sexta-feira, 11 de setembro de 2020

COMENTÁRIO: Contra o Daesh, a estranha vitória

Por Marc HeckerUltima Ratio, 14 de março de 2019.

Tradução Filipe do A. Monteiro, 11 de setembro de 2020.

[Nota do Tradutor: A expressão "a estranha vitória" é um comentário com base no clássico "A Estranha Derrota" de Marc Bloch.]

No auge, o Daesh controlava quase um terço do Iraque e metade da Síria. Depois de perder Mosul e Raqqa em 2017, a organização está em processo de remoção do seu último esconderijo, uma estreita área entre o Eufrates e a fronteira síria-iraquiana.

Em dezembro de 2017, o primeiro-ministro iraquiano Haider al-Abadi anunciou a "vitória final" e o "fim da guerra contra o Daesh". No mês seguinte, Donald Trump também fez declarações triunfantes durante seu discurso sobre o Estado da União.

Se o califado proclamado por Abu Bakr al-Baghdadi realmente ruiu, reivindicar a vitória é em grande parte prematuro. A luta contra o terrorismo promete ser longa, tanto fora das nossas fronteiras  quanto sobre o território nacional.

Vitórias de Trompe-l'oeil

Várias vezes no passado, o Ocidente pensou em manter sua vitória diante do jihadismo. Após os ataques de 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos emitiram um ultimato ao Talibã para que fechasse os campos de treinamento da Al-Qaeda e entregasse os líderes da organização terrorista às autoridades americanas. Os talibãs não agiram, os Estados Unidos e seus aliados lançaram uma operação militar em grande escala. Em poucas semanas, o regime dos talibãs foi varrido, campos de treinamento destruídos e muitos combatentes da Al-Qaeda mortos.

A vitória parecia clara. E, no entanto, a Al-Qaeda - embora muito enfraquecida - não havia desaparecido. O grupo terrorista sofreu uma mutação, contando com uma estratégia de descentralização para sobreviver. Essa descentralização assumiu duas formas. De um lado, o despejo de propaganda e assessoria tática na Internet para despertar vocações jihadistas. Por outro lado, a dobragem de grupos filiados em diferentes regiões do mundo.

Combatentes da Al-Qaeda no Mediterrâneo em Fallujah, 2014.

A Al-Qaeda foi capaz de se reviver com a guerra do Iraque de 2003. A insurgência que se seguiu à queda do regime de Saddam Hussein rapidamente assumiu uma dimensão jihadista. Em 2004, foi formada a Al-Qaeda na Mesopotâmia, a primeira "filial" da organização de Osama bin Laden. Liderada por Abu Moussab al-Zarqawi , ela se destacou em particular por seus ataques anti-xiitas e decapitações de reféns transmitidos pela Internet.

Após a morte de Zarqawi em 2006, a Al-Qaeda na Mesopotâmia tornou-se o Estado Islâmico do Iraque e passou por imensas dificuldades. Estas estavam principalmente ligadas ao descaso de seus novos dirigentes e ao fortalecimento da repressão. Após a mobilização das tribos sunitas na província de Anbar e a chegada de reforços americanos, o Estado Islâmico do Iraque se viu à beira do abismo.

Quando seus dois principais líderes foram eliminados em 2010, o grupo parecia moribundo. No entanto, ele renasceu das cinzas, em particular graças às revoltas árabes de 2011 e à política discriminatória contra os sunitas liderada pelo governo iraquiano da época. Ninguém poderia ter previsto em 2010 que Abu Bakr al-Baghdadi, o novo emir de um conturbado Estado Islâmico do Iraque, anunciaria alguns anos depois a restauração do califado.

Um movimento jihadista que permanece vivo


Hoje, a cautela continua sendo necessária por pelo menos três motivos.

Primeiro, o Daesh continua a operar secretamente sob a forma de guerrilha. Em meados de 2018, o Pentágono estimou que a organização terrorista mantinha cerca de 30.000 combatentes na zona síria-iraquiana.

Terroristas do Estado Islâmico na Província da África Ocidental (Islamic State in West Africa Province, ISWAP).

Além disso, o Daesh atua em outras áreas. Sua propaganda enfatiza particularmente suas ações no Afeganistão, Egito e Iêmen. Em seu livro The Islamic State in Khorasan (O Estado Islâmico em Khorasan), o pesquisador Antonio Giustozzi mostra que a dimensão internacional do Estado Islâmico não é apenas um efeito de marca. Transferências de quadros, combatentes e fundos têm ocorrido na tentativa de replicar o modelo sírio-iraquiano em outras regiões.

Em segundo lugar, o movimento jihadista não se limita ao Daesh. A Al-Qaeda ainda está presente. Na Síria, por exemplo, um grupo de 2 a 3 mil combatentes - Tanzim Hurras al-Din - são leais à Al-Qaeda. Além disso, deve-se ter cuidado com outras estruturas que foram ligadas à Al-Qaeda antes de romperem oficialmente com ela. É o caso, por exemplo, de Hayat Tahrir al-Sham, que atualmente controla a região de Idlib.

Jihadistas magrebinos em Burkina Fasso.

Além da zona síria-iraquiana, a Al-Qaeda na Península Arábica tem, segundo a ONU, vários milhares de combatentes. Na faixa Sahel-Sahariana, a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico formou uma aliança com grupos locais chamada Grupo de Apoio ao Islã e aos Muçulmanos (Groupe de soutien à l’islam et aux musulmans, GSIM). As forças de segurança - incluindo os capacetes azuis - são regularmente atacadas. Além disso, uma insurgência parece estar surgindo ao sul do circuito do Níger, em áreas habitadas em particular por fulânis.

Na França, uma calmaria precária

Em terceiro lugar, há uma relativa calma em solo francês, que pode ser apenas temporária. Entre janeiro de 2015 e julho de 2016, 238 pessoas foram mortas em território nacional em ataques terroristas. De agosto de 2016 ao final de 2018, o terrorismo causou 13 vítimas adicionais. O fato de ter havido um número significativamente menor de vítimas nos últimos dois anos não reflete um declínio na vontade de atacar a França. Na verdade, muitos ataques foram frustrados.

Além disso, cerca de 150 pessoas condenadas por crimes de terrorismo estão agora na prisão. 80% deles serão libertados até o final de 2022, incluindo alguns "retornados" da zona síria-iraquiana. As prisões também têm várias centenas de réus preventivos ou réus acusados aguardando julgamento por terrorismo e mais de 1.000 detidos suspeitos de radicalização.

Em suma, apesar do colapso do proto-estado criado pelo Daesh no Levante, o movimento jihadista está longe de entrar em colapso. No passado, ele provou sua capacidade de transformação e regeneração. Também demonstrou sua capacidade de aproveitar choques geopolíticos e criar surpresas estratégicas. Aprendamos com essas experiências e não baixemos a guarda!

Marc Hecker é pesquisador do Center for Security Studies e diretor de publicações do French Institute of International Relations.

Bibliografia recomendada:



Leitura recomendada:

França: A longa sombra dos ataques terroristas de Saint-Michel, 2 de setembro de 2020.


O Estilo de Guerra Francês, 12 de janeiro de 2020.






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