frequentemente a razão para os negócios israelenses de armas com clientes internacionais serem pouco divulgados por ambas as partes, as recentes vendas dos Harop e Rotem talvez sendo um exemplo disso. Enquanto isso, no caso das munições vagantes ilícitas, há uma sugestão de que as ramificações políticas também podem ser significativas. “Fontes com conhecimento da investigação disseram que o caso era altamente delicado, pois poderia afetar as relações exteriores de Israel e levar a uma divisão entre as superpotências”, tuitou o editor da edição em inglês do Haaretz, Avi Scharf.

Um carretel de cabo estava entre os equipamentos que aparentemente foram confiscados.

Munições vagantes, em geral, têm sido um tópico de grande discussão internacional desde que o Azerbaijão usou Harops lançados do solo com efeito decisivo em seu conflito com a Armênia sobre a disputada região de Nagorno-Karabakh no ano passado. Você pode ler mais sobre essa luta e o papel que os drones desempenharam nela em nosso relatório anterior sobre esse conflito.

Neste contexto, também é importante notar que uma empresa israelense já teve problemas em relação ao seu envolvimento em um incidente em Nagorno-Karabakh em 2017. Naquele ano, a Aeronautics Limited foi acusada de fraude e violação dos controles de exportação do país para equipamento militar. Isso foi supostamente o resultado de um incidente no Azerbaijão, no qual executivos da empresa “demonstraram” as capacidades de seu drone suicida Orbiter 1K, lançando um ataque muito real contra as forças apoiadas pela Armênia em Nagorno-Karabakh. Você pode ler tudo sobre isso aqui.

O fato de que um grupo bastante pequeno de indivíduos também pode construir e testar, em segredo, uma munição vagante aparentemente funcional também deve proporcionar uma pausa para reflexão para as nações ao redor do mundo que enfrentam uma ameaça potencial de grupos de milícias ou organizações terroristas. Após seu uso no conflito no Iêmen, a proliferação desse tipo de arma nas mãos de outros atores não-estatais parece ser apenas uma questão de tempo.

Até que saibamos o cliente pretendido desses drones produzidos ilegalmente, é difícil saber exatamente em que tipo de cenário eles deveriam ser usados. No entanto, parece seguro dizer que o desempenho das munições vagantes de fabricação israelense no conflito do Nagorno-Karabakh no ano passado ajudou a tornar esse tipo de arma algo “obrigatório” entre as forças armadas em todo o mundo.

Bibliografia recomendada:


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A Força Aérea Americana vai completamente "Rainbow Six" com seus novos robôs batedores arremessáveis, 6 de outubro de 2020.

COMENTÁRIO: Por que ler Beaufre hoje?


Por Hervé Pierre, Areion24, 11 de fevereiro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de fevereiro de 2021.

Não tendo sido o inventor de um conceito emblemático, o General Beaufre é antes de tudo um montador, que assume quando escreve a Liddell Hart “tendo tentado [...] racionalizar as várias concepções de estratégia (1). Mas não há nada neutro nesta abordagem que o levou a reconciliar Clausewitz e Liddell Hart. Ao dar-se os meios para aproximar o que se opõe, Beaufre corre o risco de uma releitura que pode levar a uma modificação profunda dos padrões que ele monta.

(1) Carta de Beaufre para Liddell Hart sobre o livro Introdução à Estratégia, 18 de janeiro de 1963, fundos Liddell Hart, LH 1/49/115.

Certamente, para alguns, esta montagem enfraquece os conceitos em uma confusão que permite defender tudo e seu oposto. Para outros, ao contrário, a montagem é um crioulo que reformula conceitos tanto quanto forja novas palavras - como a de "paz-guerra" - e permite pensar as mais diversas situações. Na verdade, a complexidade do mundo no início do século XXI parece provar que este último está certo, como Pierre Hassner atesta em 2015, convidando seus leitores a relerem Beaufre. A complexidade não deve (apenas) ser entendida em seu sentido comum de complicado, mas também naquele, etimológico, de "tecido em conjunto": de múltiplos fatores interdependentes - proliferação, rearmamento, jihad global, saúde, crise econômica e social - em um contexto de enfraquecimento geral dos sistemas regulatórios internacionais tornam o mundo de 2020 certamente mais complexo do que o de 1970.

Sim, Beaufre deve ser relido: sua genialidade é menos em ter inventado conceitos do que em reinventá-los para torná-los compatíveis entre si. Ao articular o existente sem ceder às sereias do momento, conseguiu desenvolver um sistema suficientemente plástico e inclusivo para continuar a ter sentido hoje. Certamente algumas de suas propostas são datadas, até desatualizadas, mas o que poderia parecer totalmente “fora do tópico” no início da década de 1970 pode oferecer chaves de leitura interessantes para pensar o mundo cinquenta anos depois. Insistindo no "valor excepcional desta ferramenta", Christian Malis afirmou ainda que era necessário "recuperar Beaufre de forma criativa (2)". Sem dúvida, é possível agrupar as propostas do estrategista em três categorias principais. Para girar a metáfora médica da qual ele gostava particularmente, o primeiro está relacionado ao diagnóstico, o segundo ao remédio geral e o terceiro é o medicamento que resulta dele, a declinação do sistema de defesa (imunológico) em uma variedade de dosagens.

(2) Entrevista com Christian Malis, 11 de fevereiro de 2016.

Pensar a "paz-guerra"

A primeira proposição de Beaufre, formulada em 1939, é ir além das categorias de “paz” e “guerra” para pensar em “paz-guerra”. Porque mesmo quando as condições legais vinculadas a essas categorias são atendidas - "assinar a paz" ou "declarar guerra" - o oficial acredita que suas manifestações estão aquém do tipo ideal que deveriam incorporar. O resultado é uma situação real que é sempre uma mistura, um relativo, um paliativo. Considerando, aliás, que o diagnóstico é por natureza evolutivo, o estrategista considera mais adequado estimar a dosagem da paz e da guerra de forma dinâmica, a de uma variação entre as duas polaridades que tomaria a forma de uma certa aparência de paz-guerra. Não para se livrar da lei - muito pelo contrário, já que esses esquemas são referências para medir a realidade -, mas para aceitar que pode existir na prática um terceiro e que este terceiro se impõe nos fatos como o caso de uso mais frequente. A Guerra Fria é uma de suas formas arquetípicas, e este contexto particular de uma "paz impossível" garantida por uma "guerra improvável" claramente dá substância à sua intuição inicial.

Mas o que era verdade quando as categorias pareciam incapazes de se saturar com os fatos é, sem dúvida, ainda mais verdadeiro hoje, ao constatar que eles desaparecem ou parecem não fazer mais sentido. “Nós travamos guerras nas quais não assinamos a paz”, declarou o General Lecointre em julho de 2019 (3). O que é mais preocupante é, aliás, notar que se a palavra “guerra” saiu do léxico militar onde se dá preferência às de “conflito”, “crise”, “operação” ou “intervenção”, é por outro lado reinvestida em outros campos, às vezes mais inesperados. Já havia florescido a expressão "guerra econômica", tendo surgido uma Escola de Guerra Econômica junto à Escola de Guerra, embora, um sinal dos tempos, esta última tenha sido vergonhosamente rebatizada de "Collège interarmées de défense" (Escola Superior Interarmas de Defesa". O fato de se considerar "em paz", por não ter entrado formalmente em guerra, nada diz, no entanto, sobre o grau de violência ambiente.

(3) "General Lecointre: 'O indicador de sucesso não é o número de jihadistas mortos'", comentários coletados por Nathalie Guibert, Le Monde, 12 de julho de 2019.

A primeira vantagem do método de diagnóstico desenvolvido por André Beaufre é, portanto, obviamente, desenvolver uma cartela de cores. A segunda é pensar em termos de uma meta limitada, não uma meta absoluta. O absoluto, sublinha Clausewitz, leva à subida aos extremos: extremo de violência (guerra de extermínio), extremo de contágio espacial (guerra mundial), extremo de duração (guerra sem fim), extremo de recursos (guerra total). Por definição, o objetivo absoluto é inatingível; a derrota está no fim do caminho com a sensação de negócios inacabados vivida por aqueles que se desligaram do terreno sem ter cumprido sua missão. A contrario, o objetivo limitado é pensado não como o resultado ideal, mas como o melhor resultado possível; isso leva à definição de um certo nível "aceitável" de conflito, abaixo do qual se deve ter a coragem de considerar que o engajamento não se justifica mais ou pode ser reduzido consideravelmente. Nenhuma vitória tática brilhante que significaria a esperada derrota do adversário, mas uma vitória "construída" ao longo do tempo e valorizada na comunicação na medida em que o nível de conflito residual é considerado como correspondendo às expectativas políticas. Pois a última vantagem do raciocínio no espectro aberto pela guerra de paz é política. Claro, a impossibilidade de estar "em paz" pode levar ao temor de uma "guerra" permanente, mas ainda precisamos chegar a um acordo sobre o termo.

Quer nos arrependamos ou não, o termo "guerra" não se limita mais para Beaufre ao confronto sangrento entre dois grupos armados. De modo mais geral, ele também é aquele que qualifica qualquer forma de oposição a uma vontade adversa. O diagnóstico de "paz-guerra" revela um mundo que nunca está completamente em paz. O método de análise que leva a isso pressupõe que existe um espaço de variação entre a guerra e a paz. No entanto, esse espaço é o do político, utilizando para isso todas as alavancas de que dispõe para desafiar a alternativa radical e também ilusória entre a reconciliação e o apocalipse (4).

(4) Christian Malis, Guerre et stratégie au XXIe siècle, Fayard, Paris, 2014, pg. 44.

André Beaufre (à direita) em Washington. Nascido em 1902 e falecido em 1975, deixou uma marca duradoura no pensamento estratégico contemporâneo e foi traduzido várias vezes.

Qual remédio?

A segunda proposição de Beaufre é a resposta a esse diagnóstico. Consiste em aplicar o método de raciocínio estratégico a áreas distintas da área militar para as quais foi originalmente desenvolvido. Pois, na paz-guerra, o emaranhado de problemas pressupõe, ainda mais do que na guerra "quimicamente pura", a adoção de uma estratégia global. Beaufre é um dos primeiros "integracionistas" (5), daqueles que acreditam que diante da complexidade das situações, todas as ferramentas disponíveis devem ser mobilizadas. Ele certamente não é o único, como parece fazer sentido hoje; mas constatar é uma coisa, colocá-lo em prática efetivamente é outra. Pois, para que a abordagem global não permaneça na ordem do desejo ou da declaração de intenções, é necessário que os meios mobilizados se articulem, hierarquizados no tempo e no espaço, e que os efeitos obtidos sejam sujeitos à gestão cuidadosa, desde o nível de tomada de decisão até o nível de execução.

(5) Claude Le Borgne, La guerre est morte… mais on ne le sait pas encore, Grasset, Paris, 1987, pg. 244.

No mais alto nível, isso significa que, longe das posturas ideológicas, o político deve cumprir o seu papel e todo o seu papel: diante das restrições, estabelecer um objetivo limitado e delimitado - “a melhor solução possível” e não a “melhor das soluções” - o que pressupõe escolhas e, portanto, necessariamente, renúncias. No nível intermediário, isso supõe ser capaz de operacionalizar a decisão integrando em uma estrutura interministerial permanente - como um estado-maior ou célula de crise - os especialistas e tomadores de decisão em cada um dos campos. Finalmente, no terreno, é preciso favorecer combinações adaptadas a um certo aspecto de paz-guerra.

Como de costume, os americanos lideraram o caminho na inovação conceitual com a operação multi-domínio (multidomain operation). Pensado inicialmente como uma combinação melhor de armas combinadas e recursos conjuntos, esse modelo também incorpora contribuições não-militares "interagências", como guerra cibernética ou de informação. Além disso, raciocinando em um contexto qualificado como entre paz e guerra, a nova doutrina americana propõe criar ocasionalmente "janelas de vantagem" que se assemelhariam a uma forma de blitzkrieg modernizada. Haveria coordenação, para concentrar esforços que não necessariamente seriam militares. Tendo em vista as surpreendentes semelhanças de vocabulário, a “estratégia total” de Beaufre é, sem dúvida, menos classificada no raio das “abordagens globais”, das quais os últimos vinte anos demonstraram o único valor declaratório, mas deve ser considerada como uma prefiguração do que poderia ser uma variação verdadeiramente operacional. O alinhamento das ações com o objetivo de otimizar os seus efeitos deve ser feito em toda a cadeia de valor, desde a gestão de projetos (dobradiça político-estratégica) à gestão de projetos (dobradiça tático-operacional), passando pela gestão delegada de projetos (dobradiça estratégica-operacional).

A ampliação do espectro de áreas com probabilidade de participar da resolução de um problema tem a consequência, por mais que seja, de ver a estratégia menos como uma disciplina particular do que como uma mudança de opinião. Um exemplo flagrante de extrapolação é, sem dúvida, o uso que o general faz da estratégia em Construindo o Futuro (Bâtir l’avenir) (6). Em essência, o método de raciocínio estratégico está, na verdade, sempre em um leve "desequilíbrio para a frente", pois, se for esclarecido por experiências passadas, tende a traçar um curso que só ganha sentido à luz (retro) de um objetivo a alcançar. Para usar uma imagem cara a André Beaufre, é semelhante à navegação de alto mar, com seu rumo geral que materializa o ponto a ser alcançado e suas adaptações de vela ou leme levando a um ajuste do ponto de aterrissagem. De modo mais geral, despojado de seu traje bélico, o método estratégico assume valor universal e o pensador defende a aculturação daqueles que, encarregados dos negócios públicos, muitas vezes carecem de uma bússola para orientá-los. A estratégia provavelmente proporcionaria a eles uma lógica ou logotipos de escolha, tanto "meta-razão" quanto "meta-linguagem".

(6) André Beaufre, Bâtir l’avenir, Calmann-Levy, Paris, 1967.

Um sistema aberto, é dinâmico e plástico: dinâmico, pois é animado por círculos iterativos que visam atualizar os dados de entrada e re-estimar a "rota" seguida; plástico, porque tem de adaptar as suas ferramentas - os seus "modelos" - à realidade do mundo tal como acontece, e não o contrário. Portanto, precisa de regras e da capacidade de alterá-las. Tudo isso parece muito útil, mas - dirão alguns - "a arte do general" permanece indissoluvelmente marcada pelo pecado original. Qualificá-lo como "total" aumenta a confusão, pois, além da lamentável referência ao livro de Ludendorff (7), o adjetivo sugere que nada pode ser evitado. No entanto, se nada escapar ao império da estratégia, corre-se o risco de que esta suplante a política pretendida para capturá-la, que as ditaduras sul-americanas, elogiando o general francês, não deixarão de reter do modelo. Sem, entretanto, concluir que a relação de Clausewitz entre guerra e política foi revertida, haveria, portanto, em germe, um viés schmittiano na relação com o Outro.

(7) Erich Ludendorff, La guerre totale, Perrin, Paris, 2010.

O método levaria por construção a percebê-lo mais como adversário do que como parceiro. A observação é ouvida. Mas, para usar a fórmula de Léo Hamon, se a “estratégia é contra a guerra (8), ela é em ambos os sentidos da preposição: tanto “mais perto de” quanto “em oposição a”; tão intimamente ligada ao fato da guerra quanto pode, pelo contrário, circunscrevê-la. Mas Hamon, defendendo esta segunda interpretação, é o exegeta do pensamento de Beaufre: a estratégia é antes de mais nada o que permite evitar a guerra, em particular na era atômica.

(8) Léo Hamon, La stratégie contre la guerre, Grasset, Paris, 1966.

Num mundo "cinzento", onde a paz é tão temporária como imperfeita, tudo deve ser feito para otimizar os interesses do Estado, sem nunca ultrapassar o limiar do irreparável. A manobra em "tempo de paz" é o produto de uma "estratégia de dissuasão" que evita a eclosão de uma guerra total. Caso a dissuasão não tivesse funcionado, a estratégia - que nas próprias palavras de Beaufre passa a ser uma "estratégia de guerra" - é então o que permite defender-se, mas sempre à medida que é necessário, evitando, novamente, o risco de uma ascensão aos extremos. Sob a autoridade política à qual deve permanecer subordinada, a estratégia seria, portanto, em ambos os casos, um logos para encapsular a violência para evitar que ela saia do controle.


Qual dosagem?

Finalmente, a terceira proposta consiste em traduzir o remédio geral em dosagens que possam abranger um amplo espectro de enfermidades. Embora as armas nucleares desempenhem o papel de antibióticos (9), não são as únicas e seu efeito deve ser combinado com outros, como com qualquer coquetel de medicamentos. Beaufre não se interessa apenas por formas de guerra - clássicas e revolucionárias em particular - que parecem totalmente fora do escopo de prioridades no momento em que escrevo, mas considera suas interações tanto quanto suas combinações. O resultado é um modelo cujos recursos permitem responder a configurações de segurança muito mais variadas do que as da década de 1970. Tanto os antagonismos quanto as semelhanças entre os dois extremos do espectro levam, por exemplo, a refletir sobre as correspondências entre guerra "primitiva" e guerra tecnológica.

(9) André Beaufre, Bâtir l’avenir, op. cit., pg. 237.

De certa forma, o segundo exige o primeiro quando a lacuna de poder é muito grande. A guerra de tecno-guerrilha é uma forma de hibridismo que representa um problema para a maioria dos exércitos modernos, pois tende a combinar as vantagens de ambos os extremos, minimizando as desvantagens. De maneira mais geral, Beaufre nos diz, a combinação de guerra regular e guerra irregular não é nenhuma novidade: a guerra "quimicamente pura" é, se não um tipo ideal, pelo menos um caso especial. A realidade parece mais uma cartela colorida de dosagens, entre de um lado o grupo armado que tende a se "regularizar" - a grande guerrilha do Viet-Minh ou os batalhões do Daesh apoiados por armamento pesado - e o outro dos exércitos convencionais que cuidam do contrário ao adotar modos de ação irregulares. A guerra clássica não está tão morta quanto pensava o General Le Borgne (10): ela permanece o camaleão descrito por Clausewitz, cada um dos beligerantes buscando encontrar a vantagem comparativa que lhe permitirá ganhar a ascendência.

(10) Claude Le Borgne, La guerre est morte… mais on ne le sait pas encore, op. cit.

Essa plasticidade das composições é um elemento marcante na obra de Beaufre: assim, ao descrever as forças convencionais francesas, cujo pequeno volume muito provavelmente não permitiria que ocupassem efetivamente o campo de batalha da Europa Central, ele pensa em reforçá-las com unidades "populares", capazes de atuar na retaguarda e nos intervalos. Também planeja equipá-las com armas nucleares táticas, cujo efeito dissuasor seria suficiente para evitar uma grande ofensiva e cujo uso seria uma solução para o dilema vivido por exércitos altamente tecnologizados, mas muito pequenos em tamanho. Por fim, a "crioulização" afeta também a sacrossanta "dissuasão" à francesa, cuja pureza é apresentada como garantia de eficácia pelos mais ortodoxos de seus defensores. Enquanto os últimos - principalmente os galeses - acreditam que a onipotência nuclear francesa desqualifica qualquer forma de agressão (11), Beaufre continua a considerar a ameaça em seu espectro mais amplo.

(11) Pierre Marie Gallois, L’adieu aux armées, Albin Michel, Paris, 1976.

Para enfrentá-lo, ele propõe o que é então semelhante a uma heresia para os inquilinos do dogma: uma dupla ampliação do conceito de dissuasão: ampliação “horizontal” no sentido de que articula a existência da força de ataque francesa à participação num sistema de alianças; alargamento “vertical”, uma vez que a dissuasão nuclear é apoiada pela dissuasão convencional, ela própria transportada pela chamada dissuasão “popular”. No primeiro caso, a conferência de Ottawa em 1974 reconheceu a contribuição francesa para a dissuasão global da OTAN; na segunda, o estudo do nível "popular" levou o estrategista a pensar na resiliência da nação, a propor uma reforma do serviço nacional e a descrever o que poderia ser uma "guarda nacional". A atualidade desde então provou que ele estava certo (Guarda Nacional desde 2015, projeto SNU desde 2017...) até o último discurso sobre a defesa do Presidente da República, em 7 de fevereiro (12), que defende duas inflexões da sacrossanta doutrina de dissuasão: o seu lugar na defesa da Europa e a sua articulação com o nível convencional… Fermez le ban!

(12) Discurso do Presidente da República, Emmanuel Macron, em 7 de fevereiro de 2020 na Academia Militar.

Hervé Pierre, coronel do Exército Francês e co-autor do livro O General Beaufre: Retratos cruzados (Le général Beaufre. Portraits croisés).

Bibliografia recomendada:

Introdução à Estratégia.
André Beaufre.

Leitura recomendada:


VÍDEO: As Osttruppen eram apenas bucha de canhão?

Uma discussão sobre o uso dos batalhões orientais (Ost-Bataillone), compostos de russos, ucranianos, russos brancos etc, e legiões orientais (Ostlegionen), formadas por nacionalidades minoritárias apoiadas pelos alemães, tais como georgianos, armênios, cossacos ou azerbaijanos.

Bibliografia recomendada:

Hitler's Russian & Cossack Allies 1941-45.
Nigel Thomas PhD e Johnny Shumate.


Leitura recomendada:

FOTO: Soldado russo da Wehrmacht, 31 de outubro de 2020.

A Medalha da Carne congelada, 26 de dezembro de 2020.

Os mitos do Ostfront, 2 de novembro de 2020.

David Galula e a teoria da contra-insurgência: um livro para ler

Pelo General François Chauvancy, Theatrum Belli, 11 de agosto de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 12 de fevereiro de 2021.

Combina a análise do contexto histórico da contra-insurgência, as reflexões sobre a insurgência e a contra-insurgência de ontem e hoje sem descartar a luta contra o islamismo radical, a grave criminalidade que ameaça as democracias pela desestruturação do Estado que ela organiza, enfim a contratação de um oficial francês por assimilação, assunto tão interessante no contexto atual de nossa sociedade.

O apoio dado pelo General americano Petraeus ao conhecimento do pensamento de David Galula está presente em grande parte por meio desta obra (Cf. também minhas postagens de 21 de outubro de 2012, "Os novos centuriões: um documento sobre o General Petraeus" e do 13 Setembro de 2011 “Quais lições militares dez anos após 11 de setembro?”).

O autor, Driss Ghali, marroquino, com muitos diplomas franceses, residente no Brasil - o que é uma pena porque não poderá apresentar suas reflexões diante de nossos tomadores de decisão militares e políticos - traz uma visão sintética da contra-insurgência percebida tanto por David Galula como também pela ligação que o autor estabelece entre a Guerra da Argélia e os conflitos contemporâneos. Lutar contra uma rebelião ou insurreição tornou-se o destino comum dos combates militares de nossas democracias ocidentais ontem na Ásia, hoje no Oriente Médio e na África.

Publicado pela Éditions Complicités em maio de 2019, este livro analisa o pensamento de David Galula, um esquecido teórico militar francês e então (um tanto) destacado por nossos conflitos contemporâneos, primeiro no Afeganistão e pelo general americano Petraeus.

Reflexões sobre o desenvolvimento do pensamento militar e sua disseminação

O autor nos leva a uma viagem pela história recente da França, com uma visão equilibrada das estratégias de cada um, a meu ver e valorizando com razão a assimilação que tanto trouxe à França. Esta obra fascinante revela a vida pouco conhecida de um judeu nascido na Tunísia em 1919, que se tornou francês por sua família em 1924, um oficial de Saint-Cyr em 1938 que não negou a França em 1941 apesar dela tê-lo rejeitado* (mas pelo Exército que o reintegrou em 1943), atípico, com uma rica carreira operacional.

*Nota do Tradutor: Galula graduou-se na École spéciale militaire de Saint-Cyr com a promoção número 126 de 1939-1940. Em 1941, foi expulso da oficialidade francesa, de acordo com o Estatuto dos Judeus do Estado de Vichy. Depois de viver como civil no Norte da África, ingressou no I Corpo do Exército de Libertação e serviu durante a libertação da França, sendo ferido durante a invasão da ilha de Elba em junho de 1944.

Este jovem oficial, por um tempo um espião a serviço da França quando foi removido do Exército, foi designado para o adido militar francês em Pequim de 1945 a 1947. Ele aprendeu mandarim lá (embora nunca tenha aprendido árabe), e foi feito prisioneiro pelos comunistas chineses. Lá ele descobriu a teoria da guerra revolucionária de Mao. Não será menos ferozmente anticomunista. Após uma breve estada na Europa, foi nomeado adido militar em Hong Kong de 1949 a 1956, antes de se juntar voluntariamente à Argélia em 1956 para comandar uma companhia do 45º Batalhão de Infantaria Colonial.

Seus escritos não apareceram até que ele ingressou na vida civil nos Estados Unidos e por seu encontro com Henry Kissinger em 1964. No entanto, notemos, como para outros antes e depois dele, as reflexões que saem da estrutura tradicional não fazem escola a menos sejam apoiadas ao longo do tempo por uma autoridade que impõe o desenvolvimento desse pensamento. Afinal, o General Poirier, na época tenente-coronel, não poderia contribuir para o desenvolvimento da estratégia de dissuasão nuclear se não fosse por que De Gaulle o protegia da alta hierarquia militar. O desenvolvimento de um pensamento original está sujeito à permanência desse apoio e isso é cada vez menos o caso, dado o relativamente pouco tempo gasto no cargo, particularmente com oficiais militares.

Além disso, como Driss Ghali nos lembra, a burocracia, ou seja, o funcionamento hierárquico, é hostil a qualquer inovação que possa perturbar seu funcionamento lubrificado e bem estabelecido e, portanto, ao seu questionamento, primeiro intelectual, depois tecnológico e organizacional. O exército nisso não é diferente de outras organizações. Só a derrota pode forçá-lo a mudar.

D. Galula conseguiu, no entanto, interessar parcialmente os seus líderes, comunicando os seus pensamentos. Mas ainda hoje é possível a um capitão ou comandante enviar um briefing sobre um problema, diretamente a um chefe do Estado-Maior das Forças Armadas ou a um chefe do Estado-Maior do Exército? Fora da hierarquia? Não tenho certeza a princípio porque a humildade inerente a ser um oficial é um lembrete de que o conhecimento geralmente é adquirido pelo posto. No entanto, Galula finalmente teve a sorte de ser empregado fora da hierarquia e acima do nível normal de responsabilidade do seu posto. Então, a irritação potencial de elementos da cadeia hierárquica, sempre existirá. Resta a publicação de livros ou artigos em revistas especializadas, mas é eficaz? Apenas o "zumbido" pode chamar a atenção do leitor hoje!

As reflexões suscitadas por este trabalho

De que adianta uma insurgência senão a retirada, por propaganda e terror, de todo apoio a um governo legal, tornando-o ilegítimo e indefensável? Quando nem a população, nem a administração, incluindo sua polícia, não querem mais proteger as instituições, o Estado desmorona. Não é isso que ameaça a França hoje, é claro, com diferentes "insurgentes" e com vários objetivos, incluindo extrema esquerda, extrema direita, islâmicos, irmãos muçulmanos, até coletes amarelos...

Além disso, falta um termo para qualificar os inimigos da República para não colocá-los em uma denominação que os valorize. A noção de "rebelde contra a República" poderia ser de seu interesse. Obriga-nos a definir o que a comunidade nacional pode ou não aceitar em nome da sua necessária coesão. Um "rebelde" é, por definição, oposto à autoridade que deve ser claramente estabelecida e afirmada. “Um rebelde contra a República” é aquele que se opõe ao nosso sistema político, às nossas instituições, à nossa sociedade, senão à nossa cultura, às nossas tradições, à nossa história. Neste caso, o cursor do que é aceitável em uma democracia se desloca para mais rigor e autoridade do que para liberdades sem contrapartida, causando caos, nosso enfraquecimento, e a falta de proteção dos cidadãos em muitas áreas.

Os conflitos de ontem e de hoje evocados com equilíbrio neste livro levam naturalmente a algumas conclusões. Em relação ao conflito argelino que o exército francês venceu (Mas o que fazer com uma vitória militar se não conseguirmos concluir a paz? Problema ainda não resolvido), entendo melhor a atitude anti-francesa da FLN no poder hoje. A FLN perdeu sua guerra militar e seu exército, no cerne do poder, não pode admitir esse estado de coisas. 50 anos depois, é óbvio o fracasso político de um governo que capitalizou essa farsa de uma vitória inglória. Na verdade, o reconhecimento de qualquer arrependimento francês significaria o de uma vitória militar da FLN que nunca aconteceu e que "legitimaria" o papel de predadores destes "combatentes pela independência".

O território nacional já não está imune à ação de movimentos que visam a desestabilização do Estado, possivelmente por ações armadas e terroristas, sejam esses movimentos com fins políticos como os extremistas essencialmente de esquerda, os mais determinados e experientes, com fins religiosos com o Islã político dos irmãos muçulmanos dando a ilusão de perseguir objetivos diferentes do islamismo radical do Daesh ou da Al-Qaeda, possivelmente para fins criminosos ou mafiosos. O exemplo da América do Sul, seja no Brasil ou no México, deve nos fazer refletir sobre esse peso do crime. Proteger e capacitar os cidadãos a viverem da maneira mais decente possível continua sendo uma missão fundamental que D. Galula e seus sucessores, para quem a compreendeu, nos ensinam (Cf. Minha postagem de 27 de abril de 2014, “Os comandos aéreos e a contra-insurgência na Argélia” e o papel de cerca de 750 SAS* que ajudaram o desenvolvimento da Argélia rural e de mais de um milhão de argelinos). Quando a administração é deficiente, os militares podem cumprir parte dessa função.

*NT: As sections administratives spécialisées (SAS) foram unidades militares francesas responsáveis por "pacificar" setores, promovendo a "Argélia Francesa" durante a Guerra da Argélia, servindo de assistência educacional, social e médica às populações rurais muçulmanas para conquistá-las ideologicamente para a causa da França.

No entanto, pertencer a uma causa é sem dúvida a parte mais importante da guerra de contra-insurgência. Não é o meio mais importante, mas sim homens motivados que farão a diferença. A guerra de informação está no centro das ações de contra-insurgência ontem e hoje. O que conta em particular é essa história comum que faz as pessoas concordarem, mas também combate os equívocos. De acordo com a mídia dominante e o discurso político, qualquer opinião é respeitável em nome dos valores democráticos. O tempo de escolha, entretanto, é agora necessário para um forte compromisso pelo menos dentro do Estado. Isso deve ser eficaz e inspirar confiança nos cidadãos. Todo mundo tem seu lugar. No entanto, os últimos acontecimentos na França mostraram uma desconfiança crescente e agressiva contra o Estado e dúvidas no seio das administrações.

No entanto, pensar na contra-insurgência e seus modos de ação não significa abandonar as forças armadas de alta intensidade. O inimigo convencional ainda existe, certamente não em nossas fronteiras, mas futuros engajamentos como parte de uma coalizão contra as novas potências mundiais devem ser considerados. Além disso, o combate de alta intensidade força a reflexão e o desenvolvimento de novos equipamentos, para administrar a complexidade do mundo moderno ao contrário da contra-insurgência que é uma guerra entre populações, com uma abordagem intercultural, social, econômica e informacional. A alta tecnologia proporcionada pelos armamentos convencionais permite a destruição do inimigo inclusive na contra-insurgência certamente dando a imagem do uso de um martelo para esmagar uma mosca, portanto a um custo significativo, mas com baixas perdas para nós.

Para concluir

Por fim, seja em território nacional ou no exterior, “proteger a população” garante a vitória sobre qualquer rebelião ou eventual insurreição contra a República, ameaças hoje representadas por desvios populistas ou extremistas, políticos ou religiosos. Para Galula, ontem como hoje, “Protegemos primeiro, seduzimos depois”. Não se trata de conquistar corações e mentes primeiro, mas criar as condições para que isso seja possível. Isso começa naturalmente com uma afirmação real da autoridade do Estado e de seus representantes.

O General François Chauvancy é Saint-cyrien, brevetado pela Escola de Guerra, doutor em ciências da informação e da comunicação (CELSA), titular do terceiro ciclo de relações internacionais pela faculdade de Direito de Sceaux, General (2S) François CHAUVANCY serviu no Exército nas unidades blindadas das tropas navais. Ele deixou o serviço ativo em 2014. Ele é um especialista em questões de doutrina sobre o emprego de forças, em funções relacionadas ao treinamento de exércitos estrangeiros, contra-insurgência e operações de informação. Nessa qualidade, foi o responsável nacional da França para a OTAN nos grupos de trabalho em comunicação estratégica, operações de informação e operações psicológicas de 2005 a 2012.

Bibliografia recomendada:

Guerra Irregular: Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história.

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