quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Cinco lições das guerras de Israel em Gaza

Por Raphael S. Cohen, War on the Rocks, 3 de agosto de 2017.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 10 de fevereiro de 2021.

“Queremos quebrar seus ossos sem colocá-los no hospital.”

– Um analista de defesa israelense, Tel Aviv, Israel, 22 de maio de 2016.

Israel enfrenta um dilema estratégico único ao longo de sua fronteira ocidental. Desde que o grupo militante islâmico Hamas assumiu Gaza em 2007, o Hamas e Israel têm se envolvido em uma violência contínua na mesma moeda nesta estreita faixa de terra ao longo do Mar Mediterrâneo. Essa violência de baixa intensidade se transformou em uma guerra total três vezes: Operações Chumbo Fundido (2009), Pilar de Defesa, (2012) e Borda Protetora (2014). No entanto, por mais que Israel desdenhe o Hamas, Israel não pode simplesmente se livrar dele, porque não quer governar Gaza e porque teme o que pode acontecer a seguir. O desafio estratégico passa a ser como deter a violência do Hamas, mas mantê-los firmemente no controle da Faixa, ou, nas palavras do analista citado acima, "quebrar seus ossos, mas não mandá-los para o hospital".

Os desafios de Israel em Gaza são compostos por dois fatores adicionais. Embora Israel, os Estados Unidos e outros considerem o Hamas uma organização terrorista, ele governa Gaza como um pseudo-Estado - tornando o Hamas um ator híbrido clássico com capacidades além daquelas de muitos outros grupos terroristas. Além disso, Gaza é também uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, forçando as Forças de Defesa de Israel (IDF) a operarem contra um adversário que está inserido em uma população civil.

As operações da IDF em Gaza fornecem um exemplo dos desafios que as forças armadas avançadas enfrentam ao confrontar adversários determinados, adaptáveis e híbridos em terreno urbano denso. Em particular, o último confronto - a Operação Borda Protetora de 51 dias de duração - ensina cinco lições básicas que se aplicam bem além de Gaza.

Lição 1: O poder aéreo enfrenta sérias limitações em terreno urbano denso

No início da década de 2010, Israel foi vítima do que Eliot Cohen certa vez chamou de "a mística do poder aéreo". Aproveitando as lições das experiências americanas na Tempestade no Deserto em 1994, Cohen argumentou que o poder aéreo de precisão parece fornecer uma panaceia estratégica - oferecendo aos formuladores de políticas a capacidade de realizar fins estratégicos sem pagar o custo em sangue e tesouro:

O poder aéreo é uma forma extraordinariamente sedutora de força militar, em parte porque, como o namoro moderno, parece oferecer gratificação sem compromisso.

Mas Cohen disse que isso era uma ilusão. Na realidade, disse ele, os efeitos do poder aéreo são limitados e os ataques aéreos não podem obscurecer a "confusão e brutalidade inerentes" das guerras.

Israel teve que reaprender essa lição em Gaza. Para muitos estrategistas israelenses, a Operação Pilar de Defesa estabeleceu essa mística quando oito dias de ataques aéreos pareciam interromper o lançamento de foguetes do Hamas. Essa conclusão se mostrou errada. Embora o poder aéreo visasse com êxito os líderes seniores do Hamas e locais de abastecimento, não foi esse o motivo pelo qual a operação foi tão curta, nem foi a causa da frágil calma que se seguiu. Em última análise, o cessar-fogo teve mais a ver com o sucesso da diplomacia, especificamente os esforços do Egito de Mohamed Morsi. Consequentemente, quando as condições políticas mudaram, cerca de dois anos depois, outra guerra de Gaza estourou.

Em 2014, a Operação Borda Protetora destruiu a ilusão da onipotência do poder aéreo. Durante a primeira fase da campanha, que durou aproximadamente de 8 a 16 de julho, a Força Aérea Israelense tentou repetir seu manual da Operação Pilar de Defesa e conduziu cerca de 1.700 ataques. Ainda assim, o poder aéreo sozinho não conseguiu acabar com a ameaça de foguetes de Gaza. Também falhou em conter efetivamente a nova tática do Hamas - túneis escavados em cidades vizinhas de Israel - uma vez que os próprios túneis eram subterrâneos e suas aberturas muitas vezes não eram detectadas por aeronaves. Em última análise, o poder aéreo falhou em encerrar o conflito e as IDF aprenderam da maneira mais difícil que alguns alvos precisavam ser destruídos no solo.

Lição 2: Operações terrestres em áreas urbanas nunca são sem sangue

Na maior parte, as IDF mantiveram sua ofensiva limitada, mas ainda assim não conseguiu evitar destruição. A batalha de Shuja’iya talvez seja a melhor demonstração desse truísmo. Shuja’iya era um bairro densamente povoado da Cidade de Gaza e uma fortaleza do Hamas. Após três dias de lançamento de panfletos alertando os civis sobre uma operação iminente, as IDF lançaram uma operação na noite de 19 de julho para destruir seis operações em túneis transfronteiriços. Depois que um veículo blindado quebrou, militantes do Hamas emboscaram o veículo, matando seus sete ocupantes. As tentativas israelenses de chegar ao veículo encontraram forte resistência, as baixas aumentaram e a situação se desintegrou. O comandante da brigada que liderava a operação estava ferido e precisava ser evacuado. As IDF responderam com um uso massivo de poder de fogo - disparando pelo menos 600 tiros de artilharia e lançando pelo menos 100 bombas de uma tonelada - para neutralizar os combatentes do Hamas. No final, a batalha ceifou a vida de pelo menos 13 soldados das IDF e 65 combatentes palestinos e civis e deixou centenas de feridos. O nível de violência pegou até mesmo alguns observadores veteranos desprevenidos. Após a batalha, o Secretário de Estado John Kerry - ele próprio um veterano da Guerra do Vietnã e não estranho ao combate - comentou, incrédulo: "É uma bela de uma operação de precisão".

Infelizmente, as experiências das IDF em Gaza não são únicas. Os Estados Unidos aprenderam lições semelhantes em Mogadíscio, na Somália, em 1993 ou mais recentemente, na Batalha de Fallujah em 2004 e na Batalha de Sadr City em 2008, no Iraque. Apesar de todas as vantagens tecnológicas em inteligência e armamento de precisão disponíveis para as forças armadas ocidentais modernas, quando as forças terrestres convencionais encontram resistência determinada em terreno urbano, o resultado nunca é uma operação limpa e sem derramamento de sangue.

Lição 3: Forças armadas ocidentais não conseguem escapar da "Lawfare"

Em parte porque as operações terrestres são assuntos inerentemente sangrentos, é quase inevitável que a luta se estenda do campo de batalha ao tribunal. O ex-juiz-adjunto do advogado-geral da Força Aérea dos Estados Unidos, Charles Dunlap, denominou esse fenômeno de "lawfare" ("guerra da lei"), descrevendo-o como "a estratégia de usar - ou abusar - da lei como substituto dos meios militares tradicionais para atingir um objetivo operacional". E durante as guerras de Israel em Gaza, as FDI estavam perfeitamente cientes desta dimensão da luta.

Os esforços das IDF para combater a lawfare evoluíram durante suas guerras em Gaza. Enviando advogados para atuar como consultores jurídicos em níveis inferiores de comando e os integrando melhor ao processo de seleção de alvos. Estabeleceu medidas, administradas de forma centralizada pela liderança sênior, para definir níveis “aceitáveis” de tolerância ao risco para danos colaterais. As IDF até fizeram experiências com a realização proativa de conduzir “lawfare” para justificar preventivamente o porquê de qualquer operação estar dentro dos limites legais. E, no entanto, como os próprios oficiais das IDF admitem, as IDF ainda podem não ter vencido a batalha judicial de lawfare. Na verdade, Israel ainda está sob intenso escrutínio de organizações não-governamentais e das Nações Unidas após a Operação Borda Protetora em 2014, assim como durante suas guerras anteriores em Gaza.

Embora por uma variedade de razões Israel domine os holofotes jurídicos internacionais, todos as forças armadas ocidentais ainda lutam para encontrar uma resposta aos desafios da lawfare. Embora os Estados Unidos sejam comparativamente mais imunes à "guerra da lei" do que Israel - na verdade, a embaixadora dos Estados Unidos nas Nações Unidas, Nikki Haley, recentemente acusou o Conselho de Direitos Humanos da ONU de um "viés anti-Israel crônico" - os Estados Unidos também enfrentam situações semelhantes críticas sobre os maus usos e abusos da força, seja no Afeganistão, Iraque, Síria ou em outro lugar.

Lição 4: A luta urbana não pode ser evitada

Se o poder aéreo for ineficaz e as operações terrestres forem sangrentas e que provavelmente acabarão em tribunal, podem as forças armadas simplesmente neutralizarem a ameaça que emana das áreas urbanas e evitar completamente a luta urbana? Até certo ponto, Israel tentou essa abordagem. O desenvolvimento do sistema de defesa antimísseis Iron Dome (Cúpula de Ferro) permitiu-lhe proteger grande parte de sua população dos ataques de foguetes do Hamas e aliviou a pressão sobre os legisladores israelenses para ordenar operações militares mais agressivas. Dito isso, essa abordagem foi apenas até certo ponto. Os ataques de foguetes do Hamas - mesmo que em grande parte neutralizados pela Cúpula de Ferro - ainda forçaram os israelenses a correr para abrigos e interromperam a vida diária. Além disso, a Cúpula de Ferro nada fez para proteger seus cidadãos de outras ameaças do Hamas, como ataques de túneis. No final, enquanto não houver um acordo de paz entre o Hamas e Israel, as IDF precisarão lutar em Gaza, queira ou não.

Os Estados Unidos chegaram a uma conclusão semelhante. Como observou o Chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA, General Mark Milley, no ano passado:

"No futuro, posso dizer com muito alto grau de confiança, o Exército americano provavelmente estará lutando em áreas urbanas. Precisamos recrutar, organizar, treinar e equipar a força para operações em áreas urbanas, áreas urbanas altamente densas, e isso é uma construção diferente. Não estamos organizados assim agora."

Embora o Exército dos EUA não queira lutar nas cidades, é lá que a esmagadora maioria das pessoas viverá no futuro e, portanto, gostemos ou não, é lá que - na estimativa de Milley - as guerras do futuro estarão.

A Lição Elusiva: Transformando o sucesso em uma vitória duradoura

Depois de uma década operando contra Gaza, as IDF aprenderam muitas lições sobre a guerra urbana contra adversários híbridos, mas pelo menos uma permanece indefinida - como transformar o sucesso operacional em uma vitória duradoura. Na verdade, as guerras limitadas de Israel compraram períodos de relativa calma, mas não uma solução durável, e a violência ainda continua hoje.

Com as operações no Iraque, Afeganistão e Líbia ainda frescas na memória estratégica coletiva americana, os desafios da mudança de regime são bem conhecidos hoje. Às vezes esquecidas, entretanto, são as dificuldades inerentes de travar guerras limitadas. Felizmente, os Estados Unidos hoje não enfrentam um equivalente a Gaza ao longo de suas fronteiras. E, no entanto, em um mundo cheio de atores odiosos em que a mudança de regime pode não ser uma opção viável, os Estados Unidos também enfrentam o desafio de descobrir como quebrar ossos sem mandar pessoas para o hospital, por assim dizer.

Um ex-oficial da ativa do Exército dos EUA, Raphael S. Cohen é um cientista político na organização sem fins lucrativos e apartidária RAND Corporation. Ele é o autor principal de From Cast Lead to Protective Edge: Lessons from Israel’s Wars in Gaza (Da Operação Chumbo Fundido para a Borda Protetora: Lições das Guerras de Israel em Gaza).

Bibliografia recomendada:



Leitura recomendada:

Israel provavelmente enfrentará guerra em 2020, alerta think tank1º de março de 2020.

FOTO: Macacos de Lotar em arranha-céu15 de dezembro de 2020.

FOTO: Soldados israelenses avançando na cidade velha de Jerusalém19 de dezembro de 2020.

FOTO: Fuzileiros navais americanos em combate urbano12 de agosto de 2020.

GALERIA: Combate em localidade urbana no campo de Garrigues7 de fevereiro de 2021.

Analisando o Ataque Urbano: idéias da doutrina soviética como um 'modelo de lista de verificação'27 de junho de 2020.

As muitas camadas das Forças de Segurança Palestinas9 de fevereiro de 2021.

Dez milhões de dólares por miliciano: A crise do modelo ocidental de guerra limitada de alta tecnologia, 23 de julho de 2020.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

GALERIA: Soldados americanos em um tiroteio no Vale de Waterpur


Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 10 de fevereiro de 2021.

Soldados do Exército Americano da Companhia C, 2º Batalhão, 12º Regimento de Infantaria, 4ª Divisão de Infantaria, observam as colinas ao redor em busca de insurgentes, enquanto outros soldados da Companhia C correm para sua posição, evitando o pesado fogo de snipers, durante uma batalha de três horas com as forças insurgentes na província de Kunar, Vale de Waterpur no Afeganistão, 3 de novembro de 2009.

Os soldados da 4ª Divisão de Infantaria lutara contra as forças insurgentes no Vale de Waterpur desde que chegaram ao Afeganistão em junho de 2008. Fotos do Sgt. Matthew Moeller, US Army.


O Cabo Casey Liffrig, de Pinehurst, na Carolina do Norte, examina as colinas ao redor do Vale de Waterpur, enquanto os rebeldes fazem chover balas sobre a sua posição.

Soldados da Companhia C ripostam com metralhadoras durante a batalha de três horas.

O Soldado de 1ª Classe Chris Johnson observa helicópteros do Exército Americano dispararem foguetes contra os insurgentes nas colinas ao redor do Vale de Waterpur.

O Sargento Stephen Wise, natural de Ames, em Iowa, observa as forças insurgentes enquanto as balas assobiam sobre sua cabeça.

O Cabo Casey Liffrig, de Pinehurst, na Carolina do Norte, observa as forças insurgentes enquanto pesado fogo de snipers cai sobre sua posição.

Um helicóptero UH-61 Blackhawk do exército americano lança munição e água para os soldados da Companhia C.


O Sargento de 1 ª classe Henriques Ventura, de Colorado Springs, no Colorado, corre por um campo aberto enquanto chuvas de tiros caem ao seu redor.

Um soldado da Companhia C dispara o seu fuzil durante o tiroteio.

A fumaça dos foguetes dos helicópteros é visível nas colinas ao redor.

O Soldado de 2ª Classe John Stafinski, natural de Seville, em Ohio, dispara sua arma automática de GC Minimi M249 durante o tiroteio de três horas com os combatentes insurgentes.

O Soldado de 1ª Classe Chris Johnson e um companheiro examinam as colinas ao redor do vale de Waterpur.

O Soldado de 1ª Classe Geoffery Thomson, um granadeiro, se abriga enquanto os insurgentes atiram sobre a sua posição.

O Sargento Kee Johnson, natural de Lewisburg, em West Virginia, protege-se enquanto helicópteros do Exército Americano disparam foguetes contra os insurgentes nas colinas que cercam o Vale de Waterpur.

O Especialista Thomas Upton, natural de Aransas Pass, no Texas, observa as posições insurgentes durante a batalha.

Bibliografia recomendada:


Leitura recomendada:

As ideias americanas vão destruir a França? Alguns de seus líderes pensam assim

Uma manifestação contra o racismo e a brutalidade policial em Paris no ano passado. Os protestos em toda a França foram inspirados pelo movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos. (Mohammed Badra / EPA)

Por Norimitsu Onishi, The New York Times, 9 de fevereiro de 2021.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 10 de fevereiro de 2021.

Políticos e intelectuais proeminentes dizem que as teorias sociais dos Estados Unidos sobre raça, gênero e pós-colonialismo são uma ameaça à identidade francesa e à república francesa.

PARIS — A ameaça é considerada existencial. Isso alimenta o secessionismo. Corrói a unidade nacional. Estimula o islamismo. Ataca o patrimônio intelectual e cultural da França. A ameaça? “Certas teorias das ciências sociais totalmente importadas dos Estados Unidos'', disse o presidente Emmanuel Macron.

Políticos franceses, intelectuais de alto nível e jornalistas estão alertando que as idéias progressistas americanas - especificamente sobre raça, gênero e pós-colonialismo - estão minando sua sociedade. “Há uma batalha a travar contra uma matriz intelectual das universidades americanas'', advertiu o ministro da Educação do presidente Macron.

Encorajados por esses comentários, intelectuais proeminentes se uniram contra o que consideram contaminação pelo esquerdismo fora de controle dos campi americanos e sua cultura de cancelamento concomitante.

Contra eles está um guarda mais jovem e diverso que considera essas teorias como ferramentas para compreender os pontos cegos obstinados de uma nação cada vez mais diversa que ainda recua à menção de raça, ainda não se reconciliou com seu passado colonial e muitas vezes ignora as preocupações das minorias como políticas de identidade.

Disputas que de outra forma teriam chamado pouca atenção agora estão explodindo nas notícias e nas redes sociais. O novo diretor da Ópera de Paris, que disse na segunda-feira que quer diversificar seu quadro de funcionários e banir o blackface, foi atacado pela líder de extrema direita, Marine Le Pen, mas também no Le Monde porque, embora alemão, havia trabalhado em Toronto e “absorveu a cultura americana por 10 anos”.

A publicação neste mês de um livro crítico dos estudos raciais por dois cientistas sociais veteranos, Stéphane Beaud e Gérard Noiriel, alimentou críticas de estudiosos mais jovens - e recebeu extensa cobertura jornalística. O Sr. Noiriel disse que a raça se tornou uma "escavadeira" esmagando outros assuntos, acrescentando, em um e-mail, que sua pesquisa acadêmica na França era questionável porque a raça não é reconhecida pelo governo e nada mais que "dados subjetivos".

O acirrado debate francês sobre um punhado de disciplinas acadêmicas nos campi dos EUA pode surpreender aqueles que testemunharam o declínio gradual da influência americana em muitos cantos do mundo. De certa forma, é uma disputa por procuração por algumas das questões mais inflamáveis da sociedade francesa, incluindo a identidade nacional e a divisão do poder. Em uma nação onde os intelectuais ainda dominam, as apostas são altas.

Com seus ecos das guerras culturais americanas, a batalha começou dentro das universidades francesas, mas está sendo cada vez mais travada na mídia. Os políticos têm influenciado cada vez mais, especialmente após um ano turbulento durante o qual uma série de eventos questionou os princípios da sociedade francesa.

Ativistas dos direitos das mulheres protestaram no ano passado contra a nomeação de Macron de um ministro do Interior que foi acusado de estupro e de um ministro da justiça que criticou o movimento #MeToo. (François Mori / Associated Press)

Os protestos em massa na França contra a violência policial, inspirados pela morte de George Floyd, desafiaram a rejeição oficial da raça e do racismo sistêmico. Uma geração #MeToo de feministas confrontou o poder masculino e feministas mais velhas. Uma repressão generalizada após uma série de ataques islâmicos levantou perguntas sobre o modelo de secularismo da França e a integração de imigrantes de suas ex-colônias.

Alguns viram o alcance da política de identidade americana e das teorias das ciências sociais. Alguns legisladores de centro-direita pressionaram por uma investigação parlamentar sobre "excessos ideológicos" nas universidades e destacaram acadêmicos "culpados" no Twitter.

O presidente Macron - que havia demonstrado pouco interesse por esses assuntos no passado, mas tem cortejado a direita antes das eleições do ano que vem - agitou-se em junho passado, quando culpou as universidades por encorajarem a “etnicização da questão social'' - chegando a “quebrar a república em dois".

“Fiquei agradavelmente surpreso'', disse Nathalie Heinich, uma socióloga que no mês passado ajudou a criar uma organização contra o "descolonialismo e a política de identidade". Composto por figuras estabelecidas, muitos aposentados, o grupo emitiu avisos sobre teorias sociais de inspiração americana em publicações importantes como Le Point e Le Figaro.

Para a Sra. Heinich, os desenvolvimentos do ano passado vieram em cima do ativismo que trouxe disputas estrangeiras sobre apropriação cultural e blackface para as universidades francesas. Na Sorbonne, ativistas impediram a encenação de uma peça de Ésquilo para protestar contra o uso de máscaras e maquiagem escura por atores brancos; em outros lugares, alguns oradores conhecidos foram rejeitados por pressão dos alunos.

"Foi uma série de incidentes extremamente traumáticos para nossa comunidade e que todos se enquadraram no que é chamado de cultura de cancelamento", disse Heinich.

Para outros, o ataque à influência americana percebida revelou algo mais: um estabelecimento francês incapaz de enfrentar um mundo em fluxo, especialmente em uma época em que o tratamento incorreto do governo com a pandemia do coronavírus aprofundou a sensação de declínio inelutável de uma outrora grande potência.

“É o sinal de uma república pequena e assustada, em declínio, provincializadora, mas que no passado e até hoje acredita em sua missão universal e que, portanto, busca os responsáveis por seu declínio'', disse François Cusset, especialista em civilização americana na Universidade de Paris Nanterre.

Um estudante voltando para casa no distrito de Sorbonne no mês passado. (Andrea Mantovani / The New York Times)

A França há muito reivindica uma identidade nacional, baseada em uma cultura comum, direitos fundamentais e valores fundamentais como igualdade e liberdade, rejeitando a diversidade e o multiculturalismo. Os franceses costumam ver os Estados Unidos como uma sociedade turbulenta em guerra consigo mesma.

Mas, longe de serem americanos, muitos dos principais pensadores por trás das teorias sobre gênero, raça, pós-colonialismo e teoria queer vieram da França - bem como do resto da Europa, América do Sul, África e Índia, disse Anne Garréta, uma escritora francesa que ensina literatura em universidades na França e na Duke.

“É todo um mundo global de ideias que circula", disse ela. “Acontece que os campi mais cosmopolitas e globalizados neste ponto da história são os americanos".

O Estado francês não compila estatísticas raciais, o que é ilegal, descrevendo-as como parte de seu compromisso com o universalismo e com o tratamento igualitário de todos os cidadãos perante a lei. Para muitos estudiosos da raça, no entanto, a relutância faz parte de uma longa história de negação do racismo na França e no comércio de escravos e no passado colonial do país.

“O que é mais francês do que a questão racial em um país que foi construído em torno dessas questões?'', disse Mame-Fatou Niang, que divide seu tempo entre a França e os Estados Unidos, onde leciona estudos de francês na Carnegie Mellon University.

A Sra. Niang liderou uma campanha para remover um afresco na Assembleia Nacional da França, que mostra duas figuras negras com lábios vermelhos e gordos e olhos esbugalhados. Suas opiniões públicas sobre raça a tornaram um alvo frequente nas redes sociais, inclusive de um dos legisladores que pressionou por uma investigação sobre "excessos ideológicos" nas universidades.

Pap Ndiaye, historiador que liderou os esforços para estabelecer os estudos negros na França, disse que não foi por acaso que a atual onda de retórica anti-americana começou a crescer no momento em que ocorreram os primeiros protestos contra o racismo e a violência policial em junho passado.

Os manifestantes contra a brutalidade policial entraram em confronto com as autoridades policiais em Paris no ano passado. (Mohammed Badra / EPA)

“Havia a ideia de que estamos falando demais sobre questões raciais na França", disse ele. "É o bastante".

Três ataques islâmicos no outono passado serviram como um lembrete de que o terrorismo continua sendo uma ameaça na França. Eles também chamaram a atenção para outro campo de pesquisa quente: a islamofobia, que examina como a hostilidade ao Islã na França, enraizada em sua experiência colonial no mundo muçulmano, continua a moldar a vida dos muçulmanos franceses.

Abdellali Hajjat, especialista em islamofobia, disse que ficou cada vez mais difícil se concentrar em seu assunto depois de 2015, quando ataques terroristas devastadores atingiram Paris. O financiamento do governo para a pesquisa acabou. Pesquisadores sobre o assunto foram acusados de apologistas de islâmicos e até terroristas.

Achando a atmosfera opressora, Hajjat saiu há dois anos para dar aulas na Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, onde disse que encontrou maior liberdade acadêmica.

“Sobre a questão da islamofobia, é apenas na França que existe uma conversa tão violenta sobre a rejeição do termo'', disse ele.

O ministro da educação do presidente Macron, Jean-Michel Blanquer, acusou as universidades, sob influência americana, de serem cúmplices de terroristas ao fornecerem a justificativa intelectual por trás de seus atos.

Um grupo de 100 estudiosos proeminentes escreveu uma carta aberta apoiando o ministro e criticando as teorias “transferidas dos campi norte-americanos” no Le Monde.

Uma marcha no ano passado em homenagem a Samuel Paty, um professor que foi decapitado por um homem muçulmano irritado com o Sr. Paty por ter mostrado desenhos do Profeta Maomé em uma sala de aula. (Dmitry Kostyukov / The New York Times)

Um signatário, Gilles Kepel, especialista em Islã, disse que a influência americana levou a “uma espécie de proibição nas universidades de pensar o fenômeno do Islã político em nome de uma ideologia de esquerda que o considera a religião dos desfavorecidos”.

Junto com a islamofobia, era por meio da "importação totalmente artificial" na França da "questão negra ao estilo americano" que alguns tentavam traçar uma imagem falsa de uma França culpada de "racismo sistêmico" e "privilégio branco", 'disse Pierre-André Taguieff, um historiador e um importante crítico da influência americana.

O Sr. Taguieff disse em um e-mail que os pesquisadores de raça, islamofobia e pós-colonialismo foram motivados por um "ódio ao Ocidente, como uma civilização branca".

“A agenda comum desses inimigos da civilização europeia pode ser resumida em três palavras: descolonizar, desmasculinizar, deseuropeizar", disse Taguieff. “O homem branco heterossexual - esse é o culpado a condenar e o inimigo a eliminar.”

Por trás dos ataques às universidades americanas - lideradas por intelectuais brancos do sexo masculino - estão as tensões em uma sociedade onde o poder parece estar em jogo, disse Éric Fassin, um sociólogo que foi um dos primeiros acadêmicos a se concentrar em raça e racismo na França, cerca de 15 anos atrás.

Naquela época, os estudiosos da raça tendiam a ser brancos como ele, disse ele. Ele disse que muitas vezes foi chamado de traidor e enfrentou ameaças, mais recentemente de um extremista de direita que foi condenado a quatro meses de prisão suspensa por ameaçar decapitá-lo.

Mas o surgimento de jovens intelectuais - alguns negros ou muçulmanos - alimentou o ataque ao que Fassin chama de "bicho-papão americano".

“Foi isso que virou as coisas de cabeça para baixo'', disse ele. “Eles não são apenas os objetos de que falamos, mas também os sujeitos que estão falando".

Norimitsu Onishi é um correspondente estrangeiro no International Desk, cobrindo a França a partir do escritório de Paris. Anteriormente, ele atuou como chefe do escritório do The Times em Joanesburgo, Jacarta, Tóquio e Abidjan, na Costa do Marfim.

Bibliografia recomendada:



Leitura recomendada:

COMENTÁRIO: Os intelectuais são o poder, 14 de setembro de 2020.

Guerras e terrorismo: não se deve errar o alvo22 de novembro de 2020.

França: A longa sombra dos ataques terroristas de Saint-Michel2 de setembro de 2020.

O Papel da França na Guerra Revolucionária Americana24 de maio de 2020.

Não haveria Estados Unidos sem a França21 de fevereiro de 2020.

Um professor francês foi decapitado por um terrorista muçulmano em plena rua, 16 de outubro de 2020.

Terrorismo: Ataque ao prédio antigo do Charlie Hebdo28 de setembro de 2020.

Ataque de Villejuif: Sid Ahmed Ghlam condenado à prisão perpétua5 de novembro de 2020.

Os amantes cruéis da humanidade5 de agosto de 2020.

FOTO: Reembarque de um tanque Patton

Reembarque de um tanque M47 Patton do 8º Regimento de Dragões no Porto Said, no Egito, em 21 de dezembro de 1956. (Pierre Ferrari/ ECPAD)

Por Filipe do A. Monteiro, Warfare Blog, 10 de fevereiro de 2021.

O reembarque de um tanque M47 Patton do 1º esquadrão do 8e RD (8e Régiment de Dragons/ 8º Regimento de Dragões) no navio anfíbio "Odet", no final da intervenção franco-britânica no Canal de Suez.

Bibliografia recomendada:

Tanks:
100 Years of Evolution.
Richard Ogorkiewiez.

Leitura recomendada:

FOTO: Desembarque durante a Operação Escudo do Deserto27 de setembro de 2020.

FOTO: Fuzis SKS capturados1º de janeiro de 2021.

FOTO: Libertação da Cidade do Kuwait5 de setembro de 2020.

FOTO: Furão no Golfo26 de setembro de 2020.

FOTO: Um burro na Tempestade do Deserto7 de novembro de 2020.

FOTO: Blindados abandonados no Sinai12 de março de 2020.

FOTO: Coluna blindada no deserto emirático19 de agosto de 2020.

Operação Haboob: E se a França tivesse engajado-se no Iraque em 2003?13 de agosto de 2020.

À Oeste de Suez para os Emirados Árabes Unidos19 de maio de 2020.

Down For the Count: Como fracassar como um Líder

Por Steven Matthew Leonard, Clearance Jobs, 4 de fevereiro de 2020.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 10 de fevereiro de 2021.

“Líderes que não ouvem acabarão cercados por pessoas que não têm nada a dizer.”

- Andy Stanley.

O caminho para o sucesso como líder está cheio de erros. Embora eu sempre tenha preferido aprender com os erros dos outros - aproveitando ao máximo um pouco de aprendizado vicário - fiz o suficiente ao longo dos anos para encher um Duffel Blog* com as lições aprendidas. Através de cada erro, fui capaz de aplicar reflexão suficiente para identificar, aprender e crescer como líder, construindo meus pontos fortes e superando meus pontos fracos.

*Nota do Tradutor: O Duffel Blog é um site de humor militar americano.

Felizmente para mim, nenhum dos meus erros pessoais foi do tipo que te obriga a procurar um novo emprego. Nunca perdi meio milhão de dólares em equipamento militar. Nunca troquei informações confidenciais por um dinheiro rápido. Nunca usei meu cartão de viagem do governo em um estabelecimento proibido. Esses são exemplos dos tipos de erros flagrantes dignos de tablóide sobre os quais todos nós fofocamos durante o café da manhã, não o tipo de erro que causa o fracasso da maioria dos líderes.

Em vez disso, os erros que causam o fracasso da maioria das pessoas são perdidos na rotina diária: geralmente não são lascivos o suficiente para chegar uma manchete, mas sérios o suficiente para te fazerem ser despedido.

Não fornecer uma visão:

Se você já se perguntou como um “FLAILEX” realmente se parece, deixe sua equipe encontrar um propósito e uma direção por conta própria. A loucura resultante geralmente é o precursor de um colapso organizacional completo. É ruim para você, é ruim para o seu pessoal e é ruim para a organização como um todo.

Fundamentalmente, liderança significa fornecer às pessoas propósito, direção e motivação, todos os quais centralizados em uma visão compartilhada do futuro. Os líderes que não definem um azimute para o sucesso fracassam mais do que eles próprios imaginam - eles deixam organizações inteiras se debatendo sem objetivo, sem qualquer senso de propósito.

Não liderar por exemplo:

Todos os líderes dão algum tipo de exemplo - bom ou ruim - para seus subordinados. Vários anos atrás, um líder militar sênior que mantinha um relacionamento com um subordinado júnior ficou surpreso ao saber que outros líderes sob sua responsabilidade faziam exatamente a mesma coisa. Ele não deveria estar. Se você é um líder sem uma bússola moral, não pode esperar que as pessoas ao seu redor sigam seu exemplo.

Dar um exemplo positivo não é particularmente difícil se você realmente abraçar os valores de sua organização. Lembre-se de que liderança não tem a ver com você, mas com as pessoas que você deve liderar.

Não escutar:

Poucos momentos são tão frustrantes ou reveladores quanto a percepção de que a pessoa do outro lado da discussão não está ouvindo. Talvez eles estejam checando o telefone, olhando para o relógio ou apenas recostados na cadeira com os braços cruzados sobre o peito, mas o resultado é o mesmo. Nada do que você diz está passando.

Os líderes que não ouvem nunca terão as informações de que precisam para tomar decisões informadas, o feedback necessário para conduzir a organização ao sucesso ou a confiança de seus subordinados. Eles estarão, como Andy Stanley observou certa vez, “cercados por pessoas que não têm nada a dizer”.

Não delegar:

Vários anos atrás, enquanto preparava um briefing para um general sênior, seu chefe de gabinete insistiu que ele criaria a apresentação de slides para o briefing, embora as pessoas com conhecimento do assunto trabalhassem para mim. Quando perguntei por quê, ele respondeu: “Eu sei o que ele quer ver”. Mais tarde, quando de fato entregamos o briefing, o general nos interrompeu alguns slides da apresentação, dizendo: “Não é isso que eu quero”.

Minha equipe ficou frustrada, mas foi uma grande lição para eles. Quer a relutância do chefe da equipe em delegar fosse motivada por uma falta de confiança ou um desejo de microgerenciar o processo, eles viram por si próprios a importância de atribuir uma tarefa à pessoa certa. Estávamos de volta à mesma sala de conferências dois dias depois, mas desta vez eles eram donos da apresentação e possuíam uma compreensão clara dos resultados e expectativas desejados.

Não se importar:

Em um artigo da Military Review de 2004, George Reed identificou três componentes-chave para o que ele chamou de síndrome do líder tóxico:

  1. Uma aparente falta de preocupação com o bem-estar dos subordinados,
  2. Uma personalidade ou técnica interpessoal que afeta negativamente o clima organizacional e 
  3. A convicção dos subordinados de que o líder é motivado principalmente por interesses próprios.

O tema comum entrelaçado em cada componente é um líder que realmente não se importa com ninguém além de si mesmo.

A necessidade de conter o narcisismo foi um fator impulsionador da recente decisão do Exército dos EUA de adicionar humildade como um oitavo valor de liderança. Um líder cujo ego é um obstáculo ao sucesso organizacional representa uma ameaça igual, se não maior, para seu pessoal. Um líder que carece de humildade não promove o aprendizado, não aceita feedback e nem percebe - ou se importa - quando aqueles ao seu redor falham. E se você não se preocupa com as pessoas de quem depende, não se surpreenda quando elas não se importarem com você.

Steve Leonard é um ex-estrategista militar sênior e a força criativa por trás do microblog de defesa, Doctrine Man!!. Um escritor de carreira e palestrante apaixonado por desenvolver e orientar a próxima geração de líderes de pensamento, ele é membro sênior do Modern War Institute; o co-fundador do blog de segurança nacional, Divergent Options, e do podcast, The Smell of Victory; co-fundador e membro do conselho do Military Writers Guild; e membro do conselho de revisão editorial do Arthur D. Simons Center’s Interagency Journal. Ele é o autor de cinco livros, vários artigos profissionais, incontáveis postagens em blogs e é um prolífico cartunista militar. 

Bibliografia recomendada:



Leitura recomendada:

O Elemento Humano: Quando engenhocas se tornam estratégia25 de agosto de 2019.

Os Centuriões: 10 passagens que farão você refletir sobre guerra e liderança13 de abril de 2020.

Com Fuzil e Bibliografia: General Mattis sobre a leitura profissional6 de outubro de 2018.

COMENTÁRIO: O Culto à Mediocridade20 de dezembro de 2020.




Essa "modinha" de que Clausewitz-é-irrelevante não é uma blasfêmia. É simplesmente errada, 5 de janeiro de 2020.

Vega Strategic Services: as PMC russas como parte da guerra de informação?

Por Sergey Sukhankin, The Jamestown Foundation, 10 de abril de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 9 de fevereiro de 2021.

A agência russa de investigação Equipe de Inteligência de Conflitos (Conflict Intelligence Team, CIT) publicou um relatório, em 28 de março, informando que, além dos exércitos militares privados, a Rússia criou agora uma Companhia Militar Privada (Private Military Company, PMC) de um novo tipo. Especificamente, o relatório examina a Vega Strategic Services Ltd. (Vega), “uma PMC 'clássica' russo-ucraniana”, que atualmente opera na Síria e apóia o presidente Bashar al-Assad. Conforme observado no relatório, “ao contrário da ‘PMC Wagner’, [Vega] não conduz operações militares formais; seu objetivo principal está focado no treinamento de forças locais, bem como a proteção de vários objetos - semelhante a missões realizadas por PMC ocidentais... Dados os laços estreitos entre a milícia Liwa al-Quds e as forças russas na Síria, pode-se argumentar que o Vega está agindo com a permissão das autoridades russas ”(Citeam.org, 28 de março). A Liwa al-Quds (também conhecida como Brigada de Jerusalém) é uma milícia predominantemente palestina e luta como parte das forças do governo pró-Síria na Guerra Civil Síria.

O relatório investigativo baseia-se em três fontes principais de informação. Em primeiro lugar, refere-se ao ex-correspondente da ANNA News, Oleg Blokhin, que postou imagens de instrutores do Vega, na Síria, onde estavam evidentemente treinando combatentes Liwa al-Quds.

A segunda fonte por trás do relatório da CIT é um perfil abrangente de dois membros do Vega, ambos cidadãos ucranianos. Anatoly Smolin, um dos alegados fundadores desta PMC, após se aposentar da KGB soviética, seguiu carreira no Ministério de Assuntos Internos da Ucrânia. Em 1997, ele passou a prestar serviços de segurança privada. Em 2004, Smolin fundou as empresas de segurança Alfa-Shchit e Kolchuga; enquanto, em 2011, organizou a Vega Strategic Services. Imagens recuperadas pela CIT parecem mostrar Smolin treinando militantes da Liwa al-Quds na Síria. O outro perfil apresentado é de Dmitry Dzhinikashvili, que, de acordo com o relatório, não só foi empregado do Vega entre 2012 e 2014, mas também serviu por um breve período no Slavonic Corps Limited, uma PMC russa de vida curta organizado por ex-membros do Moran Security Group, Vadim Gusev e Evgeny Sidorov. O Slavonic Corps foi destruído na Síria em 2013. Os investigadores relacionaram a suposta presença de Dzinikashvili na Síria com uma foto de Palmira publicada na rede de mídia social online Vkontakte.

O terceiro elemento da investigação do relatório da CIT é baseado em uma entrevista com Andrey Kebkalo, um dos fundadores do Omega Consulting Group PMC, que supostamente abriu uma filial em Burkina Faso (o quarto maior produtor de ouro da África) (ver EDM, outubro 17, 2018). Na entrevista, Kebkalo reconheceu seu papel na criação do Vega e corroborou o papel de Smolin nesta PMC.


O relatório gerou uma reação imediata e extremamente dura do Serviço de Segurança da Ucrânia (SSU). Em seu comentário, o chefe do SSU, Vasyl Hrytsak, afirmou: “Membros do sindicato terrorista dos serviços especiais russos sob o nome de ‘PMC Wagner’ não têm cidadania. Nos últimos anos, o SSU trouxe à luz centenas de mercenários deste destacamento da [isto é, apoiado pela] Diretoria do Estado-Maior das Forças Armadas Russas (GU) [inteligência militar russa, ainda freqüentemente referida por seus antiga sigla GRU], entre os quais pessoas da Ucrânia, Bielo-Rússia, Moldávia, Cazaquistão, Sérvia e outros países. A única coisa que os une é a prontidão para matar qualquer um e em qualquer lugar do mundo por ordem do Kremlin e por seu dinheiro. Nenhuma falsificação russa pode esconder essa verdade do mundo.” O serviço de imprensa do SSU corroborou o fato de que Smolin e Dzhinikashvili são de fato cidadãos ucranianos, que, no entanto, deixaram o país após 2014 e começaram a cooperar ativamente com a inteligência militar russa e outros serviços especiais. O SSU também confirmou que o Vega, embora criada por Smolin em 2011, não se dedicava à prestação de serviços de segurança privada. Em sua análise final, o SSU chamou o relatório produzido pela CIT de “notícia falsa”, afirmando que “ainda é o Grupo Wagner que treina forças pró-Assad” (Ssu.gov.ua, 28 de março).

Em sua resposta, o investigador-chefe da CIT, Ruslan Leviev, expressou sua surpresa com a reação do SSU e criticou-o por uma "abordagem não profissional". Ele também apontou que o Vega não é de forma alguma uma iniciativa conjunta (russo-ucraniana), como foi afirmado pelo SSU. Em um comentário relacionado, Leviev afirmou que, “quando estamos falando de uma PMC russo-ucraniana, não queremos dizer que ela foi criada ou formada com a participação de autoridades estatais ucranianas. Estamos dizendo que foi organizada por cidadãos ucranianos e foi posicionada como uma PMC ucraniana desde o início... Isso não significa que é um projeto conjunto desses dois estados, é apenas um negócio privado” (Currenttime.tv, 29 de março).

Apesar das narrativas concorrentes do SSU e da CIT, alguns aspectos relativos ao Vega são de fato bastante confusos. Por exemplo, não é de todo evidente por que os meios de comunicação russos abertamente pró-Kremlin têm dado tanta atenção a esta PMC em particular, enquanto outras empresas desse tipo (o Grupo Wagner ou Patriot, por exemplo) permaneceram tabu na imprensa russa. Especificamente, um artigo intitulado “Damasco está hospedando a 60ª Exposição Internacional de Produtos Industriais”, publicado no ano passado na Federalnoye Agentstvo Novostey (Riafan.ru), relata, “o lado russo participou ativamente durante o fórum. Ou seja, pode-se ver o Vega Strategic Services Ltd., que foi criada em 2012, no Chipre, por veteranos e ex-membros de formações marítimas, militares e policiais especiais da Ucrânia, Rússia e Grécia ”(Riafan.ru, 30 de julho de 2018). Uma atenção particular deve se concentrar na fonte da publicação: O Federalnoye Agentstvo Novostey é um meio de comunicação apoiado por Moscou intimamente relacionado com a notória "Fábrica de Trolls" com sede em São Petersburgo, financiada por Yevgeny Prigozhin (conhecido como "Chef" de Vladimir Putin). Outro veículo de informação antiocidental ultraconservador, a Tsargrad TV (pertencente ao “oligarca ortodoxo” Konstantin Malofeev, que foi sancionado pela Comissão Europeia por financiar o separatismo na Ucrânia) também divulgou um artigo complementar que confirma as informações anteriores (Tsargrad.tv, 9 de fevereiro de 2019).

Comentando esses desenvolvimentos, Yevgeny Shabaev, o ataman (chefe) da comunidade cossaca de Khovrino, afirmou que conhece o Vega como uma empresa com recursos limitados e dificilmente compatível com as tarefas freqüentemente desempenhadas por contratados militares russos. Ele acrescentou que toda a história com o Vega não passa de um exemplo de uma operação de contra-informação (contra-propaganda) realizada por meios de informação próximos ao Kremlin. Esta campanha de contra-propaganda, argumentou Shabaev, visa desacreditar outros meios de comunicação que cobrem o Grupo Wagner (Rtvi.com, 12 de fevereiro).

Bibliografia recomendada:


Leitura recomendada:



Os condutores da estratégia russa16 de julho de 2020.