sábado, 29 de agosto de 2020

GALERIA: Os fuzis AK-74M da Síria

Por Stijn Mitzer e Joost OliemansOryx, 19 de fevereiro de 2015.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 29 de agosto de 2020.

Da Rússia com amor...

O AK-74M lentamente ganhou seu lugar como o fuzil de assalto mais popular atualmente em uso com as várias facções que lutam pelo controle da Síria. Embora originalmente adquirido apenas em pequenas quantidades pela Síria, as entregas recentes garantiram uma presença sólida deste fuzil no país dilacerado pela guerra. O AK-74M não é popular apenas com as forças do Exército Árabe Sírio e da Guarda Republicana - leais a Assad -, mas também com vários outros grupos que lutam pelo controle do país.

A Síria adquiriu seu primeiro lote de fuzis AK-74M no final dos anos 90, embora em números muito pequenos. Acredita-se que esse primeiro lote tenha sido parte de um acordo fechado com a Rússia em 1996, que renovaria a cooperação militar e tecnológica com a Rússia após esta ter diminuído devido ao colapso da União Soviética.


O acordo previa a entrega de uma ampla seleção de armas portáteis, mísseis anti-carro, equipamentos de visão noturna e munição para armamentos já em uso pela Síria. Incluídos no pacote estavam um grande número de carabinas AKS-74U, um número menor de fuzis AK-74M, lança-rojões RPG-29, granadas PG-7VR para o RPG-7, mas também mísseis guiados anti-carro Konkurs 9M113M (ATGM) e até mesmo mísseis anti-carro lançados de canhões Bastion 9M117M para uso pela Síria, para os então recentemente atualizados T-55MV.

Desentendimentos sobre a insistência da Síria em preços mais baixos e esquemas de pagamento estendidos para compras futuras e sua dívida com a Rússia levaram ao fracasso de um relacionamento aprofundado entre os dois países. No entanto, grande parte do armamento encomendado finalmente chegou à Síria.

O programa também viu a fabricação de dois tipos de "novos" padrões de camuflagem, ambos cópias exatas do padrão de camuflagem florestal americana M81 Woodland, que também é usado por combatentes do Hezbollah. Além disso, um grande número de coletes à prova de balas e capacetes foram encomendados e entregues da China, e um número limitado de dispositivos de visão noturna para forças especiais foram recebidos de uma fonte desconhecida. O soldado visto abaixo descreve como seria a aparência do produto final. Observe que seu AK-74M vem equipado com uma mira a laser noturna Alpha-7115 e um lança-granadas GP-30M acoplado.


As relações entre Damasco e Moscou são muito antigas, se intensificando com o golpe de estado sírio de fevereiro de 1996, sendo sucedido por um novo golpe de estado em 13 de novembro de 1970, denominado Movimento Corretivo. Este levou o General Hafez al-Assad (o pai do atual ditador) ao poder na Síria, alinhando Damasco com a União Soviética ainda mais. Russo passou a ser ensinado como segunda língua nessa época e milhares de oficiais militares e profissionais qualificados sírios estudaram na Rússia. Em 1971, por meio de um acordo bilateral, a União Soviética teve permissão para abrir sua base militar naval em Tartus, dando à União Soviética uma presença estável no Oriente Médio. Esta base permanece como a única instalação naval da Rússia na região do Mediterrâneo e a única instalação militar restante fora da ex-União Soviética.

Em outubro de 1980, a Síria e a União Soviética assinaram um Tratado de Amizade e Cooperação de vinte anos.



A primeira aparição pública do AK-74M foi em 2000, quando foi flagrado sendo carregado por um guarda em frente à sede da Frente Progressista Nacional (NPF) em Damasco. Este AK-74M pertencia ao primeiro lote e, juntamente com as AKS-74U, foram distribuídos principalmente para unidades especiais e militares guardando locais de alto valor. A quantidade de fuzis AK-74M ainda era muito pequena para permitir uma distribuição mais ampla.

A segunda tentativa de adquirir fuzis AK-74M (em uma escala mais ambiciosa desta vez) ocorreu nos anos que antecederam a Guerra Civil Síria, iniciada em 2011. O Exército Árabe Sírio (SAA) lançou um ambicioso programa de modernização com o objetivo de melhorar a proteção e o poder de fogo de uma parte da sua força de infantaria durante esse período.

General-de-Brigada Nur-Ali Shushtari, da Guarda Revolucionária Iraniana, com um fuzil KH-2002 Khaybar durante uma demonstração.

O SAA testou dois fuzis de assalto como parte deste programa de soldado do futuro em 2008, o AK-74M e o iraniano KH-2002 "Khaybar", calibrados em 5,45x39mm e 5,56x45mm, respectivamente. Para tanto, a Organização das Indústrias de Defesa Iranianas (IDIO ou DIO) enviou dez fuzis KH-2002, um modelo bullpup, junto com vários representantes para a Síria. Todos, exceto dois dos dez KH-2002s, tiveram travamentos durante os testes, resultando em uma risada do lado sírio às custas dos envergonhados representantes iranianos. Sem surpresa, o AK-74M foi, portanto, declarado o vencedor da competição.

Depois que o interesse do Uruguai no KH-2002 também desapareceu, o programa foi cancelado em 2012. O fracasso em atrair encomendas de exportação e a falta de interesse do exército iraniano em comprar o fuzil condenou uma das poucas tentativas sérias de projetar e produzir um fuzil de assalto indígena no Irã.


A Rússia continua a provar que é uma apoiadora leal e confiável do regime de Assad, e a Guerra Civil evidentemente não serve como impedimento para que a Rússia continue entregando todo tipo de material, desde armas portáteis a tanques, vários lançadores de foguetes e até peças de reposição para a Força Aérea Árabe Síria (SyAAF). Para surpresa de ninguém, vários lotes grandes de fuzis AK-74M também encontraram seu caminho a bordo dos navios de desembarque da classe Ropucha da Marinha Russa entregues à Síria nos últimos anos.

Assim que chegaram à Síria, esses lotes permitiram uma ampla distribuição do AK-74M dentro do Exército Árabe Sírio e, em menor grau, na Guarda Republicana. A Força de Defesa Nacional (NDF) ainda tem que se contentar com os velhos AK-47, Tipo-56 e AKM, embora armas de fogo ocidentais ou outros AK adquiridos através do mercado negro no Líbano também estejam disponíveis.

A 104ª Brigada da Guarda Republicana, então sob o comando do Brigadeiro General Issam Zahreddine, recebeu um lote considerável de fuzis AK-74M e AKS-74U ao partir para Deir ez-Zor para enfrentar os combatentes do Estado Islâmico.

O General Issam Jad'aan Zahreddine testando um lança-granadas acoplado em um AK-74M.

O General Issam Zahreddine, "O Leão da Guarda Republicana", posando ao lado do seu guarda-costas Saqr al-Harath. O general era uma celebridade entre os combatentes pró-Assad até sua morte aos 56 anos, quando sua viatura detonou uma mina em Hawija Saqr, próximo a Deir Ezzor, em 18 de outubro de 2017.

O Estado Islâmico é o maior operador de AK-74M dos grupos que lutam pelo controle da Síria. Surpreendentemente, e ao contrário do fluxo normal de armas que vê principalmente fuzis M16 e carabinas M4 capturados transferidos do Iraque para a Síria, vários AK-74M também acabaram nas mãos de combatentes do Estado Islâmico no Iraque.

O AK-74M em si é uma variante modernizada do AK-74, e entrou em produção em 1991. Ele não apenas oferece mais versatilidade em comparação com o AK-74, mas também é mais leve e apresenta uma nova coronha sintética dobrável rebatível. Isso se opõe aos AKS e AKMS anteriores, que usam a típica coronha dobrável para baixo.


Vários tipos de miras ópticas russas podem ser instaladas no AK-74M para garantir um direcionamento mais preciso. Essas miras são instaladas no trilho de montagem padrão no lado esquerdo da caixa da culatra (receptor). Na Síria, os AK-74M equipados com essas miras são mais comuns do que os AK-74M que usam a mira de ferro padrão. A quantidade de miras ópticas e lança-granadas acoplados recebidos pela Síria nos últimos anos foi grande o suficiente para permitir a instalação em vários AK-47, Type-56 e AKM.

Vários AK-74M também foram equipados com miras de visão noturna NSPU. Apenas um número limitado de tais miras está disponível na Síria, e eles viram uso esporádico ao longo da Guerra Civil.


O AK-74M também pode ser equipado com um lança-granadas de 40mm, dois tipos dos quais foram adquiridos pelo Exército Árabe Sírio até o momento: o GP-25 e o GP-30M. O primeiro destina-se ao uso em fuzis de geração mais antiga, enquanto o GP-30M foi projetado para fuzis de assalto mais modernos, como o AK-74M ou o AK-103. O GP-30M pode engajar alvos em um alcance de 100m a 400m e é capaz de disparar granadas de fragmentação e granadas de fumaça. É apontado por meio de uma mira de quadrante.

O AK-74M é um fuzil temido e amado nos campos de batalha da Síria e que certamente continuará a desempenhar um grande papel no curso da guerra, agora que a paz parece cada vez mais distante.

Bibliografia recomendada:

The AK-47:
Kalashnikov-series assault rifles.
Gordon L. Rottman.

Arabs at War:
Military Effectiveness, 1948-1991.
Kenneth M. Pollack.

Estado Islâmico:
Desvendando o exército do terror.
Michael Weiss e Hassan Hassan.

Leitura recomendada:

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COMENTÁRIO: Quando se está no deserto...


Pelo Tenente-Coronel Michel Goya, La Voie de l'Épée, 24 de agosto de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 28 de agosto de 2020.

Às vezes, imaginamos que nossas operações no exterior seguem grandes projetos e planos bem elaborados com objetivos estratégicos de longo prazo claros. Nada está mais longe da verdade.

Na verdade, agimos, ou mais frequentemente, reagimos simplesmente porque o Presidente da República decidiu que algo tinha que ser feito, geralmente muito rapidamente, para responder, a pedido: um grito de socorro de um chefe de Estado ligado à França, uma forte emoção veiculada pela mídia ou a pedido dos Estados Unidos, muito mais raramente da União Européia. Trata-se sobretudo da imagem que o presidente quer dar de si e / ou da França como "en être" ("ser"), pesar em coalizão, agradar a..., justificar nosso assento permanente no Conselho de Segurança etc. Tudo isso conta mais do que o que você realmente deseja alcançar no terreno, o famoso "estado final desejado" que os militares exigem sem que seja frequentemente satisfeito. No nível político, "fazer" muitas vezes já é um fim em si mesmo e a imprecisão do "por que" é liberdade de ação. Quanto ao horizonte de tempo, raramente ultrapassa um ano, dois ou três no máximo.

Patrulha francesa no Vale de Uzbin, no Afeganistão.

Na prática, então, engajamo-nos e aí vemos, persuadidos em 80% de que o assunto será encerrado rapidamente. Lembremo-nos do Ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian, no início de dezembro de 2013, anunciando um engajamento na República Centro-Africana por seis meses, e depois criticando os “autoproclamados especialistas” que apontaram que estava lá sem dúvida, uma previsão um pouco otimista. Esta operação, Sangaris, finalmente terminará três anos depois. Um erro de fator seis é bastante comum.

O erro de previsão é de fato comum, principalmente quando neste nível de decisão não sabemos a complexidade da região na qual intervimos. Concentrados no problema atual, esquecemos cada vez mais que em torno dele também podem acontecer coisas muito importantes, uma crise econômica, a Primavera Árabe, o colapso de um Estado vizinho em nossa área de atuação, alguma crise séria qualquer que seja no Leste Europeu, um grande ataque terrorista em nosso solo, uma pandemia, etc. Muitas coisas externas, na verdade, vão mudar a situação local. É verdade que raramente estamos interessados ​​em eventos de baixa probabilidade, mesmo que sejam possíveis grandes choques e quando imaginamos sistematicamente que estaremos deixando um teatro de operações no próximo ano, estamos convencidos de que seu ambiente não terá tempo para se mover.

Combatentes da GIA durante a Guerra Civil Argelina (1991-2002).

Em suma, sempre anunciamos algo rápido buscando no curso da ação o fim que justificará que este será curto. Nossa atual campanha militar no Sahel não é exceção. Pequeno passo para trás. Tudo começou em 2008 quando nosso inimigo local, a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (Al-Qaida au Maghreb islamique, AQIM), ex-Grupo Salafista para a Pregação e Combate (Groupe salafiste pour la prédication et le Combat, GSPC) e, em parte, o ex-Grupo Islâmico Armado (Groupe Islamiste Armé, GIA) que planejava esmagar um avião comercial em Paris, e ataques organizados e assassinatos de franceses na França e na Argélia, decide trazer a luta contra nós para o Sahel. A AQIM era então baseada no norte do Mali, a zona cega da região em uma aceitação mais ou menos tácita de Argel e Bamako, desde que a organização visasse os outros. Na região, a AQIM assassina e, especialmente, sequestra cidadãos europeus e, em particular, franceses.

A tendência geral da França, então, é claramente para o abandono militar da África, a fim de voltar os olhos mais promissores para as monarquias do Golfo. No entanto, uma exceção foi feita para enfrentar a AQIM ao decidir reforçar a guerra secreta do DGSE* por um dispositivo do Comando de Operações Especiais (Commandement des opérations spéciales, COS), cujo ex-comandante é o chefe de gabinete privado do presidente Sarkozy. Esta campanha discreta inclui primeiro um componente de ajuda e reforço dos exércitos locais, a Mauritânia aceita e dará as boas-vindas enquanto o Mali se recusa. Em 2010, um pequeno grupo de forças especiais, Sabre, foi destacado para Burkina Faso para uma ação direta contra a AQIM.O dispositivo é leve e discreto. Parece adaptado ao contexto. Com a aproximação da eleição presidencial, provavelmente esperamos ter resultados decisivos, libertando concretamente o maior número possível de reféns, nos próximos dois anos, e tanto quanto possível para prejudicar a AQIM.

*Nota do Tradutor: Direction générale de la sécurité extérieure (DGSE), a Direção Geral da Segurança Exterior, o serviço secreto francês. Sucessor do antigo Serviço de Documentação Exterior e de Contra-Espionagem (Service de documentation extérieure et de contre-espionnage, SDECE) da Guerra Fria, e conhecido coloquialmente como "2e Bureau".

Ato pró-Assad em Damasco, capital da Síria, durante a Primavera Árabe, 28 de novembro de 2011.

E então as coisas mudam muito rapidamente desde o final de 2011 em grande parte devido a, voltamos a isso, turbulências do ambiente e não particularmente à Primavera Árabe. O principal fenômeno, então, é o rápido aumento do poder dos grupos armados, que, coincidentemente, estão se desenvolvendo especialmente no norte do Mali. Podemos ver tanto a volta do movimento nacionalista tuaregue, quanto um retorno ao significado original desde o fim do regime do coronel Kadafi, com a criação do Movimento Nacional pela Libertação de Azawad (Mouvement national de libération de l’Azawad, MNLA) e a formação de organizações jihadistas que recrutaram mais localmente do que os argelinos da AQIM, como o Movimento pela Unicidade e Jihad na África Ocidental (Mouvement pour l’unicité et le jihad en Afrique de l’Ouest, MUJAO) ou Ansar Dine. Essas pessoas não são psicopatas vindos do planeta Marte, são movimentos políticos com um estabelecimento necessariamente local, muitas vezes seguindo o padrão daquele estado, e um exército de voluntários que se juntam às fileiras por múltiplas razões. E enquanto elas existirem, essas razões fornecerão voluntários.

Eles também não são superpotências militares. Cada uma dessas organizações tem pouco mais de mil combatentes permanentes, mas diante do vácuo, pouco já é muito. Cada uma das katibas* desses grupos, colunas PKMR (Pick-up, Kalashnikovs, Metralhadoras, RPG-7) de cerca de 200 combatentes bastante motivados, competentes e adaptados ao ambiente, possui vários níveis táticos de lacuna em tudo que as Forças Armadas Malinenses (Forces Armées MaliennesFAMa) podem alinhar do lado oposto. Ou seja, cada luta será automaticamente uma derrota, às vezes contundente, para as FAMa. O Mali, seu estado paralisado e corrupto, seu exército logicamente no mesmo estado, estão, portanto, em uma posição extremamente vulnerável. Pior, o estado do Mali está sofrendo de "inércia consciente". Ele vê os problemas, mas o esforço para lidar com eles é muito grande. Assim, ele observa a catástrofe acontecer, mas não pode se mover para evitá-la.

*NT: Uma katiba é uma formação tradicional da África do norte e Sahel, geralmente uma formação ligeira valor companhia, com uma centena de homens, ou pelotão - com 30 homens - variando em número e composição. Seu nome ficou famoso na Guerra da Argélia por ser a unidade de base da ALN (o braço armado da FLN), e foi adotado pelos grupos insurrecionais magrebinos. O nome Katiba também serviu de título para o romance de Jean-Christophe Rufin, de 2010, em referência à AQMI.

Katiba.
De Jean-Christophe Rufin, 400 páginas, 2010.

A esta altura, poderíamos ter feito algo, nós franceses? Somos então monopolizados pela eleição presidencial e pela corrida entre os candidatos para acelerar a retirada do Afeganistão. Depois das experiências do Iraque e do Afeganistão, a tendência não é mais para as intervenções. Para os europeus que são por natureza cautelosos com as operações militares, o tempo para grandes intervenções, mesmo as mais brandas, acabou, elas não se repetirão. Para os europeus menos cautelosos, leia-se os britânicos, os danos diretos ou indiretos dessas experiências deixaram sua ferramenta militar em um estado ainda pior do que o nosso. Mesmo os americanos estão mais hesitantes sob a presidência de Obama. Não foi bem compreendido na época, mas somos os últimos entre os países ocidentais a não sermos inibidos por experiências recentes. Pelo contrário, guerrear e lutar, depois do Afeganistão, não são mais palavras ruins.

No período recente, em 2012, quando nosso contingente afegão se retirava (sem seus intérpretes), estávamos no escuro. Ninguém nas fileiras imaginava que estaríamos envolvidos em uma operação de guerra de curto prazo em grande escala. Nosso inimigo no momento era o Bercy e para economizar nossos orçamentos, estávamos até começando a falar, com horror, em envolvimento com a segurança interna. A figura imposta das apresentações em PowerPoint da época era a evocação do importante papel do exército japonês na gestão do desastre do tsunami de Fukushima. E então tudo muda.

O Mali começa a explodir no início de 2012. Ato 1, o MNLA, às vezes auxiliado por outros grupos armados, expulsa as FAMa do norte do país e proclama a independência de Azawad. Ato 2, o desastre desencadeia um golpe de Estado que paralisa as instituições por meses. Ato 3 grupos jihadistas expulsam o MNLA e dividem o norte do país, que se torna, antes mesmo do retorno em vigor do Estado Islâmico no Iraque, um primeiro proto e lamentável estado controlado e administrado por jihadistas. E aí percebemos que não há quem realmente se oponha... exceto a França, mas há também o dilema africano: intervimos, somos acusados de intrusão neocolonial; não intervimos, somos acusados de não prestar assistência a um país amigo em perigo. Portanto, estamos relutantes. A solução que surge então é necessariamente africana com o restabelecimento das instituições do Mali sob a égide da CEDEAO*. A CEDEAO também vai formar uma força inter-africana, a Missão Internacional de Apoio ao Mali sob Liderança Africana (Mission internationale de soutien au Mali sous conduite africaine, MISMA), para ajudar as FAMa a restaurar a autoridade do Estado em todo o país. Veremos que é muito superficial, mas parece consistente. O recém-eleito presidente Hollande afirma que a França apoiará a MISMA e as FAMa. Portanto, de volta ao antigo modo de ação de apoio e suporte, como a Operação Noroit em Ruanda ou Manta-Épervier no Chade. Isso funciona se o nível tático das forças apoiadas não estiver muito longe daquele das forças inimigas. Este raramente é o caso.

*NT: Communauté économique des États de l'Afrique de l'Ouest, Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental.

Soldados malinenses, armados e equipados de forma semelhante aos jihadistas, durante a Operação Serval, 2013.

O problema é que a solução da CEDEAO não funciona bem. A MISMA, como todas as forças inter-africanas, leva muito tempo para se estabelecer. Como todas as coalizões, leva muito tempo para discutir a participação de uns e outros, especialmente porque não existe uma “nação-quadro” para fazer 80% do trabalho. Precisamos de alguns equipamentos específicos, para transporte e comando em particular, e acima de tudo um financiamento suficiente que só pode vir de fora, o que pode levar anos. Além disso, fica claro, em retrospecto, que a MISMA foi malfeita e que o plano não teria dado certo.

Todas essas dificuldades para gerar forças são tão recorrentes que eram previsíveis em 2012. Ainda assim, continuamos e, à força da espera, é o inimigo que ataca primeiro.

Em janeiro de 2013, a MISMA ainda não estava lá, o exército malinense não fez nenhum progresso e não consideramos/desejamos/pudemos posicionar um batalhão francês em pontos-chave no centro do país. Portanto, não há nada sólido e a coluna PKMR de Ansar Dine rumo ao sul está destinada a penetrá-lo como manteiga doce e semear a desordem.

Soldados malinense e francês na Operação Serval, 2013.

É o pânico. O presidente interino Dioncounda Traoré pede ajuda diretamente a François Hollande. O Presidente da República aceita e de repente nos reconectamos com tudo o que foi nossa força nas operações das décadas de 1960 e 1970: rápido processo decisório estratégico, proximidade de forças pré-posicionadas, reatividade de forças em alerta e, sobretudo, tomadas de risco e combate assumidas.

É claro que, embora a ajuda dos Aliados com o transporte aéreo, uma de nossas fraquezas recorrentes, seja inestimável, nenhum deles está se juntando a nós na linha de frente. Os países da UE não estão combatendo e, para muitos, não estão interessados na África. No local, empregamos diplomaticamente à frente as FAMa, depois os batalhões africanos da MISMA que chegam com urgência, mas na realidade são os franceses que vão para o camarote, com o corajoso contingente chadiano.

As forças francesas com as forças africanas e as forças armadas do Mali continuam a controlar o anel do Níger e a consolidar o sistema militar nas cidades de Timbuktu e Gao com a instalação de vários elementos da MISMA e das FAMa. Enquanto os ataques aéreos continuam ao norte de Kidal, o exército chadiano entrou na cidade para protegê-la.

Uma coluna das Forças Armadas do Chade servindo no Mali (Forces armées tchadiennes en intervention au Mali, FATIM), em algum lugar entre Kidal e Tessalit. Esses homens desempenharam um papel fundamental na guerra contra a AQMI.

Em três meses, as batalhas mais importantes foram vencidas, todas as cidades foram libertadas e a base da AQIM destruída. É modelo do gênero. No entanto, o inimigo não é destruído, mas sobretudo expulso. No máximo, eliminamos 20% do potencial dos grupos jihadistas, preservando os grupos tuaregues que se mantiveram discretos e até nos ajudaram contra os jihadistas. Foi bom na época, mas gerou críticas depois.

Esta campanha acabou, mas a guerra continua. O que fazer? Poderíamos sair do Mali e voltar à postura ligeira anterior, mesmo que isso signifique fortalecer a nossa capacidade de intervenção regional no caso de um novo problema grave. Escolhemos ficar no Mali, para “unir forças” com as eleições presidenciais do Mali em agosto de 2013, da qual esperávamos muito, depois “a sucessão”.

É uma ilusão. Não medimos (poderíamos, no entanto, não faltaram os alertas) o grau de "inércia consciente" do Mali, depois do vizinho Burkina Faso. Quanto à sucessão, como imaginar que o exército malinense se tornasse subitamente eficaz e legítimo graças aos cursos de formação da missão da União Europeia (European Union Training Mission in MaliEUTM)? Sejamos sérios. Um exército é um conjunto que certamente inclui a aquisição de competências básicas, mas também é uma adaptação ao ambiente de engajamento, equilíbrios, recrutamento, supervisão, gestão de carreira, etc. É impossível separar o funcionamento de um exército do Estado que o emprega. Desde 2013, a EUTM treinou ou retreinou mais de 14.000 soldados malinenses, várias vezes o que grupos irregulares podem formar no total na região. Por qual resultado? Nunca deixamos de ficar espantados (mas não surpreendidos) pela indignação do Almirante Guillaud, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da época, quando um oficial francês da EUTM mencionou a superficialidade da sua missão.

Almirante Édouard Guillaud, Chefe do Estado-Maior dos Exércitos Franceses, discursando na Place de la République em Estrasburgo, em 28 de junho de 2013, durante a mudança de comando no Eurocorps entre os generais Olivier de Bavinchove e Guy Buchsenschmidt.

Plano B: a Missão de Estabilização Multidimensional Integrada das Nações Unidas no Mali (Mission multidimensionnelle intégrée des Nations unies pour la stabilisation au Mali, MINUSMA). Tanto para os meios que são desdobrados com bastante rapidez. As nações voluntárias são sempre numerosas para participar dessas operações em que as Nações Unidas pagam por tudo. Efetivamente, existe o financiamento de um milhão de euros para desdobrar uma força multinacional que acaba por incluir 13.000 soldados, o que é mais uma vez várias vezes o número de combatentes irregulares em linha no Mali. Laurent Fabius, Ministro das Relações Exteriores, falou sobre isso com trêmulos na voz. Ele não sabia, portanto, que a MINUSMA, como todas as missões das Nações Unidas, não teria muita utilidade a um custo muito alto, uma vez que seria incapaz de organizar qualquer operação militar? Pior, a MINUSMA era tão fraca que pedia ajuda aos franceses contra os grupos armados. Como uma sucessão, é um fracasso.

Plano C: a força conjunta do G5-Sahel. Em si, é uma boa ideia criar um estado-maior comum e, a montante, uma escola de guerra comum em Nouakchott, capaz de comandar operações do tamanho de uma brigada. Mas foi só em 2017 que essa força foi oficialmente criada e, três anos depois, ainda está muito pouco operacional, pelos mesmos motivos mencionados acima para o MISMA.

Soldado chadiano e operador das forças especiais franceses em um posto de controle no Mali. As forças especiais francesas estabeleceram 7 destacamentos de ligação e apoio (détachements de liaison et d’appui, DLA) no seio de batalhões africanos da MINUSMA.

Nada que não fosse previsível em tudo isso, mas decidimos ficar no Mali e esperar. Estávamos mesmo tão confiantes de que no final de 2013 nos engajávamos também em uma operação de estabilização na República Centro-Africana (os seis meses descritos acima) que está se revelando mais difícil do que pensávamos, então mais alguns meses mais tarde no Iraque para estar na foto da nova coalizão americana. Poucos meses depois, no início de 2015, 10.000 soldados foram engajados nas ruas da França sem grande visão. Em todo caso, mostrar que estávamos fazendo supera, no espírito do político, a utilidade do fazer. Empilhamos sem nunca saber como retirar. O lado bom é que embora o contexto estratégico não tenha mudado de forma alguma (estava escrito em todos os lugares que um dia haveria ataques na França, pouco antes da linha sobre possíveis pandemias), a política de Defesa muda em tudo.


Obviamente, à força de meios reduzidos de dispersão, não sobra muito para o que tende a se tornar um deserto dos tártaros. Já que você não pode mudar muito a realidade, você começa mudando seu nome. A Barkhane substitui a Serval, mas é apenas uma questão de colocar racionalmente todas as forças da região sob um comando. Para fazer o quê? É fácil quando você tem apenas um martelo como ferramenta, você apenas bate. Além de raides e ataques, a Barkhane bate e espera. Ao custo de perder um soldado a cada dois meses em média e ao custo de um milhão de euros por combatente inimigo eliminado, espera-se depois de sete anos que o Mali deixe de ser inerte, que uma verdadeira força venha sabe-se lá de onde se proponha a nos suceder ou que uma mudança extraordinária remexa tudo de cabeça pra baixo. Com um pouco de sorte, pode nos ser favorável imaginar uma nova aventura em um ano e se ela durar mais tempo, será que teremos caído de novo em uma armadilha ainda previsível.

Michel Goya, tenente-coronel e editor do Centro de Doutrina de Emprego de Forças (Exército), é responsável por fornecer feedback das operações francesas e estrangeiras na região da Ásia/Oriente Médio. Ele é o autor de La Chair et l'Acier (Paris, Tallandier, 2004), que se concentra no processo de evolução tática do exército francês durante a Primeira Guerra Mundial. Este livro foi traduzido como A Invenção da Guerra Moderna pela Bibliex. Goya também foi o autor do livro Sous le Feu: La mort comme hypothèse de travail (traduzido no Brasil como Sob Fogo: A morte como hipótese de trabalho).

Bibliografia recomendada:







Leitura recomendada:

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

O Exército Britânico pode cortar tanques antigos como parte dos planos de modernização

O tanque Challenger 2 não foi atualizado desde 1998.

Por Jonathan Beale, BBC, 25 de agosto de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 28 de agosto de 2020.

A nação que inventou o tanque está prestes a abandoná-lo?


O tanque Challenger 2 do exército britânico já está velho. Em 2019, a então secretária de defesa, Penny Mordaunt, chegou a sugerir que era obsoleto. Ela observou: "O Challenger 2 está em serviço sem grandes atualizações desde 1998. Durante esse tempo, os EUA, Alemanha e Dinamarca concluíram duas grandes atualizações, enquanto a Rússia colocou em serviço cinco novos variantes, com um sexto pendente."

Avaliações de defesa anteriores também viram o número de tanques sendo cortados de mais de 500. Teoricamente, o Exército ainda tem 227 tanques Challenger 2. Mas, na realidade, apenas cerca de metade deles não está em armazenamento e pronta para ser desdobrada. O Exército tem buscado uma série de opções para modernizar sua frota de tanques por quase uma década. Eles incluem a compra de tanques alemães Leopard 2 ou a modernização do Challenger 2 com uma nova torre e canhão.

Mas oficiais graduados do Exército também confirmaram à BBC que recentemente estiveram considerando se poderiam passar totalmente sem eles. Embora eliminá-los também possa ser uma opção, não faz sentido armazenar tanques antigos - a menos que sejam para um museu.

Em 2018, o então Secretário de Defesa Gavin Williamson foi fotografado em um Challenger 2.

Uma mudança de pensamento foi destacada pelo chefe do Exército, General Sir Mark Carlton Smith. Em um discurso recente, ele sugeriu que a ameaça do tanque estava diminuindo na guerra moderna. Ele disse: "A principal ameaça são menos mísseis e tanques. É o armamento daqueles elementos da globalização que até agora nos tornaram prósperos e seguros, como a mobilidade de mercadorias, pessoas, dados e ideias."

Os chefes da defesa falaram em investir em novas "capacidades do amanhecer", como a guerra cibernética e eletrônica, e reduzir as "capacidades do ocaso", sem especificar o que isso pode incluir. O Secretário de Defesa, Ben Wallace, também destacou as mudanças adiante. Ele prometeu investir mais nos domínios do espaço e cibernéticos e em novos sistemas não-tripulados em terra, mar e ar. Sem um aumento significativo nos gastos com defesa, isso exigirá o descarte de equipamentos obsoletos para investir nos novos.

Uma opção seria modernizar a torre e o canhão do Challenger 2.

Uma combinação de pouco investimento, má gestão e longas campanhas de contra-insurgência no Iraque e no Afeganistão deixou o Exército com um excesso de equipamentos envelhecidos. Atualmente, ele possui 15 tipos diferentes de veículos blindados em serviço, alguns perto do fim de sua vida útil. Um programa para modernizar os veículos blindados 700 Warrior do Exército sofreu sérios excedentes de custos e atrasos.

O Reino Unido também não conseguiu acompanhar os avanços na artilharia, defesa antimísseis e poder de fogo. O Dr. Jack Watling, do Royal United Services Institute, um think tank de defesa, diz que agora enfrenta uma escolha dura entre modernizar seus blindados ou priorizar o poder de fogo e mobilidade. Ele diz que "[o Exército] não pode se dar ao luxo de fazer as duas coisas".

A Grã-Bretanha não seria o primeiro país a abandonar o tanque. O exército holandês quase desistiu dos seus blindados pesados, embora mantenha um pequeno número de tanques e tenha soldados embutidos nas unidades blindadas alemãs. O Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA também está se afastando do tanque, pois concentra-se na mobilidade. A movimentação de tanques em todo o mundo, até mesmo na Europa, requer transporte e apoio logístico consideráveis. Mas, no caso da América, o Exército dos Estados Unidos ainda estará investindo em blindados pesados.

Soldados fizeram uma tentativa de estabelecer um novo recorde mundial ao puxar um tanque de batalha Challenger 2.

A realidade é que, apesar das mudanças percebidas na guerra, as principais potências militares ainda estão investindo pesadamente em blindados pesados. Michael Clarke, professor de estudos de defesa no King's College London, observa: "A ênfase no heavy metal das forças militares é vista como uma réplica do pensamento antigo em uma era que está desaparecendo rapidamente para todos - exceto para a superpotência".

Se o Exército abandonasse o tanque, teria que tranquilizar seus aliados de que estaria investindo em outra parte na defesa. Um aliado particularmente importante pode ter grandes preocupações. Quando os porta-aviões foram abandonados em 2010, o então secretário de defesa dos Estados Unidos, Robert Gates, concluiu que o Reino Unido não era mais uma potência militar de "nível um" porque não tinha um "espectro completo de capacidades".

Embora os tanques possam estar saindo, a Marinha Real tem planos ambiciosos para dois novos porta-aviões.

As revisões da defesa levam inevitavelmente a especulações sobre cortes nas forças armadas e seu equipamento. O governo prometeu que desta vez será diferente. Downing Street descreveu a recém-nomeada Revisão Integrada de Defesa e Segurança como a revisão de política mais abrangente desde o fim da Guerra Fria. Mas, como nas análises anteriores, os ministros e chefes da defesa ainda enfrentam pressões financeiras significativas e precisam descobrir o que podem pagar.

Não se trata apenas de tanques sendo examinados, mas dos tipos e números de navios de guerra e aeronaves e do tamanho total das forças armadas. Essa especulação se intensificará à medida que a revisão chegar a uma conclusão no final deste outono. No final, a decisão de sucatear os tanques será uma decisão política, não militar.

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A resposta da Rússia à crise da Bielo-Rússia: possíveis lições da Abkházia

Por Neil Hauer, Riddle, 27 de agosto de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 27 de agosto de 2020.

O país que mais chama a atenção no mundo pós-soviético atualmente é a Bielo-Rússia. Tudo começou com a descarada falsificação da eleição que relatou uma vitória de 81% para o titular de 26 anos Alexander Lukashenko. Então, protestos em uma escala muito superior a qualquer coisa na história da independência da Bielo-Rússia varreram o país. No momento em que este artigo foi escrito, não está claro se ou quando os protestos em massa da Bielo-Rússia terão sucesso. Dito isso, é perfeitamente possível que estejamos assistindo a uma revolução se desenrolar em um lugar que até recentemente parecia ser um candidato improvável.

Com a história se desenrolando a cada dia e sem indicações claras do que pode vir a seguir, muitos buscaram precedentes semelhantes para tentar traçar o possível curso dos eventos na Bielo-Rússia. Outros estão procurando paralelos para avaliar a reação do seu vizinho: a Rússia. A maioria das sugestões envolve os protestos de Maidan em 2014 na Ucrânia, que tiraram Viktor Yanukovich do poder. Ou a ‘Revolução de Veludo’ da Armênia em 2018, que viu Serzh Sargsyan ser derrubado em questão de dias. Existem alguns paralelos úteis a serem considerados em ambos. No entanto, há outro ex-território soviético que poderia ser mais instrutivo na compreensão da possível resposta da Rússia: a separatista República da Abkházia.

Situada na costa nordeste do Mar Negro, a Abkházia e seus cerca de 150.000 habitantes vivem em um estado de limbo desde que se separaram da Geórgia (da qual permanece de jure uma parte) após a conclusão da guerra entre os dois em 1993. É ainda mais dependente da Rússia do que a Bielo-Rússia: cerca de metade do orçamento do governo da Abkházia vem na forma de subsídios russos. O turismo (a grande maioria proveniente da Rússia, cujos cidadãos podem entrar na Abkházia sem passaporte estrangeiro) representa até 35% do seu PIB. As forças armadas russas controlam efetivamente a Abkházia, cujos serviços de segurança locais são amplamente subordinados aos seus homólogos russos. No entanto, a Abkházia, assim como a Bielo-Rússia (cuja efêmera independência pós-Primeira Guerra Mundial foi encerrada pelo Exército Vermelho), tem uma relação histórica complicada com a Rússia. Quando o território foi finalmente subjugado pelo Império Russo na década de 1870, mais da metade de sua população foi forçada ao exílio no Império Otomano, fato cuja ressonância é atestada pelo nome do principal calçadão à beira-mar de Sukhum, Naberezhnaya Mukhadzhirov (da palavra árabe muhajir, que significa 'migrante'). Como a Bielo-Rússia, a Abkházia não se considera um mero apêndice de seu patrono: a sociedade e as elites da Abkházia têm ambições de verdadeira independência, um status que vai contra a preferência do Kremlin por uma satrapia quiescente.

A história política contemporânea da Abkházia também é tudo, menos uma autocracia pró-Rússia estável, como se pode imaginar. Enquanto seu primeiro presidente, o herói de guerra Vladislav Ardzinba, governou relativamente sem oposição por quase uma década, as eleições nacionais de 2004 terminaram em uma grande crise política. O vencedor esperado era Raul Khajimba, um ex-agente da KGB e sucessor escolhido de Ardzinba que também teve o forte apoio da Rússia, incluindo Putin pessoalmente. O principal candidato da oposição, Sergei Bagapsh, no entanto, saiu com 50,08% dos votos, o suficiente para uma vitória absoluta sem a necessidade de um segundo turno. Apesar dos esforços de Ardzinba e outros para pressionar o Comitê Eleitoral Central Abkhaz a anular o resultado, Bagapsh reuniu uma multidão de 10.000 apoiadores (em uma cidade de talvez 50.000) que invadiram o parlamento e insistiram em sua vitória. Eventualmente, um acordo chegou para realizar novas eleições com Khajimba concorrendo na mesma chapa que Bagapsh - mas como vice-presidente. Apesar do aviso de um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia de que a Rússia pode ser “forçada a tomar as medidas necessárias para proteger seus interesses”, Moscou não interveio.

O estado não reconhecido desde então cambaleou de uma crise política para a outra. Pouco depois do reconhecimento da independência da Abkházia pela Rússia em agosto de 2008, Bagapsh foi severamente criticado por assinar vários acordos concedendo às empresas russas privilégios muito maiores na república. Embora isso não o tenha impedido de derrotar Khajimba novamente na eleição de 2009. Bagapsh morreu no cargo em 2011. Seu sucessor, Alexander Ankvab, foi expulso do poder em uma agitação civil em massa em 2014, apesar dos esforços do principal assessor de Putin, Vladislav Surkov, para mediar pessoalmente a disputa. Khajimba, há muito o candidato preferido de Moscou, finalmente assumiu o poder neste momento. Tudo até que ele também foi forçado a deixar o cargo por protestos públicos em massa sobre a polêmica eleição presidencial de 2019.

A reação da Rússia a tudo isso foi mais moderada do que se poderia imaginar. Apesar de estar situada na fronteira sul da Rússia e com muito menos obstáculos à intervenção direta do que na Bielo-Rússia, Moscou nunca impôs à força seu candidato político preferido. Isso contrasta fortemente com, digamos, a Ossétia do Sul, outro estado separatista apoiado pela Rússia na Geórgia. Lá, as autoridades russas intervieram na política de forma mais direta. Mais notavelmente em 2011, quando a vitória do primeiro turno nas eleições presidenciais de Alla Dzhioeva, um político da oposição que criticava o papel da Rússia no território, foi anulada pela Suprema Corte da Ossétia do Sul e Dzhioeva impedido de concorrer novamente em um movimento apoiado pelo Kremlin. Isso pode ser parcialmente explicado pela posição geográfica da Ossétia do Sul (localizada quase no coração da Geórgia, tornando-a um local de base mais crucial para as tropas russas) e orientação política, com a adesão à Federação Russa um objetivo declarado das autoridades da Ossétia do Sul. Apesar disso, o atual governo da Abkházia tem sido capaz de traçar uma abordagem muito mais conciliatória com a Geórgia do que seus antecessores, ou mesmo a própria Rússia, que ainda não derrubou a proibição de vôos para a Geórgia imposta na sequência de protestos anti-russos em Tbilisi no verão passado. O atual presidente, Aslan Bzhania, funcionou em uma plataforma explicitamente pró-diálogo (com a Geórgia). Sua nova escolha para chefe do Conselho de Segurança da Abkházia enfatizou seu apoio a negociações renovadas. Nada disso ainda encontrou críticas abertas do Kremlin.

Nesse sentido, é possível imaginar paralelos entre o que ocorreu na Abkházia nesta primavera e o que está acontecendo na Bielo-Rússia agora. Moscou sabe que ambos os estados estão intrinsecamente ligados à Rússia, uma conexão determinada por fatores econômicos e geografia simples a tal ponto que é quase impossível imaginar qualquer um dos estados adotando uma postura anti-russa, não importa a aparência do atual governo. Claro, os possíveis paralelos entre a Abkházia e a Bielo-Rússia só vão até certo ponto; mas a turbulenta história política da Abkházia mostra que Moscou está disposta a tolerar a mudança de regime resultante da agitação cívica e uma aparência de pluralidade política em suas fronteiras, mesmo em estados satélites estreitamente alinhados. As esperanças de Lukashenko de apelar aos desejos de "estabilidade" do Kremlin a todo custo, então, podem não ser tão bem fundamentadas quanto parecem.

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