domingo, 20 de março de 2022

A Doutrina Putin

O presidente russo, Vladimir Putin, em uma cerimônia diplomática em Moscou, em dezembro de 2021.
(Sputnik Photo Agency / Reuters)

Por Angela Stent, Foreign Affairs, 27 de janeiro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 20 de março de 2022.

Uma jogada na Ucrânia sempre foi parte do plano.

[Este artigo foi escrito antes da invasão de 24 de fevereiro]

A atual crise entre a Rússia e a Ucrânia é um acerto de contas que está sendo elaborado há 30 anos. É muito mais do que a Ucrânia e sua possível adesão à OTAN. É sobre o futuro da ordem europeia criada após o colapso da União Soviética. Durante a década de 1990, os Estados Unidos e seus aliados projetaram uma arquitetura de segurança euro-atlântica na qual a Rússia não tinha nenhum compromisso ou participação clara, e desde que o presidente russo Vladimir Putin chegou ao poder, a Rússia vem desafiando esse sistema. Putin reclamou rotineiramente que a ordem global ignora as preocupações de segurança da Rússia e exigiu que o Ocidente reconheça o direito de Moscou a uma esfera de interesses privilegiados no espaço pós-soviético. Ele organizou incursões em Estados vizinhos, como a Geórgia, que saíram da órbita da Rússia para impedir que se reorientassem totalmente.

Putin agora levou essa abordagem um passo adiante. Ele está ameaçando uma invasão muito mais abrangente da Ucrânia do que a anexação da Crimeia e a intervenção no Donbas que a Rússia realizou em 2014, uma invasão que prejudicaria a ordem atual e potencialmente reafirmaria a preeminência da Rússia no que ele insiste ser seu “legítimo” lugar no continente europeu e nos assuntos mundiais. Ele vê isso como um bom momento para agir. Em sua opinião, os Estados Unidos são fracos, divididos e menos capazes de buscar uma política externa coerente. Suas décadas no cargo o tornaram mais cínico sobre o poder de permanência dos Estados Unidos. Putin está agora lidando com seu quinto presidente dos EUA e passou a ver Washington como um interlocutor não confiável. O novo governo alemão ainda está encontrando seus pés políticos, a Europa como um todo está focada em seus desafios domésticos e o mercado de energia apertado dá à Rússia mais influência sobre o continente. O Kremlin acredita que pode contar com o apoio de Pequim, assim como a China apoiou a Rússia depois que o Ocidente tentou isolá-la em 2014.

Putin ainda pode decidir não invadir. Mas, quer ele faça ou não, o comportamento do presidente russo está sendo impulsionado por um conjunto interligado de princípios de política externa que sugerem que Moscou será disruptivo nos próximos anos. Chame isso de “doutrina Putin”. O elemento central dessa doutrina é fazer com que o Ocidente trate a Rússia como se fosse a União Soviética, uma potência a ser respeitada e temida, com direitos especiais em sua vizinhança e voz em todos os assuntos internacionais sérios. A doutrina sustenta que apenas alguns Estados devem ter esse tipo de autoridade, juntamente com soberania completa, e que outros devem se curvar aos seus desejos. Implica defender regimes autoritários em vigor e minar democracias. E a doutrina está ligada ao objetivo abrangente de Putin: reverter as consequências do colapso soviético, dividir a aliança transatlântica e renegociar o assentamento geográfico que encerrou a Guerra Fria.

Explosão do passado

A Rússia, de acordo com Putin, tem direito absoluto a um assento à mesa em todas as principais decisões internacionais. O Ocidente deve reconhecer que a Rússia pertence ao conselho de administração global. Depois do que Putin retrata como a humilhação da década de 1990, quando uma Rússia muito enfraquecida foi forçada a aderir a uma agenda definida pelos Estados Unidos e seus aliados europeus, ele alcançou amplamente esse objetivo. Embora Moscou tenha sido expulsa do G-8 após a anexação da Crimeia, seu veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas e seu papel como superpotência energética, nuclear e geográfica garantem que o resto do mundo leve em consideração suas opiniões. A Rússia reconstruiu com sucesso suas forças armadas após a guerra de 2008 com a Geórgia, e agora é a potência militar regional proeminente, com a capacidade de projetar poder globalmente. A capacidade de Moscou de ameaçar seus vizinhos permite forçar o Ocidente à mesa de negociações, como ficou tão evidente nas últimas semanas.


No que diz respeito a Putin, o uso da força é perfeitamente apropriado se a Rússia acredita que sua segurança está ameaçada: os interesses da Rússia são tão legítimos quanto os do Ocidente, e Putin afirma que os Estados Unidos e a Europa os desconsideraram. Na maior parte, os Estados Unidos e a Europa rejeitaram a narrativa de queixa do Kremlin, que se concentra principalmente na dissolução da União Soviética e especialmente na separação da Ucrânia da Rússia. Quando Putin descreveu o colapso soviético como uma “grande catástrofe geopolítica do século XX”, ele lamentava o fato de 25 milhões de russos se encontrarem fora da Rússia e criticava particularmente o fato de 12 milhões de russos se encontrarem no novo Estado ucraniano. Como ele escreveu em um tratado de 5.000 palavras publicado no verão passado e intitulado “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”, em 1991, “as pessoas se viram no exterior da noite para o dia, levadas, desta vez, de sua pátria histórica”. Seu ensaio foi recentemente distribuído às tropas russas.

Em um ensaio no ano passado, Putin escreveu que a Ucrânia estava sendo transformada em “um trampolim contra a Rússia”.

Essa narrativa de perda para o Ocidente está ligada a uma obsessão particular de Putin: a ideia de que a OTAN, não contente em apenas admitir ou ajudar Estados pós-soviéticos, pode ameaçar a própria Rússia. O Kremlin insiste que essa preocupação se baseia em preocupações reais. Afinal, a Rússia foi repetidamente invadida pelo Ocidente. No século XX, foi invadida por forças aliadas anti-bolcheviques, incluindo algumas dos Estados Unidos, durante sua guerra civil de 1917 a 1922. A Alemanha invadiu duas vezes, levando à perda de 26 milhões de cidadãos soviéticos na Segunda Guerra Mundial. Putin vinculou explicitamente essa história às preocupações atuais da Rússia sobre a infraestrutura da OTAN que se aproxima das fronteiras da Rússia e as demandas resultantes de Moscou por garantias de segurança.

Hoje, no entanto, a Rússia é uma superpotência nuclear brandindo novos mísseis hipersônicos. Nenhum país – muito menos seus vizinhos menores e mais fracos – tem qualquer intenção de invadir a Rússia. De fato, os vizinhos do país a oeste têm uma narrativa diferente e enfatizam sua vulnerabilidade ao longo dos séculos à invasão da Rússia. Os Estados Unidos também nunca atacariam, embora Putin os tenha acusado de tentar “cortar um pedaço suculento de nossa torta”. No entanto, a auto-percepção histórica da vulnerabilidade da Rússia repercute na população do país. A mídia controlada pelo governo está repleta de alegações de que a Ucrânia poderia ser uma plataforma de lançamento para a agressão da OTAN. De fato, em seu ensaio no ano passado, Putin escreveu que a Ucrânia estava sendo transformada em “um trampolim contra a Rússia”.

Putin também acredita que a Rússia tem direito absoluto a uma esfera de interesses privilegiados no espaço pós-soviético. Isso significa que seus antigos vizinhos soviéticos não devem aderir a nenhuma aliança considerada hostil a Moscou, particularmente a OTAN ou a União Européia. Putin deixou essa exigência clara nos dois tratados propostos pelo Kremlin em 17 de dezembro, que exigem que a Ucrânia e outros países pós-soviéticos – bem como a Suécia e a Finlândia – se comprometam com a neutralidade permanente e evitem a adesão à OTAN. A OTAN também teria que recuar para sua postura militar de 1997, antes de sua primeira ampliação, removendo todas as tropas e equipamentos da Europa Central e Oriental. (Isso reduziria a presença militar da OTAN ao que era quando a União Soviética se desintegrou.) A Rússia também teria poder de veto sobre as escolhas de política externa de seus vizinhos não pertencentes à OTAN. Isso garantiria que os governos pró-Rússia estivessem no poder nos países que fazem fronteira com a Rússia – incluindo, principalmente, a Ucrânia.

Dividir e conquistar

Até agora, nenhum governo ocidental estava preparado para aceitar essas exigências extraordinárias. Os Estados Unidos e a Europa adotam amplamente a premissa de que as nações são livres para determinar seus sistemas domésticos e suas afiliações de política externa. De 1945 a 1989, a União Soviética negou a autodeterminação à Europa Central e Oriental e exerceu controle sobre as políticas doméstica e externa dos membros do Pacto de Varsóvia por meio de partidos comunistas locais, a polícia secreta e o Exército Vermelho. Quando um país se afastou demais do modelo soviético — Hungria em 1956 e Tchecoslováquia em 1968 — seus líderes foram depostos à força. O Pacto de Varsóvia foi uma aliança que teve um histórico único: invadiu apenas seus próprios membros.

Cidadãos alemães-orientais atirando pedras num tanque soviético durante a intervenção de 1953.

A interpretação moderna da soberania do Kremlin tem paralelos notáveis com a da União Soviética. Sustenta, parafraseando George Orwell, que alguns Estados são mais soberanos do que outros. Putin disse que apenas algumas grandes potências – Rússia, China, Índia e Estados Unidos – desfrutam de soberania absoluta, livres para escolher quais alianças aderir ou rejeitar. Países menores, como Ucrânia ou Geórgia, não são totalmente soberanos e devem respeitar as restrições da Rússia, assim como a América Central e a América do Sul, segundo Putin, devem atender seu grande vizinho do norte. A Rússia também não busca aliados no sentido ocidental da palavra, mas busca parcerias instrumentais e transacionais mutuamente benéficas com países, como a China, que não restringem a liberdade da Rússia de agir ou julgar sua política interna.

Tais parcerias autoritárias são um elemento da Doutrina Putin. O presidente apresenta a Rússia como defensora do status quo, defensora dos valores conservadores e um ator internacional que respeita os líderes estabelecidos, especialmente os autocratas. Como os eventos recentes na Bielorrússia e no Cazaquistão mostraram, a Rússia é o poder principal para apoiar governantes autoritários em apuros. Defendeu autocratas tanto em sua vizinhança quanto em muito além – inclusive em Cuba, Líbia, Síria e Venezuela. O Ocidente, de acordo com o Kremlin, apoia o caos e a mudança de regime, como aconteceu durante a guerra do Iraque em 2003 e a Primavera Árabe em 2011.

O Pacto de Varsóvia foi uma aliança que teve um histórico único: invadiu apenas seus próprios membros.

Mas em sua própria “esfera de interesses privilegiados”, a Rússia pode atuar como uma potência revisionista quando considera seus interesses ameaçados ou quando quer avançar em seus interesses, como demonstraram a anexação da Crimeia e as invasões da Geórgia e da Ucrânia. A tentativa da Rússia de ser reconhecida como líder e apoiadora de regimes de homens fortes tem sido cada vez mais bem-sucedida nos últimos anos, à medida que grupos mercenários apoiados pelo Kremlin agiram em nome da Rússia em muitas partes do mundo, como é o caso da Ucrânia.

A interferência revisionista de Moscou também não se limita ao que considera seu domínio privilegiado. Putin acredita que os interesses da Rússia são mais bem atendidos por uma aliança transatlântica fraturada. Assim, ele apoiou grupos antiamericanos e eurocéticos na Europa; apoiou movimentos populistas de esquerda e direita em ambos os lados do Atlântico; envolvidos em interferência eleitoral; e geralmente trabalhou para exacerbar a discórdia nas sociedades ocidentais. Um de seus principais objetivos é fazer com que os Estados Unidos se retirem da Europa. O presidente dos EUA, Donald Trump, desdenhou da aliança da OTAN e desdenhou alguns dos principais aliados europeus dos Estados Unidos – principalmente a então chanceler alemã Angela Merkel – e falou abertamente em retirar os Estados Unidos da organização. O governo do presidente dos EUA, Joe Biden, buscou assiduamente reparar a aliança e, de fato, a crise fabricada de Putin sobre a Ucrânia reforçou a unidade da aliança. Mas há dúvidas suficientes na Europa sobre a durabilidade do compromisso dos EUA após 2024 para que a Rússia tenha encontrado algum sucesso reforçando o ceticismo, principalmente por meio das mídias sociais.

Autoridades militares venezuelanas e russas.

O enfraquecimento da aliança transatlântica poderia abrir o caminho para Putin realizar seu objetivo final: abandonar a ordem internacional liberal e baseada em regras do pós-Guerra Fria promovida pela Europa, Japão e Estados Unidos em favor de uma ordem mais acessível à Rússia. Para Moscou, esse novo sistema pode se assemelhar ao concerto de poderes do século XIX. Também poderia se transformar em uma nova encarnação do sistema de Yalta, onde a Rússia, os Estados Unidos e agora a China dividem o mundo em esferas de influência tripolares. A crescente aproximação de Moscou com Pequim de fato reforçou o apelo da Rússia por uma ordem pós-Ocidente. Tanto a Rússia quanto a China exigem um novo sistema no qual exerçam mais influência em um mundo multipolar.

Os sistemas dos séculos XIX e XX reconheciam certas regras do jogo. Afinal, durante a Guerra Fria, os Estados Unidos e a União Soviética respeitavam principalmente as esferas de influência um do outro. As duas crises mais perigosas daquela época – o ultimato de Berlim em 1958 do primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev e a crise dos mísseis cubanos em 1962 – foram desarmadas antes do início do conflito militar. Mas se o presente é alguma indicação, parece que a “ordem” pós-Ocidente de Putin seria um mundo hobbesiano desordenado com poucas regras do jogo. Em busca de seu novo sistema, o modus operandi de Putin é manter o Ocidente desequilibrado, adivinhando suas verdadeiras intenções e depois surpreendendo quando ele age.

O recomeço russo

Dado o objetivo final de Putin, e dada sua crença de que agora é a hora de forçar o Ocidente a responder aos seus ultimatos, a Rússia pode ser dissuadida de lançar outra incursão militar na Ucrânia? Ninguém sabe o que Putin decidirá em última análise. Mas sua convicção de que o Ocidente ignorou o que ele considera os interesses legítimos da Rússia por três décadas continua a impulsionar suas ações. Ele está determinado a reafirmar o direito da Rússia de limitar as escolhas soberanas de seus vizinhos e ex-aliados do Pacto de Varsóvia e forçar o Ocidente a aceitar esses limites – seja pela diplomacia ou pela força militar.

Isso não significa que o Ocidente é impotente. Os Estados Unidos devem continuar a buscar diplomacia com a Rússia e buscar criar um modus vivendi que seja aceitável para ambos os lados sem comprometer a soberania de seus aliados e parceiros. Ao mesmo tempo, deve continuar coordenando com os europeus para responder e impor custos à Rússia. Mas está claro que, mesmo que a Europa evite a guerra, não há como voltar à situação anterior à Rússia começar a reunir suas tropas em março de 2021. O resultado final desta crise poderia ser a terceira reorganização da segurança euro-atlântica desde o final da década de 1940. A primeira veio com a consolidação do sistema de Yalta em dois blocos rivais na Europa após a Segunda Guerra Mundial. A segunda surgiu de 1989 a 1991, com o colapso do bloco comunista e depois da própria União Soviética, seguido pelo impulso subsequente do Ocidente para criar uma Europa “inteira e livre”. Putin agora desafia diretamente essa ordem com seus movimentos contra a Ucrânia.

Enquanto os Estados Unidos e seus aliados aguardam o próximo passo da Rússia e tentam deter uma invasão com diplomacia e a ameaça de pesadas sanções, eles precisam entender os motivos de Putin e o que eles anunciam. A crise atual é, em última análise, sobre a Rússia redesenhando o mapa pós-Guerra Fria e buscando reafirmar sua influência sobre metade da Europa, com base na afirmação de que está garantindo sua própria segurança. Pode ser possível evitar um conflito militar desta vez. Mas enquanto Putin permanecer no poder, sua doutrina também permanecerá.

Angela Stent é membro sênior não residente da Brookings Institution e ex-oficial de inteligência nacional dos EUA para a Rússia e a Eurásia. Ela é a autora do livro Putin's World: Russia Against the West and With the Rest.

Uzi começou como um menino que brincava com armas

Uzi Gal com a Uzi (esquerda) e a MP40.

Por Nati Gabbay, The Times of Israel, 4 de março de 2018.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 20 de março de 2022.

Enquanto estava preso em uma notória prisão britânica, esse jovem surgiu com o projeto de uma submetralhadora que ganharia popularidade em todo o mundo. Esta é a história inacreditável de Uzi Gal.

O inventor da submetralhadora homônima usada em todo o mundo teve uma paixão por armas de fogo ao longo da vida.

Quando jovem, ele pegou uma pistola para fazer experimentos e, quando preso em uma prisão britânica por contrabando de armas, inventou a submetralhadora que eventualmente armaria o mundo.

Uma menorá de Hanukkah feito de submetralhadoras Uzi antigas.
(
A Coleção Dan Hadani, 1979)

Esta é a história inacreditável de Uzi Gal.

Conheça Gotthard Glas, a criança com um hobby perigoso: armas.

Quando tinha dez anos, Gotthard Glas queimou a mão. Como? Ele decidiu ver uma uma espingarda velha de cano longo para reaproveitá-la como uma arma pessoal. É o que acontece quando a casa da família em que você cresceu em Munique está cheia de pistolas, espadas e outras armas antigas.

Soldado das FDI com sua Uzi.
(
A Coleção Dan Hadani, 1974)

De: “Submetralhadora Uzi: Planos de Aula”, que as FDI distribuiu aos comandantes em 1970.

Quando a criança se tornou adolescente morando no Kibutz Yagur, tendo se mudado em 1936 para a Palestina Obrigatória, sua grande paixão por armas voltou. Ouviu dizer que o professor de geografia da escola distrital possuía uma pequena pistola italiana de pólvora negra. Vendeu seu álbum de selos, comprou a arma e começou a trabalhar em seu sonho: transformá-la em uma máquina de guerra bem oleada.

Infelizmente, um professor da escola o pegou trabalhando na arma e seus planos foram frustrados mais uma vez. Glas não desistiu: aos 15 anos inventou um arco que dispara flechas automaticamente, uma “submetralhadora arco e flecha” se preferir.

Um soldado da IDF reza no Muro das Lamentações enquanto carrega uma Uzi.
(Yaacov Elbaz. A Coleção Dan Hadani na Biblioteca Nacional, 11 de junho de 1969)

Primeiro Ministro Yitzchak Shamir atirando com uma Uzi, 16 de dezembro de 1986.
(Nati Henrik, GPO)

Quando Glas se juntou à força de combate do Palmach do pré-Estado Yishuv, ele encontrou a ocupação perfeita: desenvolvimento de armas e gravação de armas. Assim como em seus dias de escola, ele foi pego mais uma vez – e condenado pelos britânicos a sete anos de prisão. Para sua alegria, foi perdoado depois de pouco mais de dois anos no Presídio de Acre. Adivinha o que ele fez para passar o tempo na cadeia: ele projetou uma submetralhadora.

Em 1949, ainda cadete no curso de formação de oficiais e depois de conhecer intimamente todas as armas que as FDI tinham para oferecer, o jovem, que entretanto se tornara Uziel Glas (e mais tarde seria conhecido pelo nome de Uzi Gal) escolheu escrever uma carta aos seus comandantes:

“Para: O Comandante da Escola de Oficiais, Tenente-Coronel Meir Zorea.

De: Cadete Uziel Glas 120946.

Data: 20 de outubro de 1949″

A longa carta contém uma descrição detalhada de seu sonho da submetralhadora perfeita.

Cinco anos e meio depois, em 27 de abril de 1955, na tradicional Parada do Dia da Independência das FDI, o exército apresentou a nova metralhadora, que tinha o nome Uzi. A propósito, Guthard/Uziel/Uzi Glas/Gal não queria que a submetralhadora levasse seu nome, mas a decisão estava fora de suas mãos.

Ministro da Defesa Itzhak Rabin com soldado das FDI.
(Danny lev, 
A Coleção Dan Hadani, 1989)

De: "Submetralhadora Uzi: Planos de aula", que as FDI distribuiu aos comandantes em 1970.

“Uma arma inovadora para as FDI”.
Artigo publicado no jornal “Zemanim”, 27 de abril de 1955.

Dentro de alguns anos, a Uzi não foi usada exclusivamente pelas FDI. Tornou-se um sucesso fenomenal em todo o mundo.

Todo o Estado de Israel encontrou esse jovem despretensioso quando ele recebeu a Menção do Chefe do Estado-Maior em 1955 e recebeu o “Prêmio de Segurança” de David Ben-Gurion.

Quando perguntado sobre sua invenção, ele simplesmente respondeu: “Cumpri meu dever no exército como um cozinheiro faz e simplesmente como todos os outros”.

A Uzi, a arma preferida de Chuck Norris!

Ao escrever o artigo, fiz uso do volume 17 de “IDF: Encyclopedia of Army and Security” (צה”ל בחילו – אנציקלופדיה לבא וביטחון), e do artigo de Eli Eshed “Sixty Years of the Uzi Submachine Gun”.

Sobre o autor:

Nati Gabbay é Diretora de Conteúdo Digital da Biblioteca Nacional de Israel.

Bibliografia recomendada:

The Uzi Submachine Gun.
Chris McNab.

Leitura recomendada:

GALERIA: A Uzi iraniana, 3 de março de 2020.

Por que a Turquia se preocupa com Mossul?

Um combatente curdo Peshmerga mira com a intenção de atirar durante uma batalha com militantes do Estado Islâmico na vila de Topzawa perto de Bashiqa, no Iraque, 24 de outubro de 2016.
(Reuters)

Por Kadir Ustun, Al-Jazeera, 24 de novembro de 2016.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 20 de novembro de 2022.

A Turquia está procurando proteger seus interesses econômicos e políticos no norte do Iraque enquanto luta contra o PKK e o Estado Islâmico.

Muitos comentaristas parecem perplexos com a disposição da Turquia de fazer parte da operação em andamento em Mossul.

Há uma série de interesses concretos que impulsionam a abordagem da Turquia: limitar a área de operações do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e sua ramificação síria, o YPG; apoiar as forças curdas Peshmerga contra o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL); proteger os turcomenos; prevenção e gestão de potenciais fluxos de refugiados; e ajudando Mosul a permanecer estável no período pós-EIIL.

A disputa entre Ancara e Bagdá parece emanar do desejo de Bagdá de reduzir a influência turca, sunita e curda em Mossul quando o EIIL for expulso da cidade.

O ex-primeiro-ministro turco Ahmet Davutoglu fala à Al-Jazeera.


Forças turcas no norte do Iraque

A presença militar turca no norte do Iraque, particularmente em Bashiqa, está diretamente ligada à rápida ascensão do Estado Islâmico no verão de 2014. A maioria dos observadores ficaram surpresos com o quão repentina e completa foi a queda de Mossul para o Estado Islâmico, e ficaram chocados com a captura rápida de grandes extensões de terra no Iraque e na Síria. Quando a cidade caiu nas mãos do EIIL, houve sérias preocupações por parte da comunidade internacional de que os militantes pudessem até marchar para Bagdá.

A Turquia há muito cultiva fortes laços econômicos e políticos com o Governo Regional Curdo (KRG), bem como com vários grupos sunitas e turcomanos no Iraque, o que a tornou uma das principais partes interessadas, especialmente no norte do Iraque. Amplos investimentos turcos na região foram diretamente ameaçados pela ascensão do EIIL.

Em junho de 2014, quando capturou Mossul e declarou seu “califado”, o EIIL sequestrou 49 funcionários diplomáticos turcos na cidade, incluindo o cônsul turco. Os esforços de resgate de meses impediram uma ação militar direta da Turquia contra o EIIL até que os reféns foram finalmente libertados em setembro de 2014.

Assim que liberou os reféns turcos, o ISIL cercou a pequena cidade de Kobane, na fronteira sírio-turca, levando novas ondas de refugiados para a Turquia. Em um ato de coordenação militar sem precedentes, a Turquia permitiu que as forças curdas Peshmerga viajassem por seu território para evitar a queda da cidade para o Estado Islâmico. Esta operação lançou as bases para uma cooperação militar mais profunda com o KRG no Iraque.

"A Turquia há muito mantém seu compromisso com a integridade e a unidade do Iraque, já que a possível divisão do país apenas aprofundaria os conflitos e pioraria as perspectivas humanitárias para a região. No entanto, dada a autonomia do KRG e o colapso do pacto político no país desde a invasão dos EUA, para alguns observadores, a integridade do Iraque é agora uma ficção."

Na época, a Turquia estava buscando um processo de reconciliação com o PKK, um esforço apoiado pelo presidente do KRG, Massoud Barzani. A Turquia há muito suspeitava das ambições do Partido da União Democrática (PYD), ligado ao PKK, de criar zonas autônomas de fato no norte da Síria e se opunha à ajuda militar dos EUA aos militantes do YPG.

Apesar das objeções turcas, os EUA continuaram a apoiar o YPG e fecharam os olhos para a criação de cantões autônomos de fato no norte da Síria. Isso continua sendo um ponto sensível nas relações EUA-Turquia, principalmente após o colapso do processo de reconciliação e a retomada dos combates entre a Turquia e o PKK em julho de 2015.

Dois interesses importantes

A recente Operação Escudo do Eufrates da Turquia na Síria visa afastar o EIIL de suas fronteiras e, ao mesmo tempo, frustrar as ambições do PYD de conectar seus cantões. Se o PYD o fizesse, criaria efetivamente um Estado do PKK ao longo da fronteira turca.

Portanto, a insistência da Turquia em sua presença militar em Mossul é guiada por um conjunto de interesses e postura militar semelhantes aos do norte da Síria.

Embora o PKK não tenha o tipo de recursos e legitimidade que o KRG desfruta, sua presença e esforços para ganhar legitimidade como baluarte contra o EIIL são uma grande preocupação para a Turquia. Assim, contrabalançar e limitar as atividades do PKK enquanto apoia o KRG são dois importantes interesses turcos no Iraque.

Carros M60A3 das 5ª e 20ª Brigadas Blindadas na fronteira com a Síria, abrindo fogo contra posições dos YPG, 2016.

A base de Bashiqa foi estabelecida como campo de treinamento militar em março de 2015 após a queda de Mossul e a decisão da Turquia de apoiar o KRG contra o ISIL. O ministro da Defesa turco, Ismet Yilmaz, visitou Bagdá e prometeu apoio ao exército iraquiano e às forças Peshmerga na forma de “equipamento e treinamento” para retomar Mossul do Estado Islâmico.

A Turquia sustenta há muito tempo que a base Bashiqa foi estabelecida com o conhecimento e a aprovação do governo iraquiano.

De fato, o ministro da Defesa iraquiano, Khaled al-Obaidi, é visto em um vídeo ao visitar o acampamento militar. Isso foi certamente em um momento em que o governo iraquiano se sentiu mais ameaçado por uma maior expansão do EIIL e procurou qualquer ajuda que pudesse obter.

Desde então, a coalizão internacional anti-EIIL – da qual a Turquia é membro – parece ter feito alguns progressos na luta contra o EIIL. Como resultado direto, Bagdá ficou mais confortável em sua postura e voltou a atacar a presença turca no norte do Iraque.

A mudança de postura de Bagdá em relação à Turquia

Em dezembro de 2015, o governo iraquiano deu à Turquia um ultimato para retirar suas forças militares de Bashiqa e ameaçou ir ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. A Turquia anunciou que nenhuma tropa adicional seria enviada, mas se recusou a retirar suas forças, uma decisão bem-vinda pelo KRG. Ancara assegurou a Bagdá que as tropas turcas estavam lá para treinar as forças locais Peshmerga contra o EIIL e respeitava a integridade territorial do Iraque.

A Batalha por Mossul: Bagdá e curdos em desacordo sobre o mapa pós-EIIL


Quando o prazo de Bagdá terminou sem a retirada turca, o primeiro-ministro iraquiano Haider al-Abadi pediu à OTAN que “use sua autoridade para instar a Turquia a se retirar imediatamente do território iraquiano”. Na época, a postura de Abadi contra a Turquia era provavelmente um reflexo da pressão russa sobre o Iraque após a derrubada de um jato russo pela Turquia em novembro de 2015.

Mais recentemente, em outubro de 2016, o primeiro-ministro iraquiano ameaçou novamente ir à ONU devido à presença de soldados turcos em Bashiqa, o que, segundo ele, constitui uma violação da soberania nacional iraquiana.

Suas palavras provocaram uma forte repreensão do presidente turco Recep Tayyip Erdogan, que reiterou a disposição da Turquia de lutar ativamente na iminente operação da coalizão para libertar Mossul. A Turquia prometeu ficar para apoiar a luta contra o ISIL em grande parte por causa de suas fortes relações com grupos árabes sunitas e turcomenos, bem como com o KRG.

Sob Nouri al-Maliki, o governo anterior de Bagdá havia seguido políticas sectárias. Essas políticas e numerosos massacres contra sunitas levaram ao colapso das relações sunitas-xiitas e a um aumento dramático nas tensões sectárias no país. A Turquia tem sido cautelosa com a repetição do mesmo cenário na operação em andamento em Mossul, bem como na Mossul pós-EIIL.

Combatentes do Peshmerga e do YPG em Kobane, 13 de fevereiro de 2015.

A Turquia há muito mantém seu compromisso com a integridade e a unidade do Iraque, já que a possível divisão do país apenas aprofundaria os conflitos e pioraria as perspectivas humanitárias para a região.

No entanto, dada a autonomia que o KRG goza e o colapso do pacto político no país desde a invasão dos EUA, para alguns observadores, a integridade do Iraque é agora uma ficção.

A Turquia está procurando proteger seus interesses econômicos e políticos em relação ao governo do KRG enquanto luta contra o PKK e o EIIL, que continuam a atacar a Turquia.

Em circunstâncias normais, a presença turca no Iraque provavelmente teria violado a soberania do país. Atualmente, porém, a disfunção e o colapso do sistema político iraquiano parecem ter tornado esse ponto discutível.

Kadir Ustun é o Diretor Executivo da Fundação SETA em Washington DC.

Leitura recomendada:





COMENTÁRIO: A Lição Curda, 30 de junho de 2021.

FOTO: Vickers destruído na China

Um Vickers Mark E Tipo B chinês destruído em Suzhou, perto de Xangai, em maio de 1938.

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 20 de março de 2022.

Esse Vickers destruído e abandonado é mais um dos muitos tanques usados pelos nacionalistas chineses durante a invasão japonesa iniciada em 1937. Outros veículos incluíram os Panzer I alemães, T-26 soviéticos, o velho Renault FT-17 francês, os tankettes CV-35 italianos e até mesmo carros anfíbios Vickers Carden Loyd.

Em 1935, o governo chinês comprou 20 tanques de torre única Vickers Mark E Tipo B, de um modelo padrão. No ano seguinte foram comprados mais 4, equipados com rádios Marconi G2A em nicho de torre (ao contrário do que se costuma repetir em publicações, não eram tanques Mark F, nem sequer tinham cascos Mark F, o que fica evidente nas fotos).

Vickers Mark E capturado pelos japoneses em Xangai, 22 de agosto de 1937.
A torre apresenta furos e antena de rádio.

Os tanques chineses Mark E foram distribuídos entre o 1º Batalhão Blindado em Xangai (3 tanques, com 29 tanques anfíbios VCL Modelo 1931) e o 2º Batalhão Blindado em Xangai (17 tanques Mk.E junto com 16 de outros modelos).  No total, essas unidades tinham 30 tanques cada – os outros 40 veículos eram quase certamente os outros tipos vendidos pela Vickers. Ambos os batalhões foram intensamente utilizados na luta contra os japonesas em Xangai, entre 13 de setembro e 9 de novembro de 1937. No entanto, os tanques foram empregados em combates urbanos e as tripulações chinesas eram mal-treinados, o que os levou a sofrer grandes perdas - cerca de metade dos tanques foram perdidos no total. Mesmo com as ruas às vezes estreitas de Xangai, todos os tanques Vickers vendidos para a China eram bastante pequenos e não teriam problemas em trafegar por Xangai. No entanto, ao empregar seus tanques, os chineses deixaram de isolar as ruas adjacentes, o que significava que os japoneses poderiam flanqueá-los e destruí-los.

Evidências fotográficas indicam que os veículos foram destruídos por canhões anti-carro ou tanques japoneses, que poderiam perfurar diretamente a torre do Mark E Tipo B. Com apenas 25,4mm de blindagem rebitada, não é surpresa que eles tenham sido colocados fora de ação com tanta frequência. Peter Harmsen, no livro Shanghai 1937: Stalingrad on the Yangtze, relata um incidente em 20 de agosto de 1937, na frente de Yangshupu. O General Zhang Zhizhong estava inspecionando um número desconhecido de tanques e conversou com um jovem oficial tanquista. O oficial reclamou que o fogo inimigo era muito feroz e que a infantaria não conseguia acompanhar os tanques. Logo após essa discussão, os tanques iniciaram um ataque, mas todos foram destruídos por projéteis disparados principalmente pelos navios japoneses ancorados no rio Huangpu.

Soldados japoneses posando com um Vickers Mark E capturado em Xangai, 1937.

Depois que a força blindada chinesa foi na maior parte destruída nas batalhas de Xangai e Nanquim, novos tanques, carros blindados e caminhões da União Soviética e da Itália tornaram possível criar a única divisão mecanizada do exército, a 200ª Divisão "Divisão de Ferro", aconselhada e organizada pelos soviéticos.

Os tanques Vickers Mark E restantes foram reunidos em um batalhão e incluídos na 200ª Divisão mecanizada, formada em 1938, a qual consistia em um regimento de tanques e um regimento de infantaria motorizado, e equipado com o tanque leve soviético T-26. Esta Divisão sofreu pesadas perdas em uma contra-ofensiva em Nanquim e na passagem de Kunlun em 1940, perdendo a maior parte do seu equipamento. O destino detalhado dos tanques Vickers Mk.E não é conhecido.

Cartão postal japonês mostrando um Vickers Mark E Tipo B capturado em Xangai.

Bibliografia recomendada:

China's Wars: Rousing the Dragon 1894-1949,
Philip Jowett.

Leitura recomendada:

sábado, 19 de março de 2022

E se a Rússia vencer? Uma Ucrânia controlada pelo Kremlin transformaria a Europa

Por Liana Fix e Michael Kimmage, Foreign Affairs, 18 de fevereiro de 2022.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 19 de março de 2022.

[Esse artigo é uma análise em duas partes. A outra pode ser lida aqui.]

Quando a Rússia se juntou à guerra civil em curso na Síria, no verão de 2015, chocou os Estados Unidos e seus parceiros. Por frustração, o então presidente Barack Obama afirmou que a Síria se tornaria um “atoleiro” para a Rússia e o presidente russo Vladimir Putin. A Síria seria o Vietnã da Rússia ou o Afeganistão de Putin, um erro grave que acabaria se repercutindo contra os interesses russos.

A Síria não acabou como um atoleiro para Putin. A Rússia mudou o curso da guerra, salvando o presidente sírio Bashar al-Assad da derrota iminente, e depois traduziu a força militar em influência diplomática. Manteve custos e baixas sustentáveis. Agora a Rússia não pode ser ignorada na Síria. Não houve acordo diplomático. Em vez disso, Moscou acumulou maior influência regional, de Israel à Líbia, e manteve um parceiro leal em Assad para a projeção de poder da Rússia. Na Síria, o que o governo Obama não antecipou foi a possibilidade de que a intervenção da Rússia fosse bem-sucedida.

No inverno surreal de 2021-22, os Estados Unidos e a Europa estão mais uma vez contemplando uma grande intervenção militar russa, desta vez na própria Europa. E mais uma vez, muitos analistas alertam para consequências terríveis para o agressor. Em 11 de fevereiro, o ministro de Estado britânico para a Europa, James Cleverly, previu que uma guerra mais ampla na Ucrânia “seria um atoleiro” para a Rússia. Em uma análise racional de custo-benefício, diz o pensamento, o preço de uma guerra em grande escala na Ucrânia seria punitivamente alto para o Kremlin e acarretaria um derramamento de sangue significativo. Os Estados Unidos estimaram cerca de 50.000 vítimas civis. Além de minar o apoio de Putin entre a elite russa, que sofreria pessoalmente com as tensões que se seguiriam com a Europa, uma guerra poderia colocar em risco a economia da Rússia e alienar o público. Ao mesmo tempo, poderia aproximar as tropas da OTAN das fronteiras da Rússia, deixando a Rússia para lutar contra a resistência ucraniana nos próximos anos. De acordo com essa visão, a Rússia estaria presa em um desastre de sua própria autoria.

No entanto, a análise de custo-benefício de Putin parece favorecer a derrubada do status quo europeu. A liderança russa está assumindo mais riscos e, acima da briga da política do dia-a-dia, Putin está em uma missão histórica para solidificar a influência da Rússia na Ucrânia (como fez recentemente na Bielorrússia e no Cazaquistão). E na visão de Moscou, uma vitória na Ucrânia pode estar ao seu alcance. É claro que a Rússia pode simplesmente prolongar a crise atual sem invadir ou encontrar uma maneira palatável de se desvencilhar. Mas se o cálculo do Kremlin estiver certo, como no final foi na Síria, os Estados Unidos e a Europa também devem estar preparados para uma eventualidade que não seja um atoleiro. E se a Rússia vencer na Ucrânia?

Se a Rússia ganhar o controle da Ucrânia ou conseguir desestabilizá-la em grande escala, começará uma nova era para os Estados Unidos e para a Europa. Os líderes americanos e europeus enfrentariam o duplo desafio de repensar a segurança europeia e de não serem arrastados para uma guerra maior com a Rússia. Todos os lados teriam que considerar o potencial de adversários com armas nucleares em confronto direto. Essas duas responsabilidades – defender com firmeza a paz europeia e evitar com prudência a escalada militar com a Rússia – não serão necessariamente compatíveis. Os Estados Unidos e seus aliados podem se encontrar profundamente despreparados para a tarefa de criar uma nova ordem de segurança europeia como resultado das ações militares da Rússia na Ucrânia.

Muitas maneiras de ganhar


Para a Rússia, a vitória na Ucrânia pode assumir várias formas. Como na Síria, a vitória não precisa resultar em um acordo sustentável. Poderia envolver a instalação de um governo complacente em Kiev ou a divisão do país. Alternativamente, a derrota das forças armadas ucranianas e a negociação de uma rendição ucraniana poderiam efetivamente transformar a Ucrânia em um Estado falido. A Rússia também poderia empregar ataques cibernéticos devastadores e ferramentas de desinformação, apoiadas pela ameaça da força, para paralisar o país e induzir a mudança de regime. Com qualquer um desses resultados, a Ucrânia terá sido efetivamente separada do Ocidente.

Se a Rússia alcançar seus objetivos políticos na Ucrânia por meios militares, a Europa não será o que era antes da guerra. Não apenas a primazia dos EUA na Europa foi qualificada; qualquer sentido de que a União Européia ou a OTAN possam garantir a paz no continente será o artefato de uma era perdida. Em vez disso, a segurança na Europa terá de ser reduzida à defesa dos membros centrais da UE e da OTAN. Todos fora dos clubes ficarão sozinhos, com exceção da Finlândia e da Suécia. Isso pode não ser necessariamente uma decisão consciente de acabar com o alargamento ou as políticas de associação; mas será uma política de facto. Sob um cerco percebido pela Rússia, a UE e a OTAN não terão mais capacidade para políticas ambiciosas além de suas próprias fronteiras.

Os Estados Unidos e a Europa também estarão em estado de guerra econômica permanente com a Rússia. O Ocidente procurará aplicar sanções abrangentes, que a Rússia provavelmente evitará com medidas cibernéticas e chantagem energética, dadas as assimetrias econômicas. A China pode muito bem ficar do lado da Rússia neste olho por olho econômico. Enquanto isso, a política interna nos países europeus se assemelhará a um grande jogo do século XXI, no qual a Rússia estudará a Europa para qualquer ruptura no compromisso com a OTAN e com o relacionamento transatlântico. Através de métodos justos e sujos, a Rússia aproveitará qualquer oportunidade para influenciar a opinião pública e as eleições nos países europeus. A Rússia será uma presença anárquica – às vezes real, às vezes imaginária – em todos os casos de instabilidade política europeia.

Os Estados membros do Leste teriam tropas da OTAN permanentemente em seu solo.

As analogias da Guerra Fria não serão úteis em um mundo com uma Ucrânia russificada. A fronteira da Guerra Fria na Europa teve seus pontos críticos, mas foi estabilizada de forma mutuamente aceitável no Ato Final de Helsinque de 1975. Em contraste, a suserania russa sobre a Ucrânia abriria uma vasta zona de desestabilização e insegurança da Estônia à Polônia e da Romênia  à Turquia. Enquanto durar, a presença da Rússia na Ucrânia será percebida pelos vizinhos da Ucrânia como provocativa e inaceitável e, para alguns, como uma ameaça à sua própria segurança. Em meio a essa dinâmica em mudança, a ordem na Europa terá que ser concebida principalmente em termos militares – o que, como a Rússia tem uma mão mais forte no campo militar do que no econômico, será do interesse do Kremlin – deixando de lado instituições não-militares como a União Européia.

A Rússia tem o maior exército convencional da Europa, o qual está mais do que pronta para usar. A política de defesa da UE – em contraste com a da OTAN – está longe de ser capaz de proporcionar segurança aos seus membros. Assim, a garantia militar, especialmente dos membros orientais da UE, será fundamental. Responder a uma Rússia revanchista com sanções e com a proclamação retórica de uma ordem internacional baseada em regras não será suficiente.

Ameaçar o leste da Europa

No caso de uma vitória russa na Ucrânia, a posição da Alemanha na Europa será severamente desafiada. A Alemanha é uma potência militar marginal que baseou sua identidade política do pós-guerra na rejeição da guerra. O círculo de amigos de que se cercou, especialmente no leste com a Polônia e os países bálticos, corre o risco de ser desestabilizado pela Rússia. A França e o Reino Unido assumirão papéis de liderança nos assuntos europeus em virtude de suas forças armadas comparativamente fortes e longa tradição de intervenções militares. O fator-chave na Europa, no entanto, continuará sendo os Estados Unidos. A OTAN dependerá do apoio dos EUA, assim como os países ansiosos e ameaçados do leste da Europa, as nações da linha de frente dispostas ao longo de uma linha de contato agora muito grande, expandida e incerta com a Rússia, incluindo a Bielorrússia e as partes da Ucrânia controladas pelos russos.

Os Estados membros do leste, incluindo Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia e Romênia, provavelmente terão um número substancial de tropas da OTAN permanentemente estacionadas em seu solo. Um pedido da Finlândia e da Suécia para obter um compromisso do Artigo 5 e aderir à OTAN seria impossível de rejeitar. Na Ucrânia, os países da UE e da OTAN nunca reconhecerão um novo regime apoiado pela Rússia criado por Moscou. Mas eles enfrentarão o mesmo desafio que enfrentam com a Bielo-Rússia: aplicar sanções sem punir a população e apoiar os necessitados sem ter acesso a elas. Alguns membros da OTAN apoiarão uma insurgência ucraniana, à qual a Rússia responderá ameaçando os membros da OTAN.

O predicamento da Ucrânia será muito grande. Os refugiados fugirão em várias direções, possivelmente aos milhões. E as partes das forças armadas ucranianas que não forem derrotadas diretamente continuarão lutando, ecoando a guerra de guerrilhas que destruiu toda essa região da Europa durante e após a Segunda Guerra Mundial.

O estado permanente de escalada entre a Rússia e a Europa pode permanecer frio do ponto de vista militar. É provável, porém, que seja economicamente quente. As sanções impostas à Rússia em 2014, que estavam ligadas à diplomacia formal (muitas vezes referida como o processo "de Minsk”, devido à cidade em que as negociações foram realizadas), não foram draconianas. Eles eram reversíveis, bem como condicionais. Após uma invasão russa da Ucrânia, novas sanções bancárias e de transferência de tecnologia seriam significativas e permanentes. Eles viriam na esteira de uma diplomacia fracassada e começariam “no topo da escada”, de acordo com o governo dos EUA. Em resposta, a Rússia retaliará, muito possivelmente no domínio cibernético, bem como no setor de energia. Moscou limitará o acesso a bens críticos, como titânio, dos quais a Rússia é o segundo maior exportador mundial. Esta guerra de atrito testará ambos os lados. A Rússia será implacável ao tentar fazer com que um ou vários Estados europeus se afastem do conflito econômico, vinculando o relaxamento da tensão ao interesse próprio desses países, minando assim o consenso na UE e na OTAN.

O ponto forte da Europa é sua alavancagem econômica. O ativo da Rússia será qualquer fonte de divisão doméstica ou interrupção na Europa ou nos parceiros transatlânticos da Europa. Aqui a Rússia será proativa e oportunista. Se um movimento ou candidato pró-Rússia aparecer, esse candidato pode ser incentivado direta ou indiretamente. Se um ponto sensível econômico ou político diminuir a eficácia da política externa dos Estados Unidos e seus aliados, será uma arma para os esforços de propaganda russa e para a espionagem russa.

Muito disso já está acontecendo. Mas uma guerra na Ucrânia aumentará a aposta. A Rússia usará mais recursos e será desencadeada na escolha dos instrumentos. Os fluxos maciços de refugiados que chegam à Europa exacerbarão a política de refugiados não resolvida da UE e fornecerão um terreno fértil para os populistas. O Santo Graal dessas batalhas informativas, políticas e cibernéticas será a eleição presidencial de 2024 nos Estados Unidos. O futuro da Europa dependerá desta eleição. A eleição de Donald Trump ou de um candidato trumpiano pode destruir a relação transatlântica na hora de maior perigo da Europa, colocando em causa a posição da OTAN e as suas garantias de segurança para a Europa.

Voltando a OTAN para dentro


Para os Estados Unidos, uma vitória russa teria efeitos profundos em sua grande estratégia na Europa, Ásia e Oriente Médio. Primeiro, o sucesso russo na Ucrânia exigiria que Washington se voltasse para a Europa. Nenhuma ambiguidade sobre o Artigo 5 da OTAN (do tipo experimentado por Trump) será permitida. Apenas um forte compromisso dos EUA com a segurança europeia impedirá a Rússia de dividir os países europeus uns dos outros. Isso será difícil à luz de prioridades concorrentes, especialmente aquelas que enfrentam os Estados Unidos em um relacionamento deteriorado com a China. Mas os interesses em jogo são fundamentais. Os Estados Unidos têm ações comerciais muito grandes na Europa. A União Europeia e os Estados Unidos são os maiores parceiros comerciais e de investimento um do outro, com o comércio de bens e serviços totalizando US$ 1,1 trilhão em 2019. Uma Europa pacífica e que funcione bem aumenta a política externa americana – sobre mudanças climáticas, não-proliferação, sobre a opinião pública global saúde e na gestão das tensões com a China ou a Rússia. Se a Europa estiver desestabilizada, os Estados Unidos ficarão muito mais sozinhos no mundo.

A OTAN é o meio lógico pelo qual os Estados Unidos podem fornecer garantias de segurança à Europa e deter a Rússia. Uma guerra na Ucrânia reviveria a OTAN não como um empreendimento de construção da democracia ou como uma ferramenta para expedições fora da área, como a guerra no Afeganistão, mas como a aliança militar defensiva insuperável que foi projetada para ser. Embora os europeus exijam dos Estados Unidos um maior compromisso militar com a Europa, uma invasão russa mais ampla da Ucrânia deve levar todos os membros da OTAN a aumentar seus gastos com defesa. Para os europeus, esta seria a chamada final para melhorar as capacidades defensivas da Europa – em conjunto com os Estados Unidos – a fim de ajudar os Estados Unidos a administrar o dilema russo-chinês.

As superpotências nucleares teriam que manter sua indignação sob controle.

Para uma Moscou agora em permanente confronto com o Ocidente, Pequim poderia servir como apoio econômico e parceiro na oposição à hegemonia dos EUA. Na pior das hipóteses para a grande estratégia dos EUA, a China pode ser encorajada pela assertividade da Rússia e ameaçar o confronto sobre Taiwan. Mas não há garantia de que uma escalada na Ucrânia beneficiará o relacionamento sino-russo. A ambição da China de se tornar o nó central da economia eurasiana será prejudicada pela guerra na Europa, por causa das incertezas brutais que a guerra traz. A irritação chinesa com uma Rússia em marcha não permitirá uma reaproximação entre Washington e Pequim, mas poderá iniciar novas conversas.

O choque de um grande movimento militar da Rússia também levantará questões em Ancara. A Turquia do presidente Recep Tayyip Erdogan tem desfrutado do venerável jogo da Guerra Fria de jogar com as superpotências. No entanto, a Turquia tem uma relação substancial com a Ucrânia. Como membro da OTAN, não se beneficiará da militarização do Mar Negro e do Mediterrâneo oriental. As ações russas que desestabilizam a região mais ampla podem empurrar a Turquia de volta para os Estados Unidos, o que, por sua vez, pode criar uma barreira entre Ancara e Moscou. Isso seria bom para a OTAN e também abriria maiores possibilidades para uma parceria EUA-Turca no Oriente Médio. Em vez de um incômodo, a Turquia pode se tornar o aliado que deveria ser.

Uma amarga consequência de uma guerra mais ampla na Ucrânia é que a Rússia e os Estados Unidos agora se enfrentariam como inimigos na Europa. No entanto, eles serão inimigos que não podem se dar ao luxo de levar as hostilidades além de um certo limite. Por mais distantes que sejam suas visões de mundo, por mais ideologicamente opostas, as duas potências nucleares mais importantes do mundo terão que manter sua indignação sob controle. Isso equivalerá a um malabarismo fantasticamente complicado: um estado de guerra econômica e luta geopolítica em todo o continente europeu, mas um estado de coisas que não permite que a escalada se transforme em guerra total. Ao mesmo tempo, o confronto EUA-Rússia pode, na pior das hipóteses, se estender a guerras por procuração no Oriente Médio ou na África, se os Estados Unidos decidirem restabelecer sua presença após a catastrófica retirada do Afeganistão.

Manter a comunicação, especialmente em estabilidade estratégica e segurança cibernética, será crucial. É notável que a cooperação EUA-Rússia em atividades cibernéticas maliciosas continue mesmo durante as atuais tensões. A necessidade de manter acordos rigorosos de controle de armas será ainda maior após uma guerra na Ucrânia e o regime de sanções que a segue.

Nenhuma vitória é permanente

À medida que a crise na Ucrânia se desenrola, o Ocidente não deve subestimar a Rússia. Não deve apostar em narrativas inspiradas por desejos. A vitória russa na Ucrânia não é ficção científica.

Mas se houver pouco que o Ocidente possa fazer para impedir uma conquista militar russa, será capaz de influenciar o que acontecerá depois. Muitas vezes, as sementes do problema estão sob o verniz da vitória militar. A Rússia pode eviscerar a Ucrânia no campo de batalha. Pode tornar a Ucrânia um Estado falido. Mas só pode fazê-lo processando uma guerra criminosa e devastando a vida de um Estado-nação que nunca invadiu a Rússia. Os Estados Unidos e a Europa e seus aliados e outras partes do mundo tirarão conclusões e criticarão as ações russas. Por meio de suas alianças e de seu apoio ao povo da Ucrânia, os Estados Unidos e a Europa podem incorporar a alternativa às guerras de agressão e ao ethos do poder que faz o certo. Os esforços russos para semear a desordem podem ser contrastados com os esforços ocidentais para restaurar a ordem.

Por mais que os Estados Unidos tenham mantido as propriedades diplomáticas dos três Estados bálticos em Washington, D.C., depois de terem sido anexados pela União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial, o Ocidente pode se colocar do lado da decência e da dignidade nesse conflito. Guerras que são vencidas nunca são vencidas para sempre. Com demasiada frequência, os países se derrotam ao longo do tempo lançando e vencendo as guerras erradas.

quinta-feira, 17 de março de 2022

GALERIA: Escola de paraquedismo indochinesa


Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 17 de março de 2022.

Alunos indochineses em treinamento paraquedista com instrutores franceses na primeira década de 1950. Os instruendos são notadamente bem equipados, o que coloca esse álbum em 1950 em diante. Esses indochineses seriam colocados em companhias indochinesas de paraquedistas (Compagnies indochinoises parachutistes, CIP) e depois formariam cinco batalhões paraquedistas no Exército Nacional Vietnamita, os BPVN apelidados "baouwans", além de um batalhão laociano e outro cambojano (khmer).

A escola de paraquedismo na Indochina foi criada pela Meia-Brigada SAS, formada por comandos SAS franceses na Segunda Guerra Mundial, que começaram como companhias e se elevaram a dois regimentos (3º e 4º) na Brigada SAS (os 1º e 2º eram britânicos, e o 5º era belga), lutando nas areias da África até a vitória final na Alemanha. Com a vitória sobre a Alemanha e o Japão em 1945, o SAS francês foi imediatamente comprometido na Indochina, onde, além das operações de salto contínuas e as infiltrações por jipe, a meia-brigada montou uma escola de paraquedismo e imediatamente começou a formar indochineses (e legionários) em 1946.

Essa escola depois foi movida para Tan Son Nhut, na Cochinchina, que serviu aos paraquedistas franceses (até 1954) e vietnamitas (até 1975).












Bibliografia recomendada:

Street Without Joy:
The French Debacle in Indochina.
Bernard B. Fall.

Leitura recomendada: